Além da tecnologia: como iniciar uma conversa significativa sobre mudanças na organização
Implementar novas tecnologias não é difícil porque as pessoas não querem progresso, mas porque é necessário conectar as tecnologias aos objetivos das pessoas.
Com o lançamento de ferramentas de inteligência artificial generativa como o ChatGPT (que está longe de ser a única, mas, até então, é a mais bem sucedida), não é novidade para ninguém que inauguramos uma nova era organizacional. Uma profusão de posts e artigos em mídias sociais argumentam sobre como esse é um momento de “viver ou morrer” para muitas profissões, que precisam aprender a utilizar as novas tecnologias ou serão engolidas por elas. Mas será que essa é a abordagem mais eficiente?
No século XIX, durante os primórdios da Revolução Industrial, um movimento de trabalhadores ingleses do ramo de fiação e tecelagem decidiram destruir máquinas como forma de protesto. Os ludditas (termo gerado a partir do nome de Ned Ludd, um personagem fictício criado para representar o movimento) acreditavam que as máquinas trabalhavam “de maneira fraudulenta e enganosa”, por ignorar as práticas geradas pela tradução dos trabalhadores. Portanto, segundo a lógica deles, as máquinas precisavam ser destruídas, e, o progresso técnico, interrompido. Para os “tecnoinfluenciadores” de hoje em dia, parece que quem não utiliza ferramentas de IA são os novos ludditas.
Margaret Wheatley, no clássico livro “Leadership and the New Science”, conta a história de um trabalho que fez com universidades que estavam passando por um processo de adoção de novas tecnologias (naturalmente, na época ainda não era a IA generativa). Mas a narrativa se parece coincidentemente (ou não) similar à de hoje em dia:
“Já trabalhei com algumas faculdades dilaceradas pela disponibilidade de tecnologia. Os professores mais ávidos pela tecnologia acusam os reticentes de serem antiquados e resistentes à mudança - eles repreendem seus colegas por não entrarem na onda da tecnologia. Eu sempre sugiro que uma conversa diferente é necessária.”
Aqui, vale um ponto: quantas vezes você já percebeu uma certa “superioridade moral” em pessoas que se sentem mais preparadas com alguma tecnologia? Quantas vezes viu “evangelistas de web3”, “arautos do metaverso” ou “especialistas em ChatGPT” (uma ferramenta com meses de vida) posicionando-se como arautos de um novo mundo? Wheatley continua o argumento no livro:
“E se pararmos de assumir que o valor da tecnologia para um professor é autoevidente? E se pararmos de presumir que quem não adota novas tecnologias é um antiquado luddita cujo único interesse é interromper a marcha do progresso? Se desistirmos dessas suposições, podemos iniciar uma conversa diferente, que nos ajude a nos conectar uns com os outros e aprender mais sobre como cada um de nós vê o mundo.”
Várias são as possíveis respostas à não adequação a uma nova ferramenta. Algumas delas, por exemplo, são:
Por isso, assim como Wheatley promoveu novas conversas sobre a utilização de tecnologias, acredito que precisamos propor novas conversas sobre tecnologia. Não apenas sobre tecnologias emergentes como a IA generativa, mas todo tipo de tecnologia que têm o potencial de gerar impacto positivo no trabalho das pessoas, e hoje é encarada com certa resistência.
Como alguém que teve muitas experiências na implantação de novas tecnologias para o trabalho, acredito que alguns passos podem ajudar a tornar esse processo menos doloroso e mais eficiente:
Avaliar a ferramenta de forma racional e objetiva
Antes de tentar convencer alguém de que uma nova ferramenta deve ser utilizada, vale uma pergunta sincera: faz sentido utilizá-la?
A verdade é que muitas vezes o que parece um caso de uso incrível é apenas um expectativa inflada. É sempre útil lembrar do famoso Hype Cycle de novas tecnologias do Gartner:
Quando o que se busca é fazer testes, aprender e experimentar, sou completamente a favor de se deixar levar por tais expectativas. Porém, quando o objetivo é convencer as pessoas a adotarem uma nova tecnologia, ou mesmo fazer o rollout da nova tecnologia para toda a organização, me parece importante avaliar com calma se você não está confundindo resultado com hype.
