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De volta ao Brasil profundo: editoras apostam em obras de novos autores ambientadas no interior do país

Escritores destacam mudanças de valores e fuga dos clichês; retorno ao interior acontece no momento em que a ficção nacional conquista mais leitores
Retrto de Estrela de Alagoas (AL), da série "Novas Vidas Secas", de Custódio Coimbra Foto: Custódio Coimbra
Retrto de Estrela de Alagoas (AL), da série "Novas Vidas Secas", de Custódio Coimbra Foto: Custódio Coimbra

Na primeira página de “Sismógrafo”, romance de Leonardo Piana recém-lançado pela Macondo, o porteiro vê Eduardo, o narrador, de mochila nas costas e pergunta: “Pra onde vai?” “Andradas, já ouviu falar?” “Não”, responde o porteiro, “nunca”. Talvez o leitor também não conheça a cidadezinha de 40 mil habitantes, incrustada na Serra da Mantiqueira , no sul de Minas. Ou mesmo Pirenópolis , município goiano onde se passa “Apague a luz se for chorar” (Alfaguara), de Fabiane Guimarães . Nas últimas décadas, municípios interioranos como Andradas ou Pirenópolis — ou as fictícias Buriti Pequeno, cenário dos contos de “Erva brava” (Fósforo), de Paulliny Tort, e “Dilúvio das Almas” (Todavia), descrita no romance homônimo de Tito Leite — pouco apareceram na literatura brasileira. No entanto, jovens autores, boa parte nascida longe das metrópoles, vêm colocando o interior de volta no mapa literário.

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Embora alguns dos maiores clássicos da literatura brasileira se passem no interior — “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, “O tempo e o vento”, de Erico Verissimo , e “Grande sertão: veredas”, de Guimarães Rosa , entre eles—, nossa ficção migrou para as grandes cidades a partir dos anos 1970, quando o país se tornou majoritariamente urbano.

Professora da Universidade de Brasília (UnB), Regina Dalcastagnè analisou 131 romances publicados entre 1965 e 1979 e verificou que 58,8% se passavam em grandes cidades e 19,1% no meio rural. Dos 558 romances lançados entre 1990 e 2014 incluídos na pesquisa, apenas 12,5% tinham alguma ambientação rural, enquanto as grandes cidades eram cenário de 84,8% deles. Entre os dois períodos analisados, a porcentagem de autores residentes em São Paulo e Rio saltou de 51,2% para quase 70%.

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Dalcastagnè, que prepara “Uma história da literatura brasileira contemporânea”, a ser lançada pela Todavia, nota “um retorno às cidades do interior em livros recentes”, como “O verão tardio” (Companhia das Letras), de Luiz Ruffato , e “O ausente” (Relicário), de Edimilson de Almeida Pereira. Ela destaca ainda que “Torto arado” , de Itamar Vieira Junior , pode ter incentivado os autores a voltarem ao Brasil profundo.

Os autores Fabiane Guimarães, Leonardo Piana, Paulliny Tort e Tito Leite Foto: Editoria de Arte
Os autores Fabiane Guimarães, Leonardo Piana, Paulliny Tort e Tito Leite Foto: Editoria de Arte

A agente literária Marianna Teixeira Soares concorda que o arrasa-quarteirão de Itamar Vieira Junior (342 mil cópias vendidas), que se passa no sertão baiano, tem levado as editoras a olhar com mais carinho para o interior. Todas querem um novo “Torto arado”. No entanto, ela faz uma ressalva: o Brasil além do eixo Rio-São Paulo-Porto Alegre nunca esteve totalmente ausente da nossa literatura. Autores contemporâneos como Milton Hatoum , Edyr Augusto e André de Leones localizaram tramas em estados como Amazonas, Pará e Goiás.

— Ambientadas longe dos centros urbanos, essas narrativas conseguem atingir um público mais amplo do que se tratassem somente das questões do homem urbano. Os leitores se reconhecem nos livros — diz ela, que lembra que “Gótico nordestino”, de Christiano Aguiar, lançado mês passado pela Companhia das Letras, já foi reimpresso.

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Livro mais vendido da Macondo em fevereiro e vencedor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, “Sismógrafo”, de Leonardo Piana, narra o retorno de Eduardo a Andradas, onde, adolescente, ele teve sua paixão clandestina com Tomás exposta por outros meninos. Piana, que hoje vive em São Paulo, dedicou o livro “para a minha cidade”. “Sismógrafo” será lançado neste sábado (26) no colégio andradense onde ele estudou.

