4. Recursos didáticos
No Brasil e em outras partes do mundo, frequentemente os materiais didáticos consistem essencialmente em manuais escolares, que atuam como um programa escolar: o papel dos professores é “seguir” as propostas feitas por autores e editores. Mesmo quando alguns modismos ganham espaço no mercado de materiais didáticos, eles acompanham esse modelo de propor um programa curricular. Não há justificativa pedagógica razoável para a manutenção desse modelo de atuação: se professores de diferentes turmas da mesma série, em uma mesma escola, são desafiados a apresentar estratégias de atuação distintas, como se pode imaginar que um grupo pequeno de autores e editores saberiam do que necessitam milhões de alunos? É claro que não sabem!
O manual escolar não nasceu exatamente para ser um receituário de práticas de sala de aula a serem seguidas pelos professores. Ele sempre teve uma relação dúbia com o currículo escolar, por certo, mas sua função era basicamente auxiliar o aluno em seus estudos. Quem não podia contar com livros próprios, por exemplo, ia a uma biblioteca pública para retomar os “pontos” abordados em aula, tirar dúvidas e elaborar textos solicitados pelos professores. Esses livros antigos eram curtos e, em muitos casos, eram utilizados para instruir crianças e adolescentes em casa, de forma que pudessem realizar os exames e acessar um determinado segmento escolar.
O que chamamos hoje no Brasil de “livro didático” é um defunto que professores insistem em carregar nas costas, a exemplo do personagem amadiano Quincas Berro D’Água, cuja morte não foi reconhecida pelos amigos, que seguiram carregando seu corpo pela cidade como se ainda tivesse vida. O livro didático não responde às demandas atuais da escola, especialmente o fato de que a escolarização em massa atendeu a necessidades sociais que se modificaram ao longo do tempo e, agora, lhe é exigida uma flexibilidade que ela não possui, no sentido de respeitar os tempos de aprendizagem distintos das pessoas, assim como seus projetos de vida.
A evolução tecnológica colocou de cabeça para baixo essa ideia de que haveria respostas prontas às perguntas: poucas pessoas hoje olham para as dezenas de volumes de uma enciclopédia Barsa e entendem que há ali todo o conhecimento – isso nunca foi uma verdade, mas podia-se fingir haver alguma totalidade no universo do conhecimento, o que explodiu completamente com os avanços das tecnologias de informação. Quanto ao disciplinamento da mão de obra, um argumento frequentemente utilizado para justificar a instituição escolar, bem, cada vez menos empregadores precisam de funcionários que se limitem a localizar respostas em um texto pronto: o cumpridor de tarefas ainda tem espaço em sociedades profundamente autoritárias, como a brasileira, mas parece estar com os dias contados, já que os setores da economia mais dinâmicos, que correspondem àqueles que reproduzem capital de forma mais eficiente, dependem de quem consiga enxergar soluções para os problemas e, assim, produzir inovação.
Parece arriscado, nesse cenário, apostar em inovação escolar reproduzindo a estrutura do livro didático: por mais bem embalados que sejam os textos desse tipo de livro (a diversidade de gêneros textuais é bem-vinda), o que se está propondo que professores e alunos realizem juntos em sala de aula? Basicamente o professor é um vulgarizador das ideias contidas no livro e o aluno, um localizador de informações.
Mesmo professores que fazem uso frequente de livro didático em sala de aula reclamam que não encontram nele desafios intelectuais e sugestões de práticas escolares em diálogo com as demandas de seus alunos. Para isso, precisam fazer fotocópias de outros materiais e também inventá-los, a despeito de esse trabalho intelectual raramente ser remunerado e ainda implicar custos para os professores.
Recursos, meios e materiais didáticos
Para elaborar situações de ensino e aprendizagem, os professores precisam conhecer os recursos didáticos de que dispõem. O quadro conceitual a seguir pode ajudar a compreender melhor o que professores mobilizam nas situações de ensino e aprendizagem.
O objetivo desse quadro não é desafiar você a estabelecer conceituações a respeito dos recursos didáticos. Ele serve bem à crítica que se pretende fazer a respeito do livro didático: ele tem sido formulado, há algumas décadas, como um recurso didático, definindo instrumentos, estratégias e materiais didáticos. Isso limita a atuação dos professores e empobrece as situações de ensino e aprendizagem, pois decidir como agir e, assim, articular instrumentos, estratégias, materiais e ferramentas são decisões fundamentais para o êxito do aprendizado e não podem ser tomadas por alguém que não está no comando das situações de ensino e aprendizagem.
Ao elaborar um material didático, é fundamental, portanto, observar que ele pode ser utilizado em contextos muitíssimo diversos, posto que vai integrar, na escola, meios e recursos didáticos distintos: quanto mais flexibilidade no uso, mais chances de o material atender aos professores em situações distintas.
Voltemos a nosso exemplo da oficina de pão de queijo
Que recursos didáticos são adequados aos objetivos pretendidos?
Há diversas combinações possíveis para estruturar as três oficinas: um instrutor que conta apenas com um projetor e computador não pode escolher fazer a receita com os alunos, pois não dispõe das ferramentas de que necessita para preparar a massa e assá-la com eles; isso, portanto, é um condicionante muito significativo para escolher os materiais didáticos e também os meios didáticos (instrumentos e estratégias de ensino).
Um instrutor com um projetor e computador pode sentir dificuldades de oferecer uma oficina com o objetivo de os alunos aprenderem a preparar pão de queijo, pois eles não poderiam realizar as etapas de preparo junto com o instrutor; no entanto ele pode gravar previamente cada etapa e exibir o registro em aula, explicando e discutindo todos os detalhes, de forma que os alunos possam repetir as ações em suas residências. Nesse caso, o material didático precisa contemplar muitas instruções e também espaço para as anotações dos alunos, de forma que ele possa apoiar as atividades em casa.
Essas escolhas não implicam, necessariamente, que se adote uma metodologia convencional de ensino, com aulas expositivas e demonstrações em vídeo: a aprendizagem baseada em projetos ou em resolução de problemas não depende de se ter disponibilidade de ferramentas numerosas e/ou sofisticadas. Organizados em grupos, os alunos podem, por exemplo, receber desafios para a aula, com uso de dinâmicas e jogos de tabuleiro, sendo a gravação prévia da etapa de preparo do pão de queijo um material didático periférico no plano da aula.
De toda forma, fica razoavelmente evidente que há uma articulação entre instrumentos, estratégias, materiais e ferramentas, por meio da qual se chega à formulação de situações de ensino e aprendizagem. Em nosso exemplo, o material didático mais apropriado para cada oficina depende das ferramentas de que dispõe o instrutor e também de sua experiência profissional – a cada vez que ele organiza uma nova oficina, os resultados das anteriores influenciam suas escolhas.
Na educação básica brasileira houve uma inversão, motivada, claro, pela enorme escassez de ferramentas de uso didático (nem mesma a lousa é um objeto universal nas redes de educação!), e o material didático assume o lugar do meio didático e da ferramenta: estamos falando de um tipo muito específico de material didático, o livro didático. Isso implica menos autonomia para articular diferentes recursos didáticos de acordo com o que se tem em mãos e com as demandas dos alunos.
(Este é o quarto texto dessa série; nos anteriores, você encontra reflexões a respeito dos objetivos de aprendizagem, de conteúdos conceituais e procedimentais e também sobre avaliação. O próximo texto é dedicado ao mercado de didáticos no Brasil.)