Aqui é importante identificar, de forma objetiva, alguns elementos antes de adotar qualquer tecnologia de forma mais dedicada:
Considerando que a tecnologia muda a dinâmica de trabalho das pessoas, é importante que não seja tratada com paixão, e sim com racionalidade, para garantir que será o mais útil possível.
Entender as necessidades e motivações dos usuários
Explorar quais as necessidades e motivações dos usuários é fundamental para identificar como as novas ferramentas e tecnologias podem ser úteis para eles. É o que começa a, parafraseando Margaret Wheatley, “nos conectar uns com os outros e aprender mais sobre como cada um de nós vê o mundo.”
Antes de tentar convencer as pessoas a utilizar uma ferramenta porque o trabalho dela vai ficar mais eficiente (eu mesmo já me peguei fazendo isso dezenas de vezes), é melhor dar um passo atrás e buscar entender o seguinte: que problema aquela pessoa está tentando resolver?
Eficiência e produtividade, apesar de ser aparentemente desejado por todos e uma das principais funções de uma nova tecnologia, não necessariamente é um objetivo de todas as pessoas. Lembro de conversar com uma pessoa que muito admiro sobre uma nova tecnologia, dizendo que tornaria seu trabalho mais eficiente. Ela, que tem um trabalho fundamentalmente criativo, me fez entender que apesar de eficiência ser interessante, não era sua prioridade: sua prioridade é que o produto final ficasse melhor. Argumentos sobre tempo perdido não me ajudariam a convencê-la a adotar a solução que eu estava propondo.
Claro, muitas vezes, algumas pessoas resistem a mudanças porque estão confortáveis com a forma como as coisas são e não querem sair da zona de conforto. Nesse caso, compartilhar possíveis riscos da não mudança pode ser um argumento eficaz. Outras podem ter baixa confiança nas novas tecnologias, ou receio de que elas possam prejudicar o trabalho ou a privacidade. Nesse caso, é importante entender as razões por trás da resistência e abordá-las com empatia e comunicação eficaz.
Inclusive, o ChatGPT tem participação assídua nessa newsletter. Não, meus artigos, ou parte deles, não são escritos pelo ChatGPT. Porém, ele é uma ferramenta excepcional para brainstorming de ideias: muitas vezes, quando não tenho certeza sobre como organizar um conjunto de ideias, ou mesmo quando estou buscando novas referências sobre um dado assunto, utilizo a IA generativa para me apontar caminhos e me tirar do “bloqueio de escritor”. Testei um bocado até perceber como ele se adaptava à realidade da minha atividade, e a partir daí comecei a usar com frequência.
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Oferecer suporte e treinamento
Muitas vezes, a falta de conhecimento e habilidade dos usuários pode ser uma barreira para a adoção de novas tecnologias. E, naturalmente, pressioná-los ou tratá-los como ludditas definitivamente não ajuda.
É importante fornecer treinamento e suporte adequados para garantir que a equipe se sinta confortável e confiante ao utilizar essas novas ferramentas. Mesmo ferramentas com uma interface simples, como o ChatGPT, parecem intimidadoras. Na primeira vez que a utilizei, gastei um tempo pensando: “o que posso perguntar?” É claro que rapidamente, no caso de uma ferramenta como essa você pega o jeito, mas esse não necessariamente é o caso com um novo ERP ou uma ferramenta de automação de processos, por exemplo.
Por isso é importante garantir que treinamento e suporte são processos contínuos, e não pontuais. Realizar um treinamento e pressupor que todos já são proficientes em uma nova ferramenta é uma receita para o fracasso. Até porque, treinamentos não servem apenas para aumentar a proficiência das pessoas nas ferramentas, mas para aumentar sua familiaridade. Pode ser que algumas pessoas que não estão acostumadas com aquele perfil de ferramenta precisem ver a mesma informação diversas vezes para absorvê-la, enquanto outras mais acostumadas com tecnologia rapidamente se tornarão proficientes por conta própria.
É importante ter paciência. O treinamento e suporte adequados são essenciais para garantir uma transição suave e eficaz. Dedicar tempo e energia a isso é fundamental, especialmente considerando que apesar de um grande esforço inicial, o suporte fica mais simples quando as pessoas “pegam o jeito”.
