Um Doutor Johnson para os nossos tempos

Um Doutor Johnson para os nossos tempos

Por Martim Vasques da Cunha

A Faca Entrou (“The Knife Went In”, 2017), o mais recente livro de Theodore Dalrymple (pseudônimo do psiquiatra inglês Anthony Daniels), lançado esta semana no Brasil pela É Realizações, é a síntese da sua experiência de vida — e uma maneira perfeita para você descobrir a obra de um dos escritores mais originais do nosso tempo.

Na primeira década dos anos 2000, Dalrymple era o mais obscuro e também o mais fascinante dos ensaístas com teor conservador que surgiram na imprensa. Além das colunas que ele tinha nas revistas The Spectator e New English Review, seus artigos mais pessoais eram publicados na The New Criterion — não à toa, sempre assinados com o nome de Anthony Daniels — e era impossível não ficar impressionado com a elegância do seu estilo e a sutileza da sua ironia. Ele não perdoava nenhuma vaca sagrada dos intelectuais progressistas, de todos os matizes e áreas do conhecimento, desde o arquiteto Le Corbusier até o historiador Eric Hobsbawn, passando pela escritora Ayn Rand.

No final de 2009, Dalrymple foi lançado no Brasil graças a uma revista que ajudei a criar, Dicta&Contradicta, com um ensaio intitulado “A pobreza do mal”, também assinado como Daniels, igual ao que ele fazia na The New Criterion, uma das inspirações da publicação nacional. A partir daí, um texto seguiu-se ao outro, sobre temas que ele sempre abordou em outros lugares (como a questão da legalização das drogas em “A síndrome da mentira”) e vários assuntos que raramente lidava nas publicações internacionais — como os soberbos ensaios sobre a vida e a obra do historiador Paul Johnson e da carreira do terrorista italiano Cesare Battisti. Havia também pérolas mais meditativas a respeito dos “dilemas da igualdade” e da “estética da confusão”, ambos fenômenos que, segundo sua visão, foram causados pelo descenso da sociedade ocidental com sua submissão ao relativismo moral pós-moderno.

O que era evidente nos escritos de Dalrymple não era apenas o rigor de pensamento, mas sobretudo a clareza da sua imaginação moral. Apesar de se considerar um agnóstico em termos religiosos, rejeitando aparentemente qualquer perspectiva metafísica, e de se autointitular um “doutor cético” — numa espécie de mistura entre a suspensão de juízo de Montaigne e a sabedoria prática de Samuel Johnson (sem parentesco com Paul) — , o fascinante no seu olhar era a reflexão sobre a natureza e a condição humanas, numa corajosa obsessão de encarar sem disfarces o problema do Mal Lógico.

Isso é registrado em cada página de A Faca Entrou. Neste livro, percebemos a sua vivência concreta como médico psiquiatra em hospícios, prisões e hospitais públicos ingleses. Mas também temos, em outros livros, as várias viagens que fez em países “nos confins do comunismo” (tema de outro relato antológico) e que lhe deram autoridade na hora de abordar não só o Mal como algo voluntário, mas como uma entidade que não tem nada de abstrata, e sim palpável, principalmente quando afeta a vida de um ser humano. Para Dalrymple, o Mal tem uma lógica idiossincrática, difícil de entender, e o máximo que ele pode fazer, seja como médico, escritor ou mera testemunha, é dar um pouco de sentido ao sofrimento das pessoas que foram atingidas por essa força destruidora.

Contudo, seus ensaios não se refastelam no lodo da maldade — e muito menos ficam em elucubrações metafísicas. Ele vê essa manifestação do Mal Lógico nas engrenagens burocráticas e impessoais do Estado de Bem-Estar Social, o Welfare State inglês, que reduz qualquer espécie de nobreza do espírito humano, enfraquecendo-o de tal forma que a pessoa se transforma no “homem carbuncular” dissecado por T.S. Eliot em The Waste Land (1922) — capaz de olhar somente para o rés do chão e jamais acima da linha do horizonte.

Outra variante desta catástrofe cultural, segundo o ensaísta inglês, é o detalhe macabro de que esse tipo de comportamento não é apenas sedimentado entre os membros da chamada “underclass” — a sub-classe que insiste em ser uma “ralé” –, mas sobretudo entre os integrantes da elite intelectual. Para estes, o progresso social ampliado pelas supostas benesses do Welfare State ajudaria a melhorar a vida dessa mesma “ralé”, contribuindo para a igualdade entre os cidadãos, graças, é claro, à criação do dinheiro fácil, sem sangue, suor e lágrimas, e que impediria a vontade de se firmar por meio do trabalho árduo e honesto.

A consequência disso é que, de acordo com Dalrymple, o governo da Inglaterra (e o do resto da Europa, por extensão) insiste em acentuar cada vez mais a inveja e o ressentimento entre a geração mais velha e a mais jovem, pois como esta última já vivia sempre à espera de algo que lhe era garantido, não poderia admitir para si mesma que, na verdade, as coisas existem para serem conquistadas. O choque é inevitável, não apenas no aspecto econômico ou político, mas principalmente cultural. Os extremos crescerão cada vez mais, graças ao discurso do politicamente correto que permitiu a entrada dos imigrantes com as mesmas garantias dadas ao povo local de cada país. Para completar, o super-governo administrativo de Bruxelas, a União Europeia, colabora com esse cenário turbulento, na crença de que a igualdade social é o único projeto utópico que precisa dar certo, custe o que custar.

