5. O mercado editorial escolar
A lógica do livro didático – ele supostamente se basta como meio e material didático – atende uma demanda bastante específica: os negócios das editoras responsáveis por sua elaboração.
Um material didático pode, claro, ser massificado (jogos de tabuleiro e kits de montagem de objetos, são exemplos) e estar presente nas salas de aula em todo o mundo. No entanto, quando o material didático pretende ser único em um programa escolar e passa, inclusive, a trazer prontas decisões quanto aos instrumentos, às abordagens e aos objetivos de aprendizagem, bem, isso traz implicações graves ao mercado editorial escolar: é o que acontece com o modelo de livro didático que vigora atualmente no Brasil. Algumas características ajudam a compreender como ele funciona:
- Uma coleção de livros didáticos inclui livros de um ou mais de um componente curricular para cada um dos anos letivos que compõem um segmento. Assim, uma coleção de Língua Portuguesa das séries iniciais do ensino fundamental é composta de, pelo menos, 5 livros, um para cada ano – em muitos casos, cada ano letivo pode contar com mais de uma publicação, abrangendo cadernos de atividade, livros literários e atlas.
- Na rede pública, quem paga por esses livros é o governo federal (por meio do Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD) e/ou os governos estaduais e municipais; na rede privada, esse custo é repassado aos pais e responsáveis pelos alunos – tanto os livros didáticos como as apostilas dos chamados sistemas de ensino são pagos à parte em relação às mensalidades escolares, ou seja, as escolas privadas não assumem os custos com materiais didáticos; em geral, compram apenas ferramentas de uso didático (como lousas, projetores, material de laboratório etc.); em algumas escolas há ainda compras de modelos didáticos, mapas e livros literários e informativos para sua biblioteca.
- Um livro didático para uma série específica de um segmento é pensado para ser utilizado ao longo de todo o ano letivo e em todas as situações de ensino e aprendizagem – as coleções pretendem abranger ações didáticas em sala de aula e fora dela, com e sem professor. Frequentemente se diz que esse livro contempla “tudo o que precisa ser ensinado” em um ano letivo, o que é problemático em muitos aspectos. Nessa afirmação, a prioridade é o que se ensina, não o que se aprende, que depende, como já discutimos nos textos anteriores desta série, de se conhecer a demanda da comunidade escolar, o que é impossível de ocorrer em um material que circula nacionalmente. Há, ainda, uma pergunta inevitável: “tudo” é uma possibilidade em educação? Mesmo que uma coleção se atenha ao currículo nacional, como o preconizado pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o que se tem ali é um norte para as escolas, não os objetivos de aprendizagem e as sequências didáticas que a escola precisa elaborar para (e com) sua comunidade. Há, ainda, que se perguntar a respeito do papel dos currículos elaborados pelos estados e municípios para suas redes escolares: as editoras têm possibilidade de oferecer esse modelo de livro didático ajustado para as 27 unidades da federação e os mais de 5 mil municípios?
A pergunta anterior nos leva ao coração do modelo de negócio das editoras de didáticos: um catálogo enxuto de coleções didáticas com tiragem de milhões de exemplares, de forma que a rentabilidade seja extremamente elevada.
- Algumas demandas antigas das escolas, como a compra dos livros por módulos, de forma que se adquira apenas aquilo que efetivamente se vai utilizar, nunca foram plenamente atendidas, exatamente porque não apresentam a mesma rentabilidade do modelo atual, em que o livro (e, em muitos casos, a coleção inteira, com diversos componentes) é uma unidade indivisível – algumas supostas inovações na divisão de livros do ensino médio em módulos não contemplam a compra apenas de uma parte da coleção: mesmo dividida, a unidade mínima de compra é a coleção completa.
- O livro didático é autorreferente: para elaborar um livro novo, autores e editores levantam o que é abordado nas demais obras do segmento (muitas vezes, apenas as obras mais vendidas são avaliadas) e elaboram a estrutura editorial. Isso significa que a lista de assuntos/temas e as seções que terá o livro são decididas com base no que existe – recentemente o governo federal solicitou que as coleções inscritas no PNLD atendessem à BNCC e o que as editoras fizeram foi, basicamente, encontrar nas obras existentes tudo que poderia ser associado à lista de habilidades da BNCC: uma página de atividades, por exemplo, é apontada como uma situação que propiciaria o desenvolvimento de uma habilidade e, assim, ela é marcada como atendida! Portanto, tomar esse modelo de livro como recurso didático completo está longe de garantir a implementação de um currículo, como acredita parte dos gestores de educação.
- Os livros didáticos são elaborados como um conjunto de prescrições a professores e alunos: eles dizem exatamente o que os alunos devem fazer e fornecem respostas e sugestões de ação didática exclusivamente a professores. Esse modelo de livro é visto por gestores de educação como uma suposta alternativa à má formação inicial, o que faria dele um caderno de receitas. Essa ideia mágica de que bastaria enviar uma “receita” a ser seguida pelos professores é completamente falsa, até mesmo para o ensino de culinária, já que a decisão de usar essa ou aquela receita passa pelos ingredientes e equipamentos disponíveis, assim como pelas expertises de quem vai realizá-la, o que é bastante similar ao que ocorre nas escolas com esses livros didáticos (e apostilas de sistemas de ensino, que guardam enormes semelhanças em sua estrutura e elaboração).
