Ética não pode ser negociável

Ética não pode ser negociável

Parece óbvio, mas não é. Empresas brasileiras reforçam os seus setores de compliance para impor ordem e evitar que casos de corrupção assolem a sua reputação. O assunto também passou a chamar a atenção de executivos, preocupados em se proteger da mira da Polícia Federal

O ano de 2006 virou uma espécie de marco na história de 161 anos da Siemens. Em novembro daquele ano, os executivos da multinacional baseada em Munique, na Alemanha, foram surpreendidos com a entrada de dezenas de policiais para fazer um verdadeiro pente-fino na sede global da companhia. O motivo da invasão? A Siemens estava envolvida até o pescoço com casos de suborno, caixa dois, entre outras acusações de corrupção em diversos países. Havia a denúncia de participação em irregularidades até mesmo em grandes eventos, como as Olimpíadas de 2004, em Atenas. Nem a sala do então CEO, Klaus Kleinfeld, foi poupada. 

Quem também estava em Munique naquela época era o executivo brasileiro Reynaldo Goto. Ele, que trabalhava como expatriado na sede, viu de camarote a entrada dos oficiais, assim como a presença massiva da imprensa no local, ávida por informações. “Foi algo que me fez repensar o que eu estava fazendo na empresa”, diz Goto, que atualmente ocupa o cargo de diretor de compliance da subsidiária brasileira da Siemens. “É algo que nos arrependemos e nos envergonhamos profundamente até hoje”.

Mas o que fez Goto ficar na empresa não foi o simples arrependimento da companhia, que teve um faturamento de € 85,6 bilhões no ano passado. O executivo viu, de fato, uma mudança de pensamento dentro da Siemens. Dezenas de executivos de alto escalão foram demitidos – incluindo o presidente – e multados. A Siemens também precisou arcar com multas que alcançaram US$ 1,5 bilhão nos últimos oito anos. E o seu setor de compliance, o grande responsável pela guinada, também começaria a desmantelar outros esquemas espúrios ao redor do planeta.

“A corrupção é algo que nos envergonhamos profundamente até hoje”, Reynaldo Goto, da Siemens

Se antes o imaginário popular acabava colocando a corrupção como algo quase dominado pelo setor público, casos como o da Siemens e os das investigações Lava Jato e Zelotes, tocadas pela Polícia Federal, trataram de colocar uma pedra em cima deste mito. Para haver corrupção do governante, é necessário ter um corruptor. E em muitos casos a iniciativa privada está envolvida das mais diversas formas. Todos saem perdendo, inclusive as empresas.

Um levantamento realizado pelo Banco Mundial aponta que subornos e outras formas de corrupção movimentam US$ 1,5 trilhão todos os anos, um valor superior ao PIB do México e da Argentina somados. Não à toa, a instituição coloca a corrupção como o principal desafio a ser superado para acabar com a pobreza extrema no mundo.

E mesmo sendo um tema de tremenda importância – e que vem fazendo uma série de empresas vítimas nos últimos anos –, o compliance ainda não é tão difundido no Brasil. Quem aponta isso é a KPMG, que faz estudos contínuos sobre o tema. O último deles, referente ao ano de 2016, mostra que 42% dos executivos ouvidos sequer conhecem os mecanismos de gestão de riscos da sua empresa (ou se, de fato, ela possui algum tipo de controle). Outro dado importante aponta que 44% não possuem estruturas dedicadas totalmente e de maneira independente ao tema – algo fundamental para o seu êxito. 

A busca da virada

Apesar de o número ser pequeno, houve uma tímida melhora em relação a 2015. Empresas que não tinham nenhum tipo de infraestrutura para coibir práticas irregulares caíram de 12% para 8%. Um dos exemplos é a JBS, que se tornou uma das protagonistas da crise moral do Brasil nos últimos anos. Só em setembro de 2015, a empresa – considerada a maior processadora de proteína animal do mundo – criou o seu comitê de compliance.

