Acerca da Arte do Conto e da Crônica
O conto e a crônica escritos se firmam no século XIX da nossa era, embora suas origens remontem ao passado. Por exemplo, a crônica nobiliárquica foi comum na Idade Média e o conto oral acompanhou, certamente, os albores civilizacionais. A crônica está ligada a uma narração cronológica, muitas vezes ao cotidiano, majoritariamente, embora possamos ter produções cronísticas que sejam extremamente psicológicas, como as de Clarice Lispector. Uma fábula ou uma parábola seriam um tipo de conto, mas de fundo moralizante, algo muito comum desde a Antiguidade, basta citar um dos mais famosos contos da Bíblia, o Livro de Jó. Desse modo, o conto sempre aliou-se ao maravilhoso ou ao anormal do cotidiano.
A acepção de conto e crônica é vasta, no entanto, interessa-nos mantê-la larga somente enquanto rastreamos as suas fundações. A partir deste pormenor de etiologia, podemos nos deter na forma e conceito em voga desde meados do século XIX, ambos, no Brasil, firmados por Machado de Assis, isso didaticamente podemos afirmar nos valando da leitura de Antonio Candido e de sua ideia de sistema literário que inclui, a tradição, o autor, a obra e o público.
Os contos explorariam anormalidades do cotidiano, já a crônica tentaria captar a plasticidade de elementos do cotidiano. Assim, a crônica via de regra soará mais simples que o conto. De toda forma, podemos encontrar contos que tenham pouca profundidade psicológica e muita extensão narrativa, e crônicas que façam o caminho inverso, aprofundando questionamentos acerca da vida. Deve-se isto ao dinamismo da crônica em aceitar tudo em sua composição, até mesmo o conto. Este aspecto maleável de não rechaçar, mas absorver outros gêneros de textos, tem razão no mercantilismo que rege o gênero textual crônica. A necessidade de “tapar” um buraco na mancha tipográfica de uma página de jornal diário, caderno semanal, revista, ou, simplesmente, o compromisso do veículo de comunicação em sempre oferecer semanalmente um texto de um autor consagrado aos seus assinantes, faria com que a crônica saísse como saísse, até porque muitas vezes essa era a saída financeira de alguns autores. Quero dizer que a crônica era o ganha-pão de escritos renomados e com bastante liberdade e aceitação para criar. O problema, a questão, da crônica e sua elasticidade enquanto gênero seria a sua proximidade com o jornalismo e com a historiografia. A crônica, como já diz o nome, estaria associada ao tempo, a cronus. Todo este contexto influencia nos gêneros, de modo que podemos considerar que o conto é um texto que conhece melhor as gavetas de uma escrivaninha que a crônica, ou seja, a crônica, pelo que estudamos, raramente descansa nas mãos do autor. Por mais que a crônica seja boa, dificilmente será fruto de uma lapidação semelhante a que sofre o conto e o romance. Por conseguinte, o texto perde em literariedade e o impacto é certeiro na forma e no conteúdo, o que leva muitos críticos a tachar a crônica como gênero menor na literatura. No entanto, isso não é novidade, muito menos para quem a praticou ou pratica, de modo que não nos interessa aqui expor porque o gênero seria baixo, menor.
A crônica é um fato literário e temos que lidar com ela. Assim, podemos ter em conta que a crônica pode vir a ser uma espécie de “making off” do processo de escrita dos autores. Isso porque sabemos que dos muitos autores que praticaram a crônica, poucos ou somente um entrincheiraram-se nela: Rubem Braga, enquanto todos os outros se desmembravam entre poesia, contos, romances, reportagens, teatro, artigos científicos, livros técnicos, etc. O que quero dizer é que: enquanto um escritor trabalha numa obra de maior vulto, podemos vislumbrar o processo através da crônica. Recordo de uma crônica de um autor que estava se exercitando em traduções de Shakespeare, Molière e Racine, e aproveitava a crônica para dividir o resultado com os leitores. Recordo que uma crônica ou outra de Vinícius de Moraes pode ser relacionada a uma canção escrita. Recordo que um livro de Fernando Sabino se baseia em uma de suas crônicas, e por aí vamos. Então, a crônica serve de laboratório para os autores que se enveredam por gêneros que necessitam de mais tempo e gaveta para ficarem bons literariamente.
