Cultura
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Por — São Paulo

Leïla Slimani se despede com a promessa de que a próxima entrevista para O GLOBO será em português — morando em Lisboa desde que deixou Paris, há dois anos, ela ainda arranha o idioma. Nascida em Rabat, no Marrocos, em 1981, a escritora se tornou celebridade ao conquistar o mais prestigioso prêmio literário francês, o Goncourt, com o romance “Canção de ninar”, de 2016. Em 2018, Slimani participou da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip). Na conversa por vídeo, ela falou sobre “O país dos outros”, livro recém-lançado no Brasil, e elogiou a “terrinha”.

— Portugal é perfeito para mim. Fica entre meus dois países, a uma hora do Marrocos e uma hora e meia da França. É um país europeu bastante africano — diz ela, que já se arrisca na culinária lusa com iguarias como o arroz de pato. — O melhor lugar para aprender um novo idioma é a cozinha. Passei a infância na cozinha com minha mãe, minha avó, minhas tias e minha babá. Elas cozinhavam, passavam roupa e conversavam sobre homens, sexo, dinheiro, o futuro, tudo o que importa.

Papo de cozinha

Na cozinha, as mulheres contavam histórias do tempo em que o Marrocos era um protetorado francês. A avó da escritora, Anne, nasceu na França e emigrou ao se apaixonar por um marroquino. Mathilde, a protagonista de “O país dos outros”, faz a mesma coisa: casa-se com Anime, um marroquino que lutara no Exército francês, era um palmo mais baixo que ela e sonhava em enriquecer cultivando a terra de seu país. Ela aprende árabe na cozinha, com as mulheres da família do marido. “Se não souber o que responder, diga amém e tudo se resolve”, diz Selma, a cunhada.

Primeiro volume de uma trilogia ambientada entre o Marrocos e a França, “O país dos outros” acompanha a família de Mathilde e Amine entre o fim da Segunda Guerra Mundial e a independência do Marrocos, em 1956. O segundo livro, “Regardez-nous danser” (Veja-nos dançar), já saiu na França, e o terceiro ainda está em produção.

“O país dos outros” narra a guerra na perspectiva das mulheres. Mathilde aprende a manusear uma granada para se defender caso a fazenda seja atacada na ausência do marido — uma colona francesa como ela podia se tornar alvo de nacionalistas marroquinos.

Ex-repórter especializada no continente africano, Slimani cobriu a Primavera Árabe e viu de perto conflitos no Congo e em Ruanda. Também ouvia, da família da mãe, histórias da guerra civil argelina, nos anos 1990. Sempre soube que as mulheres são vítimas preferenciais da guerra, mesmo que não estejam no front.

— No livro, quis mostrar como a violência da guerra molda até mesmo a vida doméstica das mulheres — diz ela, que se interessa “menos pela História com H maiúsculo e mais pelo que ocupa os corações e mentes das pessoas”. — Com frequência, somos indiferentes ao que acontece no mundo. Estamos pensando se vamos a tal festa, se ele me ama ou não, numa briga que tivemos, quando vamos transar... As pessoas do futuro talvez olhem para nós e achem que éramos loucos, porque o mundo está acabando e nós estamos pensando em sexo.

Ainda na França, Mathilde se masturba enquanto as bombas alemãs caem: “Gozar era o único meio de acalmar o medo, de controlá-lo, de ter algum controle sobre a guerra.”

O sexo é uma das obsessões literárias de Slimani. Seu primeiro romance, “No jardim do ogro”, é protagonizado por uma jornalista bem-sucedida e bem casada, mãe, que se entrega ao sexo adúltero (e por vezes violento) para satisfazer seu vício.