De lá para cá, muita coisa aconteceu. Os controladores e executivos Joesley e Wesley Batista, até então presidente do Conselho e CEO do Grupo J&F, que controla a JBS, fizeram delação premiada e jogaram lama no ventilador. Bilhões foram enviados a políticos dos mais diversos partidos, sem distinção de ideologia. PT, PSDB e PMDB, por exemplo, lambuzaram-se com o dinheiro do Grupo e viram seus principais líderes Luiz Inácio Lula da Silva, Aécio Neves e Michel Temer, respectivamente, envolvidos em meio aos escândalos.

Após a delação, no entanto, uma série de fatores fez os irmãos irem para a cadeia. Utilização de informação privilegiada na Bolsa de Valores e acusação de omitirem provas foram o suficiente para acabar com os benefícios da dupla e os colocarem atrás das grades. Tamanha repercussão negativa só trouxe mais trabalho para Marcelo Proença, que assumiu o cargo de diretor global de compliance da companhia em junho de 2017. Segundo o executivo, o ritmo normal da implementação foi mantido, mesmo com tantas nuances no caminho. “Os negócios da JBS prosseguiram em ritmo normal, já que todo o processo de colaboração com a Justiça e seus desdobramentos ficaram concentrados na holding J&F”, diz ele. Atualmente, ele se reporta diretamente para o Conselho de Administração, o que não ocorria antigamente. O executivo irlandês Jeremiah O’Callaghan, antigo diretor de relações com investidores da JBS, ocupa o cargo de presidente do conselho e tem José Batista Sobrinho, pai dos irmãos Batista e fundador da JBS, como vice-presidente. 

“Não há uma reconstrução de imagem em curso, já que há confiança do consumidor na qualidade dos produtos da JBS”, Marcelo Proença, da JBS

Entre as conquistas neste momento de tempestade, que também resultaram em multas pesadas no Brasil e no exterior, Proença destaca o treinamento de todos os diretores no Brasil e das lideranças de nível gerencial, somando mais de 400 profissionais. Além disso, uma equipe formada por oito pessoas passou a analisar todos os prestadores de serviços terceirizados da companhia. De cerca de 180 empresas, 13% tiveram contrato rescindido por não se enquadrarem mais nas políticas da companhia. O programa de ética recebeu o nome de “Faça sempre o certo” e está sendo assessorado pelo escritório de advocacia americano White & Case LLP.

A meta, segundo Proença, é realizar ações para implementar um programa de compliance que seja referência no mercado. Quando questionado sobre a reconstrução da marca, no entanto, ele nega que haja algo parecido em curso. “Não há uma reconstrução de imagem em curso, já que há confiança do consumidor na qualidade dos produtos da JBS”, afirma ele. A ver.

Uma estatal em reconstrução

Se a JBS foi a grande protagonista dos últimos meses no noticiário econômico e policial, a anterior foi a Petrobras. A maior empresa do Brasil em faturamento sofreu – e muito – nos últimos anos. De acordo com um laudo da Polícia Federal, os pagamentos indevidos feitos pela Petrobras a empreiteiras e outras empresas investigadas entre 2004 e 2014 pode chegar a R$ 42 bilhões. O valor representa cerca de 15% do faturamento anual da petroleira.

Para deixar isso para trás, a equipe comandada pelo executivo Pedro Parente, que assumiu a empresa em maio de 2016, começou a investir na recuperação da imagem. Afinal, uma empresa que muitos colocavam como orgulho nacional passou a ser vista como um antro de corrupção das mais diversas lideranças políticas. A estratégia foi atingir os públicos interno e externo. A maior parte das peças publicitárias, por exemplo, passou a exaltar as mudanças éticas pelas quais a empresa passava. Até um portal levando o nome da Lava Jato e da Petrobras foi criado. Tudo de olho no compliance.

O maior trabalho, contudo, ficou mesmo para os funcionários. A empresa criou diversas ferramentas para evitar que novas irregularidades surgissem. Um comitê especial de investigação foi desenvolvido e ficou sob o comando da ex-ministra do Supremo Tribunal Federal, Ellen Gracie. Canais de denúncia também foram disponibilizados, assim como uma varredura de toda a vida dos gestores. Para completar, 60.000 empregados precisaram fazer um curso desenvolvido pela ONU sobre ética e combate à corrupção.

