Amores Retraídos
Autora: Eliane Ganem - Crônica extraída do livro Crônicas do Meu Interior

Amores Retraídos

       Saudades do teu corpo que me envolve na madrugada, nos sonhos silenciosos e adormecidos, perdidos na ausência do teu cheiro que me acorda e me sacode pras coisas da vida. Pena que os anos que nos separam não tenham a inocência da eternidade que se agiganta sobre as nossas cabeças velhas e repletas de condicionamentos. Pena que o olhar das pessoas ignorantes avance em nossa direção com o dedo enfiado em nosso coração adolescente, efeito do abismo dos anos que nos distanciam. Metade do meu eu adolescente te ama e se despedaça como o enfeite do bolo dos casamentos desfeitos, e a outra metade parte em esquecimento, cansada e desbotada, longe da possibilidade de te ter menino em minha cama para sempre. E por um ato de desvario da minha parte insana, te quero como a melodia que me acalentava os primeiros anos, te quero como a tempestade anseia o grito amoroso dos raios, como a flor espera ser beijada até à dor pelo bico dos pássaros, pela língua áspera das borboletas que pousam aqui e ali, saltitantes de curiosidade. Uma vida nos separa, alguns filhos da tua idade, alguns amantes que tive, alguns casamentos bem sucedidos, algumas atitudes coerentes, algum zelo pelos desvalidos, algumas infinitas esperas pelo ser amado, algumas frustrações, inúmeras alegrias, alguns versos vertidos ao vento, algumas melodias que marcaram toda a minha vida. Nos separam as noites sem dormir da minha solidão agora quase esquecida, o som do vento batendo em minha janela nas madrugadas frias quando nem o edredom esquenta, os muitos livros que li, os sonhos que escrevi, os momentos em que pari crianças que saíram do meu ventre. Nos separa ainda a intimidade dos mais velhos com a vida, um estar à vontade num canto miúdo em que os desejos desesperados estão guardados no fundo de um baú repleto de um passado esquecido. Nos separam também a ausência de expectativa, a falta da busca desenfreada, os interesses, os amigos, os olhares que nos criticam, as dúvidas, os prejuízos de uma relação destemida, o calor das suas cobranças ingênuas, o sentimento de perda que sempre me acompanha quando meninas da tua idade te devoram quando você passa. Nos separam ainda a tua mochila nas costas, os livros que você lê pra faculdade, os trabalhos em grupo que preenchem a sua casa, o riso disfarçado dos colegas quando miram em seus olhos a nossa insegurança, o nosso ar insolente, o nosso medo convencido, o nosso “gosto e daí”, o nariz empinado, os nossos traços marcados pelas noites mal dormidas de um amor exagerado, a nossa paixão que não passa, o terror da perda pelos dois lados. Não sei se posso amar assim, sentindo que o ar que respiro tem a sua essência escondida e é ela que me mantém mais viva, mais viçosa, como a rosa já madura reage bem à aspirina. E me levanto reconstituída todos os dias, a energia do teu corpo carregado me mantém como os raios do sol alimentam esta velha Terra, este planeta que permanece, mesmo debaixo do ataque destrutivo dos homens que a exploram. Não sei se posso amar assim tão correspondida, tão entregue ao acaso da vida, tão livre dos preconceitos da minha mente mal resolvida, tão aberta aos ataques dos inconvenientes, tão sua e tão abandonada por mim. Não sei se posso amar assim sem cobrar nada do seu comportamento, sem me abater pelo seu esquecimento de menino, pelas brincadeiras nos bares, pelas arruaças de rua, pelo seu jeito carinhoso de deitar em meu pescoço e dormir, pelo sentimento materno que sinto às vezes quando o meu colo está repleto do seu sorriso e você me olha matreiro pedindo mais conforto além daquele que deposito em seu peito, no aconchego dos nossos abraços tão íntimos.

Uma pena perder você pra esse mundo que te leva, pra vida que exige a sua presença fora dos espaços seguros do meu quarto agora vazio. É estranho te ver de longe me acenando, como as inúmeras vezes em que você chega e eu te espero na janela, alegre e aliviada pela tua presença que preenche a rua inteira de uma luz intensa. É estranho te ver acenando e fico pensando no dia da tua partida, mochila nas costas, sem o sorriso de sempre, no olhar uma mistura de medo e conquista, nas mãos um punhado de tempos vividos, muito amor no equilíbrio do teu corpo infinitamente repleto de mim.

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