A ÉTICA
Pintura A morte de Socrates, 1787, Jacques-Louis David

A ÉTICA

Muitas vezes, as categorizações manuais podem obscurecer mais do que esclarecer na compreensão profunda e rigorosa dos temas filosóficos. Isso é evidente na classificação das grandes correntes de pensamento moral, que frequentemente simplificam demais a complexidade dos filósofos e de suas ideias. Nos dias atuais, é comum encontrar uma divisão simplificada da ética normativa em três principais correntes: ética das virtudes, ética kantiana e ética utilitarista.

Essa classificação é enganosa, pois foca em aspectos superficiais dos grandes pensadores, em vez de capturar a essência de suas obras. Por exemplo, a ética das virtudes é frequentemente associada a escolas que remontam desde Platão e Aristóteles até toda a tradição cristã medieval.

Entretanto, rotular a ética aristotélica simplesmente como uma ética das virtudes é questionável. Se examinarmos a "Ética a Nicômaco", tanto seu Livro I quanto seu Livro X tratam da eudaimonia, a plena realização da natureza humana, representando o ideal do homem bom em todos os aspectos, que tradicionalmente é entendido como felicidade. Aristóteles procura identificar o bem supremo entre os diversos bens da vida humana, aquele que é desejado por si mesmo, completo e representa a totalidade do que se busca em uma vida racional. Esse bem é a felicidade.

O desfecho do livro retorna ao tema da eudaimonia, descrevendo a essência da vida superior para o ser humano na contemplação, superando sua condição material e vivendo de acordo com a natureza divina. As virtudes na "Ética a Nicômaco" são elementos essenciais nesse contexto. São hábitos bons que contribuem para a vida plenamente realizada. São buscadas porque são parte do ideal final de perfeição humana, a realização de todas as potencialidades de nossa natureza.

Da mesma forma, a ética cristã não pode ser simplificada como uma ética das virtudes. No tomismo, a eudaimonia assume uma dimensão sobrenatural, traduzida como beatitude. A moral de Santo Tomás de Aquino busca a santidade, a plena realização da alma humana agora também num plano revelado, na comunhão celestial com Deus.

A ética cristã é, portanto, uma ética da graça, onde a graça e a redenção ocupam um lugar mais preponderante do que as virtudes.

Não há razão convincente para afirmar que as virtudes devem ser o elemento distintivo da moral em Platão, Aristóteles, nos Padres da Igreja ou em Tomás. Quando se considera o essencial desse tipo de pensamento moral (a felicidade ou a bem-aventurança), percebe-se que a diferença em relação a Immanuel Kant é mais superficial do que parece.

Tanto o aristotelismo quanto o kantismo estão centrados no mesmo elemento fundamental: aquilo que sempre foi chamado de felicidade ou bem-aventurança, e que eu prefiro chamar de realização humana integral. Classificar kantismo e aristotelismo como éticas da realização humana faz mais sentido.

Pensar coerentemente a moral é pensar num ideal de realização dos anseios intrínsecos da alma humana, de uma satisfação que nos desenvolve e nos realiza como pessoas, que nos faz admirar exemplos de homens bons e deplorar imagens de vidas más. Esse é o ponto central que precisa ser enfatizado em qualquer debate atual sobre teorias éticas. Fora disso, qualquer discussão sobre virtudes, leis e deveres é superficial.

Atualmente, muitos defensores do aristotelismo e do tomismo argumentam contra o legalismo da moral moderna (frequentemente erroneamente atribuído a Kant). Concordam que a ética não é apenas seguir regras, mas, paradoxalmente, acabam enfatizando uma lista de virtudes e encorajando seu exercício.

Sem perceber, aqueles que defendem o tomismo permanecem presos ao legalismo, substituindo o legalismo dos deveres pelo legalismo das virtudes. Em vez de uma lista de regras, agora temos uma lista de virtudes, enumeradas a partir de algum rol pré-concebido e capazes de animar apenas aqueles que já estariam contentes com as regras de um manual de instruções.

Mesmo a ética estoica, que poderia ser considerada uma "ética das virtudes", não se encaixa perfeitamente nessa classificação. Nos textos estoicos, as virtudes não são um fim em si mesmas, mas parte da eudaimonia.

Há um ideal de vida humana nos estoicos, uma vida conforme a razão, representada pelo conceito de oikeiosis, uma integração ao cosmos, um princípio de viver em harmonia com a ordem natural.

A apatia estoica não é uma vida passiva, mas sim a supressão das paixões desordenadas em favor de paixões ordenadas pela razão. É um ideal de excelência humana que requer uma reestruturação de nossas faculdades afetivas e intelectuais. Outro exemplo mais recente é a ética dos valores, uma importante corrente moral do século XX, liderada por Max Scheler. Scheler buscava superar o formalismo moral associado a Kant, sem retornar a uma ética baseada em conteúdos naturalistas, como a de Aristóteles.

Para Scheler, os valores não são objetivos, mas qualidades intuídas e sempre consideradas positivas. São um conteúdo a priori da consciência moral, não fundamentado em uma ordem natural percebida previamente.

A ética de Scheler parece ser intuicionista, onde os valores são intuídos antes de qualquer raciocínio, sem um critério inteligível para justificá-los. Se for apenas isso, o intuicionismo nos leva à mesma arbitrariedade legalista de qualquer lista de regras.

Em suma, toda ética digna desse nome é uma ética eudemônica, nascida da insatisfação do homem com sua própria condição. A estrutura necessária da moral surge da fratura entre o estado atual do homem e o ideal imaginado pela razão. Tudo o mais - virtudes, leis, deveres, valores - são a ponte que conecta esses dois estados. Associar Aristóteles às virtudes, Kant aos deveres e alguns tomistas à lei natural é concentrar-se em aspectos superficiais das teorias morais, simplificando demais a complexidade da realidade.

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