É bem verdade que ainda é cedo para dizer se esses e outros esforços vão dar resultados em longo prazo. Mas o fato é que, desde a entrada de Parente no comando, o valor da Petrobras dobrou na Bolsa de Valores. Atualmente, a companhia vale R$ 266,8 bilhões de reais. “A Petrobras foi capaz, em apenas três anos, de construir um sistema de governança que é reconhecido por adotar práticas e procedimentos que são o que há mais moderno hoje”, afirma João Elek, diretor de governança e conformidade da Petrobras. 

Agora é coisa séria

Empresas como a Petrobras, a JBS e a construtora Odebrecht podem ser consideradas marcos para o combate à corrupção no Brasil, especialmente após a prisão de uma série de executivos e políticos envolvidos nas falcatruas. Trata-se de uma rara vez em que o brasileiro se depara com nomes do primeiro escalão de governos e empresas pagando pelos crimes cometidos. Isso foi possível, em parte, por conta da Lei Anticorrupção, que entrou em vigor no início de 2014. Desde então, as empresas podem sofrer sanções como multas que chegam a 20% do faturamento, suspensão das atividades e até mesmo o encerramento das suas atividades. Os executivos, claro, também passaram a ter punições mais pesadas.

E a forma de discutir esses assuntos com empresários e executivos também mudou bastante a partir da promulgação da lei. A advogada Alessandra Gonsales é sócia do escritório WFaria e especializada em implantação de políticas anticorrupção e de lavagem de dinheiro. Antes desses eventos, como a Operação Lava Jato e a própria Lei Anticorrupção, o seu discurso não era muito levado a sério. Era comum, em reuniões de apresentação, presenciar executivos dispersos, sem interesse no tema e até mesmo sonolentos. Isso mudou. “Agora, a primeira coisa que me perguntam é o que eles precisam fazer para não serem presos, mesmo que não tenham feito nada”, diz ela. “Antes pouquíssimas perguntas eram feitas nas apresentações”.

A preocupação aumenta ainda mais naquelas empresas que têm envolvimento com o setor público. Afinal, o sarrafo está alto e nunca se sabe quando uma investigação de determinando órgão ou empresa pode ser iniciada. E isso não está reservado aos grandes centros do Brasil. A empresa de saneamento Aegea sabe muito bem disso. Apesar de estar baseada em São Paulo, a companhia viu o seu nome envolvido em denúncias de corrupção em cidades como Ribeirão Preto, assim como a prisão de alguns nomes ligados à empresa, como Jorge Carlos Amin, ex-membro do Conselho. A companhia chegou a ter R$ 18 milhões bloqueados pela Justiça. 

Para mudar a imagem e não ser lembrada por casos como esse, a Aegea, que tem como principal e mais importante cliente o setor público, apostou na criação de um programa de compliance. A primeira medida foi a transferência da executiva Tamara Willmann da auditoria para uma área de compliance. Um agravante para a empresa, no entanto, era o baixo nível educacional dos seus funcionários. Alguns, inclusive, analfabetos funcionais. 

A saída encontrada foi a criação de um gibi com diversas ocasiões do cotidiano. Um fornecedor me ofereceu um presente: eu posso aceitar? É algo ilegal ou imoral? Esses questionamentos diários, de diversas áreas, são retratados na revista em quadrinhos. “Precisávamos fazer algo mais popular para atingir esse público”, afirma Tamara. Os personagens tomaram outros espaços da empresa, como vídeos de treinamento e e-mails internos.

Outro ponto para o qual a empresa passou a olhar com mais atenção foi o canal de denúncia. Afinal, a empresa precisava fazer algo simples e seguro para que qualquer um dos 2.500 colaboradores, espalhados por 48 municípios, se sentissem confiantes para utilizar o canal. Para isso, contratou um time de psicólogas que fica disponível 24 horas por dia e que foi treinado exatamente para tratar com mais naturalidade e cuidado o denunciante. “Trabalhamos para promover o desenvolvimento local nos municípios onde atuamos, ou seja, queremos que os cidadãos-usuários de nossos serviços vejam na companhia um instrumento de transformação social, que levará mais qualidade de vida e desenvolvimento local”, diz Hamilton Amadeo, CEO da Aegea. 