Se há uma tirania que Dalrymple combate em seus escritos, é a que o cientista político William Easterly chama de “a tirania dos especialistas”. São os intelectuais de gabinete que, isolados da insegurança que é viver fora das suas torres de marfim, ficam igualmente obcecados por controle — e resolvem aplicar essa ideia fixa não em si mesmos, mas, como sempre acontece nesses casos, na população mais pobre. A “underclass” é a espécime perfeita para um “experimento contra a realidade” (maravilhosa expressão de Roger Kimball) que, no fim, afeta os valores morais da sociedade ocidental.

insight perturbador proposto pelo psiquiatra em seus escritos é o de que os grandes intelectuais da modernidade — de Coleridge a Cesare Battisti, passando por Virginia Woolf e Sigmund Freud –, criaram um discurso que, para fazer sentido na realidade alternativa que viviam, era fundamental abolir o que o filósofo alemão Hans Jonas descobriu como sendo “o princípio responsabilidade”. Trata-se do nexo causal que permite o ser humano perceber a si mesmo como alguém objetivamente responsável tanto por suas ações como por seus pensamentos e emoções. O resultado dessa percepção não o paralisa de forma alguma. Pelo contrário: é quando a pessoa tem plena noção desse princípio que ela pode tomar conta da sua própria vida — e enfim redescobrir a liberdade que lhe foi negada pelos poderes e potentados deste mundo.

Porém, Dalrymple relata todo esse processo não como se fosse um diagnóstico médico, frio e calculista, e sim com ternura pelos seus personagens. Ele adiciona um humor que os transforma em seres humanos concretos, de carne e osso, jamais como meros conceitos. De acordo com o “doutor cético”, a cura para a recuperação do “princípio responsabilidade” será por meio da redescoberta do senso comum, o velho e bom common sense inglês, que pode ser reencontrado na educação formal e na leitura dos clássicos da literatura, em especial Shakespeare, Conrad, J.G. Ballard, e outros tantos que formam um novo tipo de governo — o da república invisível onde os gigantes conversam entre si e transmitem a imaginação moral necessária para escolhermos o Bem objetivo e vencermos os sombrios labirintos do Mal Lógico.

Assim, é natural pensar que a clareza de expressão é um dos princípios estéticos e morais da obra do autor de A Faca Entrou, pois ele acredita que o bom senso pode ser articulado e, mais, comunicado para ajudar o semelhante. Dessa forma, trata-se de um médico que dá o seu diagnóstico — mas também aplica sua higienização, às vezes com a ajuda da ironia, sem perder a integridade e a coerência neste universo moldado pelo “prazer de pensar”.

Sob o disfarce despretensioso de um relato de memórias da época em que era médico psiquiatra nas prisões inglesas, A Faca Entrou retorna às obsessões que fascinam Dalrymple desde o início da sua obra: o confronto com o Mal Lógico por meio das conversas com os mais diversos tipos de criminosos; a denúncia sistemática dos efeitos nocivos do Estado assistencialista; a indignação diante da “tirania dos especialistas”; e, por último, o retorno ao “princípio responsabilidade”, por meio da releitura dos clássicos da literatura universal, fundamental para a conquista da verdadeira autonomia interior.

Contudo, se há uma diferença entre esse livro e os outros clássicos dele — como Nossa Cultura…Ou O Que Restou DelaPodres de MimadosEvasivas Admiráveis e o ainda inédito Romancing Opiates (a meu ver, sua obra-prima) — é que o ensaísta começa a ter uma consciência agridoce sobre a nossa impotência de conseguir mudar alguma coisa na corrente alucinada da História. Fazemos muito pouco, e o pouco que conseguimos realizar jamais é suficiente. Ainda assim, não podemos desistir. A atitude de Dalrymple diante das vicissitudes da vida parece ser semelhante à de um Hamlet ou a de Lear, quando o primeiro fala que “Estar pronto é tudo” e o segundo afirma que “A madureza é o que nos sustém”. Mas, com a chegada do crepúsculo da idade, podemos ver um toque de Próspero na profilaxia de Dalrymple, ao admitir “aquele objeto das trevas que reconheço como meu”.

Não à toa que esse sucessor de Samuel Johnson jamais deve ser classificado como conservador ou liberal. Na verdade, como bem observou Maurício G. Righi em seu ambicioso livro sobre o escritor inglês (Theodore Dalrymple — A Ruína Mental dos Novos Bárbaros, 2015), ele não é uma coisa, nem outra. É simplesmente um “shakespereano”. Sua preocupação maior é com a “pesquisa dos movimentos mentais” que o ser humano pode fazer consigo mesmo, seja para escapar das prisões que ele escolheu voluntariamente, seja para se destruir cada vez mais, contaminando a linguagem com tal seriedade que não lhe resta nada mais, exceto usar a voz passiva e afirmar que, em vez de ter matado o seu semelhante, foi “a faca que entrou”.

Seu objeto de conhecimento não é apenas a natureza humana em geral, mas a sua própria natureza como homem e como indivíduo, sempre em busca da maldade que o corrói por dentro. Com o relato das histórias narradas em A Faca Entrou, que podem ser vistas como espelhos de sua consciência repleta de uma lucidez dolorida, Theodore Dalrymple registra a progressiva cura que o médico fez em si mesmo para vencer o monstro que há dentro dele — e em todos nós.

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