Ímpar Entrevista - O papel da tecnologia na experiência do trabalho

Ímpar Entrevista - O papel da tecnologia na experiência do trabalho

A transformação digital e a incorporação da tecnologia no dia a dia resultaram em mudanças que impactaram não só nas relações interpessoais, mas também na forma como trabalhamos. Com o mercado cada vez mais competitivo, organizações de diversos segmentos estão investindo massivamente em ferramentas digitais para tornar o trabalho dos colaboradores mais fluido, eficiente e produtivo.

Uma pesquisa recente mostrou que o investimento das empresas com PD&I em TIC (Pesquisa, Desenvolvimento e Inovação em Tecnologia da Informação e Comunicação) passou de 45% em 2019 para 69% das empresas pesquisadas em 2022. Entre os resultados obtidos está o ganho de eficiência nas operações (64%). 

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Mas qual é o impacto que a tecnologia exerce sobre a experiência de trabalho dos colaboradores?

Quem vai nos ajudar a responder essa e outras questões é a Professora e Pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Christine Da Silva-Schröeder, que em 20 anos de carreira, se dedicou exclusivamente ao ensino e pesquisa de estudos na área de gestão pública, tecnologias de comunicação e informação, e gestão de pessoas. 


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Christine Da Silva-Schröeder

Nesta entrevista cheia de insights valiosos, Christine trouxe alguns pontos-chave sobre o tema, deu dicas e ainda falou sobre os desafios e oportunidades que surgem nesse contexto. Confira!

ÍMPAR: Quais foram as mudanças mais significativas que você observou em relação ao impacto da tecnologia na experiência de trabalho nos últimos anos?

CHRISTINE: Penso que foram várias as mudanças – algumas, porém, mais lentas do que outras. Ao me referir a “experiência de trabalho”, gosto de dar ênfase tanto à mudança na forma de trabalhar quanto à mudança na forma de aprender, pois me debrucei especialmente sobre esta segunda nos últimos 20 anos. E ainda vejo organizações enfrentando dificuldades com relação a elementos estratégicos que lá no final do meu Doutorado, em 2009, eu já abordava. As duas experiências de mudança, a meu ver, estiveram sempre conectadas – e isso parece cada vez mais contundente, até porque as experiências se mesclam ainda mais na realidade atual. Aprender a distância, trabalhar a distância, viver a distância, tudo se conecta.

No que tange ao Brasil especificamente, percebo uma discrepância ainda, não apenas tecnológica em si, mas sobretudo cultural, entre organizações do setor privado e do setor público. Mas o que me parece inegável é que a pandemia acelerou enormemente estas mudanças.

Organizações que já tinham uma cultura de autonomia e inovação em desenvolvimento e valorização pré-pandemia possivelmente enfrentaram os desafios da digitalização abrupta de forma, digamos, mais “resiliente”. Já há aquelas que, “passado o susto”, preferem não prosseguir na curva de crescimento da digitalização e retornar ao presencial total nos mesmos moldes do “pré-pandemia”. Não vejo como: me parece como caminhar sobre um rio e esquecer-se de que voltou com os pés molhados...

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ÍMPAR: Quais são os principais benefícios e desafios que a tecnologia trouxe para a gestão de pessoas e administração de empresas?

CHRISTINE: Minha resposta pode parecer suspeita por eu ser, digamos, há quase 40 anos (eu tenho 44), uma entusiasta de tudo que remete a tecnologia, sobretudo computacional. Porém, embora entusiasta, eu consigo ser crítica sem cair no outro extremo, o de vilanizá-la. Tecnologia, computacional ou não, é processo, é meio, é ferramenta – não salvação.

Na minha interação com empresas, vejo muito na fala de RHs e até de gestores a preocupação com “ah, essa é a melhor ferramenta!”, mas, em contrapartida, vejo pouca preocupação com relação a métodos, fluxos de trabalho, rotinas, criação de ambiente... Isso tudo é tecnologia humana! E, em termos gerais, julgo que estamos falhando miseravelmente quanto a isso.