O inimigo trabalha ao lado

Com tantos milhões desviados, algumas atitudes de companheiros de trabalho podem passar despercebidas aos olhos dos outros. E a corrupção está mais próxima do que muitos imaginam. De acordo com dados da consultoria PwC, 58% de todos os crimes econômicos envolvendo empresas são cometidos pelos próprios funcionários. Um dado preocupante.

A Movida é uma prova deste número. A empresa de locação de automóveis controlada pelo conglomerado JSL abriu capital no início do ano passado e precisa dar informações recorrentes aos seus acionistas. E uma das mais temidas por todos diz respeito a perdas por conta de carros roubados. Nos primeiros nove meses de 2017, último dado divulgado, a companhia já tinha perdido R$ 40,3 milhões com o furto de automóveis. Para diminuir esses números, a companhia vem aportando bastante dinheiro em soluções como o aprimoramento do sistema de biometria facial nas lojas, o aumento de rastreadores nos carros e compliance.

“Desta maneira, deixamos claro e transparente para os funcionários que a empresa não tolera atitudes deste tipo”, Renato Franklin, da Movida

A empresa também mantém um canal de denúncias e, assim que as recebe, passa a investigar o caso para saber se realmente a informação procede. Em uma das mensagens, foi colocado que um dos funcionários fazia parte de uma gangue que roubava carros. E, de fato, descobriu-se que, além dele, um outro funcionário estava infiltrado na empresa para facilitar o trabalho do grupo criminoso. Além da demissão por justa causa, a empresa abriu um inquérito contra a dupla. “Desta maneira, deixamos claro e transparente para os funcionários que a empresa não tolera atitudes deste tipo”, afirma Renato Franklin, CEO da Movida.

Uma imagem positiva, tanto de maneira interna quanto externa, é fundamental para que a empresa continue atraindo investidores e mão de obra qualificada. E, mesmo com uma política definida, um simples desvio de conduta ou de comportamento pode colocar tudo a perder. A Liq viveu esse problema em 2014, época em que ainda era chamada de Contax. Naquele ano, a empresa foi bombardeada de denúncias de assédio moral e desrespeito com os seus funcionários em contact centers. 

Para evitar que esse tipo de problema se repetisse, a empresa lançou, em 2016, o seu canal de compliance. Feito de maneira terceirizada e independente, a Liq conta com a prevenção de casos como esse. “Um dos principais pilares da área, se não o pilar fundamental, é a garantia de gestão da cultura ética da empresa”, diz Letícia Prebianca, responsável por toda a área de compliance da Liq. “Com a definição de um código de conduta ética, treinamento e canal de denúncia, é possível construir um ambiente de trabalho baseado no respeito”.

Outro fator positivo para a Liq com o compliance foi a conquista de contratos. Desde a promulgação da Lei Anticorrupção, diversas empresas solicitam o cumprimento de uma série de normas, entre elas a eficiência de fato do setor de compliance. Além disso, a empresa também passou a cobrar o mesmo cuidado com os seus prestadores de serviço e dois destes fornecedores tiveram contratos encerrados. “Somente os que concordaram em implementar e aprimorar seus programas de compliance foram autorizados a contratar com a companhia”, diz Letícia. 

Compliance não é só desvio

Todas as empresas citadas nesta reportagem possuem receitas bilionárias e aportam milhões nas áreas para mitigar riscos. Elas sabem que a falta de investimento pode resultar em prejuízos ainda maiores e já sofreram isso na própria pele. Mesmo com tantos exemplos, o investimento das empresas brasileiras em compliance ainda é tímido. De acordo com o estudo da KPMG com 250 empresas, apenas 9% aportam mais do que R$ 2 milhões na área. O lado positivo é que apenas 2% realizavam o mesmo investimento em 2016. 