Reconhecer os apoiadores e incentivar o compartilhamento
Sem dúvidas, a liderança pode desempenhar um papel fundamental na adoção de novas tecnologias. São os líderes que irão incentivar a equipe a mudar, e irão fornecer os recursos e suporte necessários para a transição. A liderança pode também dar o exemplo ao utilizar essas ferramentas e tecnologias e pode motivar a equipe ao demonstrar como elas podem melhorar o trabalho e a empresa como um todo.
Porém, a experiência me mostrou que descentralizar essa responsabilidade dos líderes é fundamental.
Todas as vezes que trabalhei na implementação de alguma nova tecnologia, desde novos ERPs a plataformas de automação, reparei que, por um bom tempo, eu era reconhecido como o “pai” da ferramenta. Todas as dúvidas eram direcionadas a mim, assim como, naturalmente, todas as reclamações.
Porém, aos poucos, aproveitei os 1:1s (reuniões individuais) com os membros mais proficientes do time nas ferramentas para oferecê-los conhecimento avançado nas plataformas, desde como criar automações a como criar relatórios (no caso dos ERPs).
Essa estratégia não apenas foi útil para descentralizar conhecimento, mas para descentralizar responsabilidade: quando essas pessoas começaram a mostrar sua proficiência para os demais, especialmente para seus pares, comecei a perceber uma utilização cada vez maior de uma ferramenta, e uma busca mais natural por ajuda. Esses pedidos de ajuda aconteciam cada vez mais para os pares que dominavam as ferramentas do que para os líderes.
Veja bem, sempre busquei ser um líder próximo que dá suporte às pessoas. Mas a natureza do trabalho do dia a dia das posições é diferente, e aprender sobre a ferramenta com um par que conhece profundamente a natureza do seu trabalho torna o processo ainda mais familiar.
Entender quem são os apoiadores da nova ferramenta, que podem se tornar referências para seus colegas no seu uso é fundamental para criar uma nova cultura em relação à tecnologia sendo implementada. Você não pode considerar uma ferramenta como efetivamente implementada caso seu uso dependa exclusivamente de um grupo pequeno de pessoas.
Criar um ambiente propício para testes
Retomando o ponto central da introdução, a adoção de novas tecnologias depende fundamentalmente da nossa capacidade de nos conectarmos com as razões das pessoas utilizarem as tecnologias e, a partir daí, convencê-las e ensiná-las a usar a tecnologia para alcançarem seus objetivos.
Mas parte da dificuldade de qualquer processo de adoção se dá pela cultura, mais forte ou menos forte em cada organização, de manter o apego ao status quo. E é claro que algum apego ao status quo é útil, afinal de contas, seria ineficiente reinventar a roda a cada trimestre: é importante que as pessoas se acostumem a fazer as coisas de certos jeitos. Essa inclusive é a base de qualquer processo de gestão de processos.
Mas construir uma cultura de curiosidade e abertura para novas ferramentas pode diminuir a “resposta imunológica” da organização a uma nova ferramenta, sem perder a diligência de ser orientado a processos. Se as pessoas estão acostumadas a falar de novas ferramentas, de compartilhar boas práticas, ou mesmo de discutir sobre tecnologia e seus efeitos (como falar sobre “o que pode mudar no seu trabalho com o ChatGPT”), naturalmente sua curiosidade com as novas ferramentas tende a aumentar. Pode ainda haver uma resistência inerente ao processo de adaptação e aumento de proficiência, mas você diminui a chance de ter uma tecnologia renegada simplesmente porque é “diferente de como fizemos”.
Arthur C. Clarke, escritor britânico de ficção científica, tinha entre suas leis acerca da relação entre o homem e a tecnologia a seguinte máxima:
“Qualquer tecnologia suficientemente avançada é indistinguível da magia”.
A primeira vez que utilizei o ChatGPT, percebi um pouco dessa magia. Mas apesar de ser uma tecnologia com um grau de mistério ainda maior, também senti essa magia na primeira vez que utilizei uma plataforma em nuvem, ou mesmo quando rodei um script de automação de processos. Boas tecnologias não só aumentam nossa produtividade, como despertam nossa criatividade.
Por isso é fundamental não nos deixarmos levar pela narrativa sensacionalista, que leva as pessoas para a tecnologia pelo medo. Quando as ajudamos a adotarem tecnologias a partir de seus próprios motivos e inspirações, permitimos que sintam essa mágica, e que se tornem cada vez melhores no que fazem.
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