Falando, então, em potenciais benefícios da tecnologia – desde que alinhada com a gestão humana e processual – eu citaria, principalmente: prover agilidade à tomada de decisão, organizar e gerenciar dados relevantes, ofertar diversidade de ferramentas de comunicação interpessoal, permitir que as pessoas trabalhem de qualquer lugar e a qualquer tempo utilizando equipamentos como computador e celular, reduzir (ao menos no médio prazo) custos operacionais para pessoas e empresas.

No que se refere aos principais desafios a serem enfrentados, contudo, me parece que estão muito mais ligados a elementos de gestão da cultura e do comportamento humano como resistências, preconceitos, falta de letramento digital mínimo, ansiedade comunicacional, desconhecimento acerca de gestão do tempo e sua relevância para a qualidade de vida e das relações, problemas ligados a pactuação de metas e desenho de fluxos de trabalho, a própria flexibilização do fenômeno da liderança, e, finalmente, a própria precarização do trabalho em vez de melhorá-lo, dentre outros.

ÍMPAR: Como equilibrar o uso da tecnologia com o bem-estar dos colaboradores em modalidades remotas ou híbridas de trabalho e, ainda, tornar o ambiente mais diverso e inclusivo?

CHRISTINE: A exemplo do que mencionei anteriormente, entendo que tudo passa essencialmente por três pontos: letramento digital e conscientização a respeito da mudança no trabalho como um todo; criação de ambiente de segurança psicológica; e formação maciça das lideranças para exercerem atividades de coordenação e controle em uma conjuntura atípica até então, que compreende trabalho remoto e/ou híbrido.

Em outras palavras, desenhar, permitir e flexibilizar realidades de trabalho cada vez mais customizáveis, mesmo em projetos e atingimentos de metas que são coletivos.

Bem-estar, não apenas no trabalho, mas na existência, necessita ser preocupação de todos, do empregado aos C-levels, para além de discursos motivacionais. Esse ambiente minimamente seguro requer planejamento, previsibilidade, sensibilização coletiva e comprometimento com a vida “para além do número do crachá”...

Esse mesmo ambiente “seguro” eu vejo, ainda, como potencializador para a inclusão das diversidades humanas.

Superada, em sua maioria, a barreira do acesso à tecnologia, o trabalho remoto tornou-se oportunidade preferencial para a inclusão de públicos que por vezes enfrentam potenciais dificuldades logísticas, de acessibilidade e até atitudinais para acesso a oportunidades, digamos, de trabalho presencial “tradicional”. 

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Pessoas diversas como, por exemplo, mulheres, mães, trans, pessoas que residem em áreas periféricas, pessoas 50+, pessoas com deficiência e neurodivergentes acabaram, durante a pandemia, se inserindo e reinserindo no mercado de trabalho via oportunidades de trabalho remoto. O remoto é libertador. O remoto é inclusivo. Por outro lado, eventualmente, modelos híbridos também podem ser inclusivos ao promoverem ambiência e socialização de formas diferentes e complementares a quem desejar. Mas não o híbrido “fake” das vagas que tenho visto: 90% presencial e 10% remoto!

Ah, mas e os layoffs? Grandes contratações, infelizmente, acarretam grandes desligamentos, que, em sua maioria, poderiam ter sido evitados com experiência de gestão e estratégia de RH que, na ascensão meteórica das contratações, algumas empresas não adotaram.

É o que tanto falo sobre previsibilidade, sobre criação de ambiente de segurança psicológica. E ele começa já (bem) antes do estudo de necessidades de mão de obra. Estratégia de RH gera previsibilidade, prevenção de problemas, segurança psicológica. E isso tudo garante inclusão em maiores níveis. A tecnologia é apenas uma potencializadora e facilitadora, nesse caso.

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ÍMPAR: Como a tecnologia influenciou na forma como as equipes colaboram e se comunicam?

CHRISTINE: Penso que depende de como a cultura é constituída. Ela tolera erros? Como os erros são vistos como oportunidades de aprendizado? Qual o tempo das curvas de aprendizagem com as experiências? As pessoas se comunicam apenas para “apagarem de incêndios” ou usam uma comunicação clara, concisa, constante, encorajadora, não-violenta, no dia a dia de trabalho? As tecnologias utilizadas permitem gestão adequada da informação e do teor da comunicação?