Sócio da KPMG para a prática de compliance, Emerson Melo vem acompanhando a evolução das empresas nos últimos anos. Realmente existe uma aceleração dos programas, especialmente nas empresas que já estiveram envolvidas com corrupção e também de multinacionais. As empresas médias e pequenas, no entanto, pouco discorrem sobre o tema. Caso a resistência continue, pode ser tarde demais. “Diversas grandes empresas estão cobrando um compliance efetivo até dos pequenos fornecedores”, diz Melo.

Alguns profissionais da área também olham com ceticismo essa movimentação. Afinal, o compliance não pode existir somente na hora de fechar contratos milionários. As ações do dia a dia também precisam estar nos conformes do código de ética da empresa. “A área não pode ser algo para simplesmente inglês ver”, diz Maria Fernanda Teixeira, CEO da Integrow, consultoria especializada no tema. “Agora o compliance também tem de se atentar às questões morais”.

Um caso que chamou bastante a atenção recentemente foi a festa de fim de ano da subsidiária brasileira da Salesforce. Para animar os funcionários durante a festa, a empresa decidiu fazer um concurso da melhor fantasia – o vencedor levaria para casa R$ 3 mil. Um dos funcionários teve a ideia de se vestir de “negão do WhatsApp”. A tentativa de fazer graça, no entanto, não foi bem vista pela matriz americana. Três pessoas foram demitidas no caso: o funcionário que se fantasiou, um diretor e o então presidente da filial, Maurício Prado. 

A consultora Maria Fernanda ainda dá o exemplo dos almoços entre executivos. Não é incomum que para fechar um negócio ou até mesmo para networking um pague a refeição para o outro – muitas vezes em restaurantes caríssimos. Essa atividade é um dos grandes cuidados do executivo Sandoval Martins, CEO do Buscapé. Para ele, o exemplo tem de ser dado em todos os momentos.

“Deixamos claro aqui é que a ética não é diferencial, mas algo natural dentro da empresa”, Sandoval Martins, do Buscapé

Certa vez, no fim de um almoço com o presidente de uma grande varejista, uma certa tensão ficou no ar: os dois queriam pagar a conta. Ao mesmo tempo, os dois eram proibidos pelas empresas de aceitarem qualquer tipo de mimo. “No fim, decidimos rachar a conta”, diz Martins, aos risos. “Para você ver como parte do mercado está cuidadoso com esses problemas”.

E o CEO é cobrado aqui no Brasil e no exterior a seguir um rigoroso código de ética. Isso acontece porque o Buscapé é controlado pela empresa sul-africana Naspers, que tem capital aberto tanto no seu país de origem quanto em Londres, na Inglaterra. Todos os meses, Martins tem reuniões com os seus diretores jurídico e financeiro e a Naspers para reportar qualquer desvio de conduta na empresa. 

Um detalhe é que Martins não tem acesso direto às denúncias que ocorrem. Assim como mandam as melhores práticas de compliance, o setor é terceirizado e comandado pela consultoria Deloitte. Qualquer denúncia pode ir para o canal, inclusive contra o próprio CEO. “Nós incentivamos em todas as reuniões que os funcionários utilizem o canal de ética, inclusive para casos de abuso e assédio”, diz Martins. “E algo que deixamos claro aqui é que a ética não é diferencial, mas algo natural dentro da empresa”. 

Olhos bem abertos

Depois de tantos escândalos de corrupção, a ética tornou-se um diferencial. Mas para alguns setores pode ser uma questão de sobrevivência. O setor bancário é um dos mais vigiados e regulados das economias global e brasileira. Por aqui, todas as instituições financeiras respondem ao Banco Central. Aqueles que têm capital aberto também precisam ficar atentos a todas as normas e obrigações pedidas pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Há ainda o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF), do Ministério da Fazenda.

