Angústia é um gato cinza na Janela

Angústia é um gato cinza na Janela

Meus pais me contaram que a primeira palavra que eu falei não foi "mamã" nem "papá". Foi "babalo". Papai, feliz, achando que eu seria uma futura amazona premiada, presenteou-me com o "Castainho" - meu cavalo de infância.

Mamãe decorou meu quarto de pônei rosa e o móbile em cima do meu berço era um carrossel. Até 12 anos, eu montei a cavalo. Cheguei a tentar os saltos como papai, mas me apaixonei mesmo pelo teatro e pela dança. De cavalo, ficou somente a decoração do quarto.

Acontece que eu sempre tive um fascínio por bichos. Não é uma coisa de criança que gosta de bichinho do Zoológico. É algo mais intenso. Eu queria ser bicho por 1 dia e sentir como é viver por instintos, sem nenhum tipo de racionalidade. Quando criança, obviamente, eu ainda não tinha nenhuma percepção sobre o que isso indicava da minha personalidade. Eu queria ter animais selvagens em casa sob o meu comando:

- Pai, eu quero ter um tigre ou um leão

- Mas, filha, a gente não pode ter isso! - Eu não lembro qual foi a resposta de 7h15 do meu pai (ele é prolixo!), mas lembro de finalizar com um novo pedido:

- Quero um coelho então! - Papai me deu um coelho. O coelho morava no terraço da cobertura da minha avó Vera, onde eu ia todos os dias. Eu brincava com o coelho, dava comidinha pro coelho, mudava o nome do coelho toda semana. Um dia, o coelho sumiu.

- Vó, cadê meu coelho?

- Tatolinha, o Paulinho, marceneiro, levou. - Eu chorei copiosamente de raiva. Paulinho, o marceneiro, virou o vilão de todos os desenhos animados que eu assistia. Como eu sofri com a falta do meu coelho sem nome...

Há alguns anos, quando eu ainda morava com meus pais, eu estava sozinha no meu quarto, quando vi na janela da frente um gatinho (cinza de patinhas brancas) pendurado pelo lado de fora, fugindo do fogo da cozinha.

O bichinho tava com o corpo todo esticado pra fora agarrado pelas garras das patas. Eu entrei num desespero absurdo. Gritei enlouuuquecidamente buscando por ajuda. Cheguei a tentar contar qual andar do prédio era pra avisar ao porteiro, mas eu não raciocinava! Continuei gritando e gritando; as pessoas do meu prédio e do prédio em frente foram abrindo suas janelas pra entender o que acontecia. Palpitava aceleradamente meu coração, eu tremia de forma involuntária e chorava de raiva por não saber como ajudar o bichinho.

A minha pressão caiu e eu desmaiei. Eu não sei e achei melhor não saber que fim levou o gatinho na janela. Quando eu acordei, já não tinha mais nada acontecendo. Silêncio. Eu fiquei alguns dias bem abalada. Depois que eu digeri aquela cena, tirei novas conclusões sobre a vida.

A gente acha que sentimento é só pra sentir, não dá pra ver. Mas dá sim! Eu vi a angústia na janela da frente. Angústia é um sentimento sem nenhuma nobreza. É saber que tá no bolso do outro a solução que você quer.

Diferente de sofrimento. Afinal, como é maravilhoso enveredar pelos novos caminhos e pelas nunces que uma dor traz. Dostoiévski construiu verdadeiros impérios russo-literários com personagens inebriados de dor e sofrimento. A filosofia de Schopenhauer é toda calcada em sofrimento da vida. Sofrer é legítimo! Mas a angústia não, é pura aflição. Angústia corrói a gente por dentro e por fora. Dilacera a nossa possibilidade de agir pra solucionar.

Diante disso, eu procurei condicionar a minha postura na vida, a minha relação com o mundo, vomitando todas as coisas que eu penso e acho de tudo e de todos. Sem muitos pudores sobre o quê falar e pra quem falar justamente pra evitar chegar numa relação ou em uma situação angustiada. Não é fácil adotar esse caminho. Eu sigo engasgando e enfrentando dificuldades, porque há em todos nós uma gaveta de sentimentos frágeis com os quais precisamos lidar. Externar essa combinação de palavra e sentimento que nos compõe é, certamente, mais honesto com o que está dentro da gente, com a nossa essência. É menos sufocante.

Eu passei a acreditar que pra cada frase não dita, cada ideia não executada, cada "deixa pra lá" que a gente inventa, é um gatinho na janela que a gente deixa de salvar.

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