Aprendizados sobre a escrita para não se perder no lamaçal da página em branco
Enquanto eu escrevia a dissertação do mestrado, criei um grupo no Whatsapp comigo mesma onde fui anotando, aos poucos, o que funcionava para mim nesse processo. No começo, eu anotava coisas para me ajudar a manter o ritmo e me organizar mesmo nos dias ruins, mas depois notei que aquelas dicas sobre a mecânica da escrita falavam mais sobre mim do que o próprio trabalho e que seria ótimo poder registrá-las em forma de texto também.
Relendo essas anotações recentemente, eu percebi que os meus bloqueios se encontravam fora das camadas óbvias em relação ao ato de escrever. Muitas vezes, o que nos trava não é necessariamente uma falta de técnica ou de conhecimento sobre o assunto, precisamos olhar também para as nossas crenças, sentimentos e emoções em relação ao momento da escrita.
No fim, esse texto virou praticamente uma (longa) carta autobiográfica para mim mesma, com cinco dicas para reler em outros momentos da vida, quando eu estiver presa naquele bloqueio pantanoso da página em branco. Percebi também que algumas dessas anotações serviriam não somente para textos acadêmicos, mas também para me aventurar em outros tipos de escrita.
1. Coloque-se no momento da escrita propositalmente
A primeira coisa sobre a qual eu quero jogar luz é: a inspiração existe? Existe. Mas não é ela que vai fazer você entregar seu artigo, tese ou dissertação no prazo. Por isso, a principal dica, ao meu ver, é: comece. Não espere sentir-se na vibe da escrita, porque a procrastinação produtiva está aí e você vai inventar de limpar até os enfeites de natal para adiar esse momento. Ligue o computador, abra o editor de texto, sente diante dele e comece.
Um ótimo primeiro passo é simplesmente colocar algo no papel. Não relute, porque isso só vai te travar ainda mais. Escreva de forma livre, no fluxo do seu pensamento, como se estivesse contando uma história a alguém de forma informal. Deixe para corrigir a gramática depois. Desapegue também de “começar do começo”, lembre-se que você está num computador e o ctrl+c e ctrl+v estarão ao seu alcance para organizar o seu texto da forma que achar melhor a qualquer momento.
Então, se vem algo na sua cabeça, um fragmento de frase, uma ideia, não julgue se são bons ou ruins, ESCREVA. Mesmo que você vá apagar metade do que escreveu depois. Às vezes, uma única frase daquele parágrafo de dez linhas pode te ajudar a desenvolver o raciocínio do capítulo como um todo e, provavelmente, você nunca chegaria nela se não tivesse escrito as outras nove.
Caso você tenha pouca familiaridade com o tema, comece listando as palavras-chave sobre o assunto. Com elas, vá formando frases, ideias, parágrafos. Reúna dados históricos, busque inspiração em imagens (mergulhe no Pinterest). Essa pesquisa vai conduzindo o seu raciocínio e te levam a insights que funcionam como fagulhas para iniciar o texto.
2. Não perca a intimidade com o texto
A segunda dica pode parecer paradoxal, mas ela é o complemento da primeira: saiba a hora de parar de escrever. A escrita demanda espaços vazios também. É preciso distanciamento para a criatividade.
Mas quando sua escrita estiver parada, não fique dias e dias sem olhar para o texto. Se distancie sem criar um sentimento de rejeição. Abra, releia, corrija, limpe, organize. Esse movimento já te faz ter ideias.
Nos dias em que não estiver inspirado, ou num dia que vc esteja diante do computador, mas não esteja em paz (com interrupções, barulhos, etc) use para pesquisar dados, fazer revisões, acertar as referências bibliográficas.
3. Nunca abra mão de ser autêntico e relevante
A autenticidade é o que pode fazer o seu projeto ficar mais interessante e se diferenciar do que já foi escrito sobre o assunto. Portanto, coloque-se no seu lugar, seja ele qual for. Não se cobre a escrever algo como uma pessoa com anos de experiência. Mesmo a partir de uma visão de iniciante, você pode fazer muitas contribuições, mas precisa ser sincero na sua escrita e não tentar parecer ser o que você não é.
Para ser relevante, questione-se durante todo o processo: qual é o propósito do meu texto? Qual é a contribuição que quero dar sobre o assunto? Entenda que quase nunca seu trabalho vai ser uma nova tese genial. Às vezes, a originalidade está na forma como você organiza as ideias, como você coloca em palavras o que muitas pessoas sabem mas ninguém sistematiza, quando você apresenta um outro ponto de vista sobre um assunto e até quando resume ou simplifica algo muito extenso. Os melhores textos são os que trazem aquelas reflexões apuradas que alguém se dedicou a registrar.
Seja minimamente bom no que você está falando. Abandone o “parecer” e comece a “ser” um pesquisador. Você não precisa falar de TUDO, fale de um grão de areia, mas seja um especialista no seu objeto. Estude, anote, questione o que vc está lendo, exercite contrapor os autores dos textos que você lê e, principalmente, por favor, se esforce para ir além da crítica, oferecendo qualquer fresta de solução às problematizações apresentadas por você.