Além de todas essas limitações impostas, os bancos precisam cuidar ao máximo da sua imagem. Não é por mera publicidade. Um banco sem confiança é um banco quebrado. Peguemos o exemplo do Lehman Brothers: temores de que a carteira do banco estava infestada de títulos hipotecários podres o fizeram quebrar. Antes da comprovação, houve fuga de capital, o que acelerou ainda mais a dissolução da instituição. 

Logo, todo o cuidado é precioso para os bancos. Com o Itaú não poderia ser diferente. A empresa conta com uma robusta equipe de compliance – 160 colaboradores são ligados diretamente à área. Detalhe: outros 30 devem ser contratados ainda este ano. Trata-se de um número 20 vezes maior do que o da JBS.

“O Itaú tem, há bastante tempo, uma área dedicada à prevenção de lavagem de dinheiro muito bem estruturada e com um contingente expressivo de profissionais altamente qualificados, além de todo o suporte tecnológico”, diz Gilberto Frussa, diretor de compliance corporativo do Itaú Unibanco. “O avanço das Operações Lava Jato, Zelotes e outras obviamente nos fez reforçar a avaliação de todos os nossos processos, mas no sentido de dar sequência à evolução de um tema que sempre foi prioridade para nós”.

“Nós trabalhamos com processos internos que visam a identificar informações relevantes sobre a idoneidade e a atuação de nossos clientes, parceiros comerciais e fornecedores”, Gilberto Frussa, do Itaú

No banco, ética virou um verdadeiro mantra. Nos e-mails de todos os colaboradores, abaixo da assinatura, aparece uma mensagem: ética é inegociável. A mesma frase pode ser vista nas paredes da sede do banco, localizado no bairro do Jabaquara, na Zona Sul de São Paulo. O cotidiano também tenta trazer essa imagem para os funcionários. Qualquer tipo de reunião precisa ser registrada em uma ata, por exemplo. A criação de um produto também passa pelo crivo de órgãos superiores. 

Os treinamentos também são periódicos, o que, no caso do Itaú, não é algo tão simples. O banco possui cerca de 90.000 funcionários. Mesmo assim, todos os colaboradores precisam renovar o curso a cada dois anos e assinar um termo de conduta, afirmando que conhecem todas as regras. Entre os temas estudados estão ética empresarial, prevenção à corrupção e fraude, segurança da informação e prevenção à lavagem de dinheiro.

“Nós trabalhamos com processos internos que visam a identificar informações relevantes sobre a idoneidade e a atuação de nossos clientes, parceiros comerciais e fornecedores, bem como a origem e formação de seu patrimônio, comportamento empresarial, entre outros”, diz Frussa.

Uma cidade para administrar

Não é só o Itaú que tem trabalho multiplicado por conta do seu tamanho. É possível comparar todo o efetivo do Grupo Pão de Açúcar com uma cidade de médio porte, sem nenhum exagero. O contingente de 140 mil funcionários é maior do que a população de cidades importantes como Barueri e Atibaia, no interior de São Paulo. Se o tamanho já não era problema suficiente para implementar um programa de compliance, a empresa também possui capital aberto no Brasil e nos Estados Unidos, o que aumenta ainda mais os critérios de governança da varejista.

Para alcançar um grupo desse tamanho, o GPA precisou atirar para várias direções. A consultoria EY, por exemplo, é a responsável por auditar o setor de compliance e as denúncias. Outra estratégia foi criar um jogo dentro da intranet da empresa, mostrando situações de risco que poderiam ocorrer em uma fictícia companhia de distribuição – uma alusão, claro, ao GPA.

Nestas simulações, o funcionário é questionado a respeito da atitude que ele tomaria, sendo quatro opções: duas certas e duas erradas. “A intenção é mostrar que existem várias saídas para uma mesma situação, mas que uma pode ser mais certa do que a outra”, diz Marilia Loosli, responsável pelo compliance de toda a Companhia Brasileira de Distribuição, que controla todas as empresas do GPA, como Via Varejo e GPA Malls. A ação atingiu cinco mil pessoas.