— A dedicatória é um jeito de dizer “falo mal, mas não vivo sem”. Essa história só poderia se passar numa cidadezinha mineira. Por que não a minha? Foi natural que Andradas, com as suas paisagens bonitas, seu falso acolhimento e conservadorismo do qual é difícil escapar impusesse as suas ambiguidades à narrativa — diz Piana. — Em “Sismógrafo”, quis pensar em como olhar para o mundo, para o noticiário, a partir de um lugar onde supostamente nada acontece. Fazer com que essa vida provinciana e íntima entrasse em colisão com a vida pública, esta que parece restrita aos grandes centros.

Personagens típicos

Nascida em Planaltina (GO), Fabiane Guimarães também quis colocar sua região no mapa literário. No ano passado, ela lançou o romance “Apague a luz se for chorar”, no qual a veterinária Cecília volta do Rio para Pirenópolis para enterrar os pais, que ela suspeita terem sido assassinados. A vastidão do Cerrado e os personagens típicos de cidade pequena (o policial desocupado, o médico de província, a costureira que sabe da vida alheia) adicionam suspense à narrativa.

— No começo, eu ambientava minhas histórias em cidades inventadas, porque achava que ninguém ia querer ler sobre Goiás. A literatura brasileira contemporânea era igual novela: só se passava em São Paulo ou Rio de Janeiro, cidades que eu nem conhecia — conta ela, que já prepara um novo romance sobre barriga de aluguel, também ambientado no Cerrado. — Talvez os novos autores não passem pela mesma crise criativa que eu, porque hoje há mais livros que retratam o interior. Mas ainda precisamos de mais diversidade, porque, de dez livros lançados, oito ainda se passam em São Paulo ou Rio. Talvez Porto Alegre.

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Autora de “Erva brava”, antologia de contos lançada em outubro passado pela Fósforo e premiada pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), a brasiliense Paulliny Tort conta que as mensagens mais carinhosas que recebem vêm de leitores da província. Os contos acompanham as desventuras dos habitantes da fictícia Buriti Pequeno, em Goiás: um rapaz que pede uma moto emprestada para namorar, um trabalhador rural soterrado pela soja, a mulher do prefeito obcecada por pombos. Acostumada a perambular pelo Cerrado, Tort quis escrever sobre as mudanças pelas quais o interior tem passado, provocadas por fatores que vão da expansão da fronteira agrícola ao aumento do consumismo.

— Os valores urbanos chegaram ao interior e até os desejos das pessoas mudaram. Quem comia fruta do quintal agora compra biscoito recheado e TV de tela plana em 24 prestações — diz ela, ressaltando o que o campo e a cidade têm em comum. — A alegria, a paixão e a solidão fartamente documentadas na literatura citadina também existem no interior.

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O retorno ao interior ocorre em um momento em que mais leitores têm se interessado por ficção nacional . Segundo dados da consultoria Nielsen Bookscan, no ano passado, a venda de literatura brasileira aumentou 23,95% e 29,27% em comparação com 2020 e 2019. O número de títulos de ficção nacional publicados cresceu 8,88% e 18,44% em relação aos dois anos anteriores. E vem mais por aí. A Companhia das Letras, que acaba de lançar “Gótico nordestino”, de Christiano Aguiar, vai publicar um romance de Jarid Arraes cujo cenário é o Cariri. A Autêntica promete novo romance de Maria José Silveira, ambientado na Amazônia pré-cabralina, e de Ieda Magri, numa cidadezinha sulista. Já a Todavia vai lançar um romance de Quito Ribeiro que se passa na Bahia. Este mês, a editora lançou “Dilúvio das almas”, estreia do monge beneditino Tito Leite, que nasceu em Aurora, no Ceará, e vive num mosteiro em Olinda.

‘O sertão não é leve’

Dilúvio das Almas é uma fictícia cidadezinha cearense para onde volta Leonardo, um filho pródigo que não quer saber de redenção e bate de frente com o conservadorismo e a politicagem da elite local. “As coisas e as pessoas lembram um livro de Graciliano Ramos”, diz Leonardo sobre a cidade. A linguagem seca do romance também lembra a do autor de clássicos do regionalismo nordestino. Crítico de autores urbanos que trocam o enredo por experimentações literárias, Leite quis escrever sobre um livro o sertão que desviasse de alguns “clichês de novela das oito”, embora aborde o coronelismo e o repente.

— Escrevi sobre o que eu conhecia: cheiro das ruas do sertão, o chão duro, o sol escaldante. O sertão não é leve como na novela. A alegria sertaneja não alivia a brutalidade dos dramas humanos que existem ali e que dizem respeito a todos nós, não importa se moramos no Sudeste ou em Olinda — diz Leite, que tem na ponta da língua uma frase de Tolstói : “Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”.

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