4. Tenha satisfação em organizar o seu texto
A primeira coisa que você precisa ter em mente é que é improvável que você consiga escrever naquela ordem que você aprende nas aulas de redação (introdução – desenvolvimento – conclusão). Mas não se prenda a isso, esse arranjo depois acontece naturalmente. Para que um texto fique bom, é preciso muitas idas e vindas, como um costurar, para ficar bem arrematado, coeso, coerente. E isso demanda organização e método. Amadurecer o texto é tão importante quanto escrevê-lo. Dedique tempo à essa organização, pense nela como uma parte feliz do processo.
Trate seu texto de forma profissional. Crie um sistema de pastas organizado – na nuvem, de preferência – nomeie e separe os arquivos de texto e imagens corretamente, sem preguiça. A organização por trás da escrita não é só para facilitar, mas também para motivar, para ajudar a pensar rápido e voltar tranquilamente ao ponto de bala.
Para textos curtos, inicie fazendo tópicos frasais sobre o que você quer abordar, em afirmativas simples, uma abaixo da outra, como uma lista. Depois, quando estiver ficando denso, vai separando os assuntos em categorias e grupos de temas. Mas não crie esses grupos antes, isso só vai te deixar mais amarrado, é melhor que eles surjam naturalmente.
Se o seu texto for extenso – como uma dissertação ou um livro – transforme cada assunto, cada capítulo, num projeto único. Crie documentos separados para cada assunto/conceito que você quiser desenvolver, isso vai te ajudar a focar e quebrar o seu texto em objetivos menores. Em cada doc criado você vai colocar tudo que já tem de anotações e citações em relação àquele tema. Reabra os livros e fichamentos, anotações de palestras, de cursos, de aulas, e vá distribuindo as marcações para cada tema (sempre referenciando para não se perder depois).
Perceba que é interessante também criar um doc para a introdução e para a conclusão, porque ao longo da escrita frequentemente vêm ideias e insights mais gerais, que servem para explicar o trabalho como um todo e vai ser muito mais fácil ter isso registrado aos poucos do que parir tudo de uma vez depois.
Tenha sempre uma lista de tarefas mais práticas, como reler o parágrafo tal, pesquisar sobre o conceito “X” ou consertar as normas ABNT, para fazer quando tiver pouco tempo ou em dias de mente confusa, e uma lista com tarefas mais complexas, mas que também merecem estar anotadas, para você saber exatamente o que fazer naquele dia em que você tem a tarde toda livre.
5. Para não perder o entusiasmo, faça uma gestão profissional do seu tempo
Para trabalhos mais longos, gerir o tempo pode se tornar um problema. Portanto, se você tem um prazo final, ainda que ele esteja muito distante, use a lógica da conta reversa. Eu inventei isso porque sou uma pessoa que funciona melhor com limites. Ser deixada na liberdade plena de decidir, sem um limite mais próximo e palpável, é algo que me deixa ansiosa e a ansiedade me afasta da escrita. Então criei uma espécie de jogo comigo mesma, estabelecendo um número de palavras que eu precisava escrever diariamente (e semanalmente) para chegar no dia da entrega com felicidade e o texto pronto.
Para fazer esse cálculo, pegue um calendário e veja quantos dias livres você terá para se dedicar ao seu texto até a data final, que pode ser a da entrega ou simplesmente uma data que você mesmo definiu. Estipule (no chute) quantas páginas você precisaria ter até lá, um mínimo para que seu trabalho seja considerado pronto. No caso de artigos para revistas acadêmicas, esse número costuma ser pré-definido, o que facilita.
Então, com a ajuda da ferramenta de contar palavras (tem em todos os editores de texto), veja quantas palavras cabem em uma lauda de texto com as formatações de margem e fonte que você tem que seguir e chegue a um número de palavras que você precisaria escrever por semana/ por dia para atingir aquele número de páginas “X” que você estipulou. Anote a sua meta diária e semanal em um papel, cole-a em um lugar visível and go write!
Calma! Não se trata de prostituir a aura do seu texto em números, mas isso realmente vai te ajudar a se planejar, a saber quanto tempo tem que se dedicar na semana, a dizer NÃO para os compromissos extras que surgirem (“não posso, desculpe, estou atrasada com o texto essa semana”) e, principalmente, vai te ajudar a saber quando você poderá parar e simplesmente curtir a vida sem preocupação de estar sendo relapso. É uma forma meio estranha de gerir o tempo, a culpa e a ansiedade, mas comigo funcionou muito.
Essas foram algumas das dicas que anotei para mim mesma nessa jornada.
Muitos falam sobre O QUE escrever, mas sinto que há poucos textos sobre COMO escrever, deixando parecer que isso acontece naturalmente, como se fosse um dom. Não é assim. Eu escrevi outro texto que fala exatamente sobre como escrever pode ser uma agonia.
É importante olhar para esse momento como uma forma de se conhecer, anotar o que funciona para você nos dias bons, para saber como se colocar novamente nesse modo quando a inspiração e a motivação não vêm.
Se você achou que esse texto foi útil, compartilhe ele com mais alguém que esteja no perrengue da escrita precisando ser inspirado. =) .
Texto publicado originalmente no meu blog Fotografia em Prosa.
Todas as fotos deste artigo são autorais. Conheça o meu portfólio de fotografia.