Um dos exemplos do resultado alcançado por esse tipo de treinamento foi no departamento de compras. O principal gestor da área começou a perceber que as indústrias começaram a mandar amostras para testes em números muito elevados. Sabão em pó, chocolate, sorvete e afins. Alguns estragavam, enquanto outros sumiam. Ele foi atrás do setor de compliance para resolver a situação. Resultado: a criação de uma política de recebimento de produtos (agora, há apenas um mínimo permitido) e também uma forma mais produtiva de doação de itens que sobram.

Para alcançar todos os outros funcionários, a empresa faz treinamentos periódicos com gerentes regionais, que têm a responsabilidade de passar para todas as lojas que eles atendem. Com essas estratégias, o Grupo tenta evitar problemas que impactaram muito a antiga Cnova, que controlava todo o braço de comércio eletrônico do Grupo. De 2011 a 2016 sofreu com uma série de desvios de mercadorias que impactaram o balanço da empresa em R$ 177 milhões. À época, as ações da empresa também sofreram. “Não só pelo caso da Cnova, agora todas as empresas do Grupo têm novas regras e controles internos mais fortes”, diz Marília.

O papel da iniciativa privada

No mundo inteiro, há levantes contra a corrupção e o abuso de poder dos governos e partidos políticos. Portanto, a eleição de “outsiders” ou a ascensão deles não é por acaso. De acordo com um levantamento realizado pela Transparência Internacional, a percepção de corrupção nos partidos políticos é de 65% de toda a população global. Ou seja, trata-se de um movimento global.

Da mesma forma, a iniciativa privada não tem muito o que comemorar. A mesma pesquisa mostra que 45% das pessoas acreditam que a iniciativa privada do seu país é corrupta ou extremamente corrupta. Nos países emergentes essa percepção não é só maior, como é um fato que as empresas se envolvem em atos ilícitos. A consultoria americana FTI fez um estudo que mostrou que 83% das multinacionais instaladas em mercados em desenvolvimento tiveram algum tipo de perda causada por subornos ou fraudes. 

Com a Siemens não foi diferente. Além das irregularidades encontradas na própria sede da Alemanha, boa parte das fraudes estava em nações emergentes. O Brasil era uma delas. Em 2007, a empresa detectou em seu departamento de compliance global indícios de cartel nas disputas por vendas de trens ao governo do Estado de São Paulo. O caso ficou popularmente conhecido como “trensalão” e ainda teve a participação de outras multinacionais como a francesa Alstom, a espanhola CAF e a canadense Bombardier.

A Siemens decidiu procurar os órgãos locais competentes para fazer um acordo de leniência, como o Conselho Administrativo de Defesa Econômica, admitindo a sua participação e ainda dando detalhes do esquema. Com o vazamento da informação, a imagem da empresa foi para o buraco no Brasil. Ela foi bombardeada pela imprensa e a população. “Nos procuravam para comentar o caso, mas os órgãos não permitiam que falássemos nada, com risco de o acordo ser quebrado”, diz Goto, diretor de compliance da Siemens. 

Quase cinco anos depois, o caso está sendo esclarecido. A empresa e o Ministério Público Estadual caminham para um acordo que deve somar R$ 1 bilhão em multas. E a nova fase da Siemens pode ser vista até na mudança de sede global, em Munique. Desde o fim de 2016, a companhia está baseada em um prédio totalmente envidraçado por dentro e por fora. Ou seja, de uma longa distância, é possível ver os funcionários trabalhando em suas mesas. Uma metáfora perfeita do atual momento de busca por transparência. 

Mais do que nunca, a iniciativa privada tem de fazer parte dessa luta por um mundo mais lícito. Diversos especialistas apontam que as atuais operações podem ser um marco do combate à corrupção. Por outro lado, também há a possibilidade de ocorrer o que aconteceu na Itália, com a Operação Mãos Limpas – poucos anos depois, tudo voltou à bagunça de sempre. Hoje, o Brasil está na 96ª posição no ranking de corrupção da Transparência Internacional, atrás de países como Cuba, Turquia, África do Sul e a própria Itália. Alguma dúvida de que está na hora de mudar esse panorama que insiste em afligir o brasileiro?

Isadora Leone

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Mariana Ramos

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