- O livro didático, em geral, não é acompanhado de nenhum outro material didático: ele se apresenta como o único material necessário para as situações de ensino e aprendizagem; apenas ferramentas seriam complementares a ele. Isso é uma limitação enorme para a criação de situações de ensino e aprendizagem eficientes: diversos instrumentos de aprendizagem (cinema, música etc.) e também materiais didáticos imprescindíveis à aprendizagem (jogos, modelos em três dimensões, objetos táteis etc.) ficam eclipsados pelo modelo de negócio do livro didático; em algumas situações, são vistos como complementares (e acessórios) à proposta didática contida nos livros didáticos – há até situações em que as próprias editoras de didáticos criam publicações e outros materiais didáticos complementares e os indicam internamente no livro didático e/ou promovem a chamada “venda casada”.
Nesse cenário, é muito pouco provável que se tenha um mercado dinâmico de materiais didáticos.
De tempos em tempos, algum modismo consegue chacoalhar um pouco esse modelo, mas em algum tempo ele é engolido pelas empresas de didáticos sob essa mesma lógica. Dois exemplos significativos são o ensino por investigação, centrado em laboratórios de ciências naturais, e a robótica, com seus kits de aprendizagem de programação e eletrônica. São propostas bem fundamentadas e capazes de contribuir para o atendimento de demandas de aprendizagem, mas geralmente são esvaziadas quando chegam à escola sem modificar a lógica de formulação de suas ações didáticas. Além disso, nas escolas públicas, apenas são comprados livros didáticos, então essas inovações não contam com subsídio financeiro e dependem de iniciativas pontuais; nas escolas privadas, são priorizados os materiais individuais a serem comprados pelos pais e responsáveis, o que acaba por ser absorvido por empresas de didáticos – muitos materiais de ensino de robótica já são oferecidos no mesmo modelo do livro didático, com prescrições de uso que se assemelham a uma receita a ser seguida por professores e alunos, o que esvazia completamente o que essa proposta didática teria de mais significativa, a autonomia do aluno.
Fora do Brasil, há diversos exemplos de tipos de materiais didáticos que contribuem para que as escolas contem com um repertório de produtos educacionais, que elas possam articular de acordo com seus planos de trabalho. Destacamos três tipos de materiais no quadro a seguir.
Quando se trata de ferramentas de uso didático, tem-se um mercado razoavelmente pulverizado, que oferece objetos e soluções tecnológicas para laboratórios e também para as salas de aula convencionais. Já os materiais didáticos não contam com essa configuração: entre os produtos educacionais, pode-se observar que os materiais didáticos estariam nos primeiros lugares em um ranking de volume de negócios, mas a quase totalidade desses recursos financeiros são destinados a livros didáticos e apostilas de sistemas de ensino – menos de 10 empresas de didáticos movimentam a maior parte desse montante.
O livro didático constitui-se em um dos entraves para o florescimento de empresas com outros tipos de material didático, tanto pela difusão de sua lógica de organização como por sua forma de financiamento.
O PNLD, principal programa de compra de livros didáticos, tem um formato que favorece a adoção de um pacote fechado de material, exatamente como já se organizam as editoras de didáticos, com um preço baixíssimo devido às enormes tiragens. No mercado privado, tem-se o modelo disseminado de compra do material didático por pais e responsáveis dos alunos, o que implica grande desincentivo por materiais de uso coletivo – o livro didático e a apostila do sistema de ensino são apresentados aos pais e responsáveis como de uso individual de seus filhos, o que justificaria não serem responsabilidade da escola.
Na ausência de um mercado dinâmico e rentável de materiais didáticos para além do livro didático, há pouco investimento no desenvolvimento desses produtos educacionais. Os cursos universitários de prática de ensino, nas licenciaturas, organizam, em alguns casos, laboratórios de formulação de materiais didáticos, mas raramente essas produções saem do ambiente universitário, mesmo aquelas destinadas ao público com deficiência visual (cegos e pessoas de baixa visão), que são uma das demandas mais mal atendidas nas escolas.
Faltam a essas produções artesanais possibilidade de serem confeccionadas em baixo custo e também uma narrativa mais bem elaborada – jogos, maquetes, objetos em 3D, por exemplo, demandam o trabalho de profissionais de fora da licenciatura para circular em um mercado de produtos educacionais.
Uma alternativa atual é a utilização de laboratórios de fabricação digital, chamados de fablabs, que contam com equipamentos de corte e de construção de objetos capazes de propiciar uma finalização eficiente dos materiais criados, assim como uma pequena escala de produção. Os repositórios coletivos de projetos permitem que pessoas com poucos conhecimentos cortem materiais duros com precisão e usem impressoras 3D para confeccionar objetos. Parece ser um caminho promissor!
(Este é o último texto da série; os anteriores abrangem objetivos de aprendizagem; conteúdos conceituais e procedimentais; avaliação; e recursos didáticos. Caso queira ler todos os textos reunidos em um documento, basta baixá-lo clicando aqui.)