Dando um exemplo: usar grupos de WhatsApp para compartilhar documentos coletivamente e trocar ideias. Incrivelmente muitas organizações ainda fazem isso, mesmo tendo à sua disposição sistemas mais adequados e até mesmo de baixo custo, inclusive com versões freemium que permitem várias funcionalidades. Geralmente não vai funcionar bem. Que previsibilidade temos? Que organização? Como a documentação é pesquisada e analisada? A comunicação desrespeita os horários de descanso do trabalhador? Qual o potencial de geração de ruídos de comunicação?

Não é uma crítica à ferramenta em si, mas à inadequação do seu uso a certas realidades.

Ainda, se a comunicação é ineficiente e ineficaz no modelo tradicional de trabalho presencial, quem garante que melhorará se mediada por tecnologias? Se a gestão da comunicação (e sua análise) não for processo prioritário em todos os níveis da organização, ela continuará sendo problemática e repleta de gargalos também na comunicação digital.

ÍMPAR: Como a automação de tarefas têm afetado as habilidades e competências exigidas dos profissionais?

CHRISTINE: A tecnologia é apenas um instrumento. Entendo que ela deve nos fazer afiar nossas competências, e não aposentá-las.

Uma das polêmicas do momento envolve, por exemplo, o ChatGPT. Em particular, esta ferramenta tem gerado um rebuliço em várias áreas, e uma delas é a educação, em que atuo. Colegas questionam: “ah, mas se o aluno usar o ChatGPT para um texto? Como vamos saber?” O meu pensamento é de que práticas antiéticas e a “fraude de si mesmo” existem há muito mais tempo – não vieram com o advento da Inteligência Artificial.

A minha questão envolve não se importar se as pessoas usam tecnologia A ou B, mas “por que” usam e “para que” usam, e o quanto se permitem delegar à IA.

Em outras palavras, isso envolve o humano, ele próprio, definir os limites que ele dará ao uso da IA na sua rotina, e não o inverso. Pela sua própria consciência.

Usar a IA para, por exemplo, corrigir e organizar as ideias em um texto, agilizando sua elaboração, mas não dar à IA o poder de, sozinha, pesquisar, criticar, refletir criativamente. Isso – ao menos na minha percepção – é a fraude de nós mesmos. Eu não quero delegar minha criatividade ao ChatGPT (risos).

Até porque o que faz parte do zeitgeist* de agora nos traz, justamente, um paradoxo.

O Relatório do Fórum Econômico Mundial sobre o Futuro dos Empregos, recém-publicado em maio de 2023, cita que as dez habilidades mais demandadas dos profissionais (core skills), segundo as organizações que participaram do estudo, são, nesta ordem: pensamento analítico; criatividade; resiliência, flexibilidade e agilidade; motivação e autoconhecimento; curiosidade e mentalidade de aprendizado para toda a vida (lifelong learning); letramento tecnológico; orientação a detalhes; empatia e escuta ativa; liderança e influência social; e, finalmente, controle da qualidade.

Esta automação, entendo, precisa ser uma coadjuvante no desenvolvimento das habilidades que são requeridas a nós, e não a protagonista, caso contrário, todos nós perderemos nossos empregos e, pior, nossa perspectiva de criar, empreender e desenvolver.

Eu trabalho na fronteira entre o desenvolvimento humano e a tecnologia há, pelo menos, 20 anos. E ainda acredito que o primeiro precede o segundo. Não há como pensar apenas na tecnologia com humanos adoecidos, inseguros, que não desenvolveram habilidades comportamentais e educacionais suficientes para enfrentar o que vivemos hoje. O mau uso das tecnologias disponíveis pode amplificar esse abismo. O bom uso pode nos tornar melhores pessoas e profissionais.

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* Expressão em alemão que se refere ao espírito predominante de uma determinada época, o ethos ou o indicativo dos tempos. Em essência, representa a combinação do ambiente intelectual e cultural global.

Juliana Neiva

Head of Communications | Communication Executive | Communication Strategy | Change Management | Digital Plrojects | Internal Communications | Corporate Communications

1 a

Adorei a entrevista!!! Parabéns!

Christine Da Silva-Schröeder, PhD

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Christine Da Silva-Schröeder, PhD

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1 a

Agradeço muito pela oportunidade de contribuir!

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