— Mathilde não é uma intelectual, mas tem uma inteligência sensual, entende o mundo com o corpo. Ela se conecta com o Marrocos por meio dos cheiros, das cores, das texturas — explica Slimani, que também é autora de “Sexo e mentiras”, livro-reportagem sobre a repressão ao desejo feminino no Marrocos, inédito no Brasil. — Eu quis construir uma personagem feminina que tivesse um corpo forte e gostasse de sexo. É assim que ela se comunica com o marido. Quando não há mais nada a dizer, eles conversam usando seus corpos. Estou cansada da associação da sexualidade feminina com o medo. Desejo também é força e liberdade.

Outra obsessão de Slimani é embaralhar as identidades de seus personagens. Mathilde apoia o nacionalismo marroquino, mas sente que perde um pouco da sua essência toda vez que sai à rua coberta como uma mulher árabe e é confundida como uma nativa pelos mercadores. E Amine, embora tenha lutado pela França e imite os colonos europeus, também sonha em “retornar à própria cultura”, ter uma esposa submissa e fazer amor em árabe.

Nos livros de Slimani, a origem de um protagonista pouco diz sobre suas opiniões ou sua posição social. Em “Canção de ninar”, por exemplo, a imigrante árabe não é a babá, mas a patroa.

— Quando começo a esboçar um personagem, não penso: “ele é marroquino, então deve ser assim e assim”. Somos muito mais do que dizem nossos passaportes — afirma a escritora, que há sete anos representa o presidente francês Emmanuel Macron na Organização Internacional da Francofonia, cuja missão é promover a língua e as culturas francófonas.

Injustiça em família

Como Aïcha, personagem de “O país dos outros”, Slimani teve uma educação francesa. Seu pai foi ministro da Economia do país entre 1977 e 1979 e presidiu um banco; em 2003, passou meses preso devido a um escândalo político-financeiro. Ele morreu em 2004 e, anos depois, foi inocentado das acusações.

Slimani recorda esse episódio dramático em “O perfume das flores à noite”, sua primeira não ficção editada no Brasil. Elogiado pelo cineasta espanhol Pedro Almodóvar, o livro foi escrito após a autora passar uma noite em um museu de Veneza, a convite de uma editora. “Ao morrer, meu pai me obrigou a vingá-lo”, escreve Slimani.

— Há uma raiva na origem da minha escrita — diz ela. — Comecei a publicar para limpar meu nome, para que ele não fosse mais sinônimo da injustiça que minha família sofreu, e sim do meu sucesso. Percebi ter cumprido esse objetivo quando ganhei o Goncourt e vi que no olhar da minha mãe não havia mais só tristeza, mas também orgulho.

“O perfume das flores à noite” é dedicado a Salman Rushdie, autor jurado de morte por supostamente ofender o Islã no romance “Os versos satânicos”, de 1988, e atacado a facadas no ano de 2022.

Mulher, árabe e sem medo de tabus, Slimani também já foi alvo do ódio obscurantista. Mas prefere não falar disso “porque essa gente ruim não merece visibilidade”. Há outros temas que a escritora evita em entrevistas, como religião e sua amizade com o presidente francês.

— Liberdade de expressão também é liberdade de calar a boca — afirma. — Quando somos jovens, vivem nos perguntando: “aonde você vai?”, “quem era aquele homem?”. Uma mulher jovem não tem direito ao segredo. Queremos ser livres para falar e para ficar em silêncio.

Antes de desligar a câmera, Slimani se despede em um português quase sem sotaque e conta que sente saudade do Brasil:

— Me convidem para voltar! Eu amo o Brasil. Meu amigo Abdellah Taïa (escritor marroquino), me disse um dia desses: “O Brasil é o paraíso! Vamos nos mudar para lá! Vamos envelhecer e morrer no Brasil”. Eu respondi: “Não, eu não quero morrer no Brasil. Eu quero viver lá!”.

Serviço:

"O país dos outros"

Autora: Leïla Slimani. Editora: Intrínseca. Páginas: 320. Preço: R$ 69,90.

"O perfume das flores à noite"

Autora: Leïla Slimani. Editora: HarperCollins. Páginas: 128. Preço: R$ 54,90.

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