Formalmente, o conto teria uma situação única, espelharia um conceito de efeito único, ou seja, haveria um sentido singular que enfeixaria os incidentes do conto convertendo-os para uma isotopia semiótica. O conto centraria sua tensão num conflito que se avolumaria e depois teria a força dissipada num desfecho tônico, preferivelmente, tônico, por vezes. A tensão surgiria da anormalidade de um incidente em que seriam agregados mais e mais elementos tensivos num curto espaço de tempo, até ser atingido o limite da tensão e o necessário desfecho inesperado, surpreendente, abrupto, impensável, inumano. Como se fosse uma fotografia, o conto seria um recorte de uma realidade, e aqui a crônica não se distingue muito, a não ser pela possibilidade de alterar a ideia do texto ou por outras ideias realizar digressões.
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O conto em seu formato tradicional, teria sempre personagens, espaço, tempo, enredo, cenário, etc, e num simulacro tentaria manter a tensão escamoteando o desfecho surpreendente, o que, numa leitura do cabo ao introito, nos guiaria por um desfecho antecedido por uma história secreta no enredo. Essa história secreta, a duplicidade do conto dentro do conto, seria a artimanha excelsa do gênero, que surpreende e fascina, de acordo com as postulações teóricas de Edgar Allan Poe.
Por sua vez, entre outras definições, a crônica seria uma conversa do escritor com o leitor. Não teria a rigidez formal comparável aos outros gêneros textuais e literários e por isso poderia mudar de conteúdo e forma sem precedentes e avisos. Por sua diversidade de conteúdos, baixa expetativa e sabida falta de tensão, não estabeleceria o efeito único comum no conto. O efeito único seria uma progressão de expectativa, portanto um elemento narrativo e não temático. A oralidade, assuntos digressivos e a troca de assunto, o fecho que não é tônico, não é ascendente, e que também evita a depressão, antes finaliza o texto numa planície estésica, são elementos da crônica moderna, de maneira geral. Todos os elementos que possam ser listados como integrantes da crônica são acessórios porque a crônica não possui elementos essenciais de estilo literário, formato e conteúdo.
A brevidade do conto moderno corresponderia ao estilo de vida moderno. Simultaneidade e precariedade são palavras para descrever o conto e mesmo a crônica, ambos definidos pelas extensões, mas não só, pois este é um ponto auxiliar na distinção dos gêneros. O conto descreve uma situação geralmente bem delimitada cronologicamente. A extensão demasiada causaria uma dispersão da tensão característica do gênero contístico. Normalmente, no conto somente um ou dois personagens têm alguma profundidade, mas não é incomum que nenhum personagem tenha nome e seja caracterizada e desenvolvida. No século XXI, alguns contos quase nada abarcam de pormenores de personagens, espaço, tempo, enredo, cenário, etc, aproveitando-se de etapas narrativas implícitas que o leitor deve e pode reconhecer, como, por exemplo, acontece nos contos de Marcelino Freire. Diferente do romance em que há um encadeamento de peripécias, no conto. há, geralmente, apenas um conflito. Citando, Tchekhov, “se num conto aparece uma espingarda, ela tem que disparar.”. Ou seja, a economia diegésica impera no gênero conto.
A crônica em geral é um texto pessoal em que vigoram as observações do escritor, suas recordações, reflexões e seleções, aquilo que ele vê no dia a dia, sem preocupação de fidelidade, e, neste aspecto, se aproxima do fazer literário no aspecto imaginativo e criativo do conteúdo. Por tratar de elementos do cotidiano, as crônicas menos reflexivas e mais descritivas tendem a envelhecer, ficarem datadas, mas nem por isso perder o sabor literário. Entendemos que do exercício da crônica advém romances, contos e novelas, mas fica a indagação sobre se de romances, novelas e contos advêm crônicas. Supomos que um estudo da obra de Moacyr Scliar poderá clarear essa questão porque este autor produziu concomitantemente estes gêneros.
Por fim, difícil proferir ideias sobre o conto que não se apliquem à crônica, e vice-versa. A dificuldade de abordagem aumenta quando elencamos contos e crônicas que por serem bons diferem do cânone de um e de outro. Mário de Andrade tinha razão: “conto é aquilo que o autor quer que seja conto” e o mesmo parece se aplicar à crônica.