Arte Kintsugi para valorizar nossas cicatrizes
Você conhece a arte japonesa chamada de "kintsugi”?
Tomando café com meu amigo-irmão Gui Rangel , reaprendi sobre a técnica de restauração na qual a cerâmica ou porcelana quebrada é reparada com resina misturada a pó de ouro, prata ou platina, destacando as cicatrizes como parte de sua história em vez de tentar escondê-las. A tradução literal é “emendar com ouro”, onde kin significa ouro e tsugi é emenda.
Não me lembrava mais dessa arte desenvolvida a partir do século XV, com raízes históricas na filosofia wabi-sabi, derivada do taoísmo, centrada na impermanência, na beleza da imperfeição e na simplicidade.
A ideia maravilhosa dessa arte soa tremendamente contemporânea e totalmente aplicável para nossas vidas. Primeiro, porque carrega em si o princípio da sustentabilidade, sem pensar no descarte automático de um objeto que teve avaria. O segundo ponto ainda mais poderoso é a valorização das marcas causadas pelo desgaste do tempo, intencionalmente ressaltadas como evidências desejáveis da história daquela peça, apresentando-as como símbolos de beleza que merecem admiração.
Em vez de sobrevalorizar a juventude permanente e a perfeição, a arte entende a mutabilidade da identidade - o desgaste, o envelhecimento, as rachaduras - como fato enriquecedor.
A inspiração do kintsugi para nossa vida vem fácil. Da mesma forma que a prática japonesa, podemos abraçar a imperfeição, a impermanência, e valorizar os desafios e escoriações vividos em nossa jornada, acumulados durante nossas realizações, conquistas, privações e superações.
Algumas das “cicatrizes” que carregamos são literalmente na pele, outras são interiores.
Lembro de longas conversas com outro bom amigo Dênis Barba sobre a impermanência, conceito bem cultivado no budismo, onde tudo é visto como transitório e inconstante.
Claro que muita coisa pode durar eternidades. Minha mãe mora na mesma rua há 55 anos, eu trabalhei 29 anos na 3M, a TV Globo exibe o programa Fantástico nas noites de domingo há 50 anos. Mas você sabe que, no infinito, e nem precisa ser tão infinito assim, as coisas mudarão, você mudará.
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O casamento pode se romper depois de anos (ou durar para sempre como no caso dos meus pais), um dia você parou de gostar daquele doce (eu adorava brigadeiros na infância e de repente, troco tudo por uma chicória), aquela época maravilhosa no trabalho dá lugar um clima esquisito (todo mundo já passou por isso), aquele partido que se manteve 71 anos no poder perde as eleições (este caso, foi no México), uma pessoa muito querida se vai repentinamente… No fim, estamos nos transformando continuamente, como tudo ao nosso redor.
A valorização das cicatrizes me soou maravilhosa e muito bem-vinda em mundo obcecado pela perfeição, seduzido pela ideia de juventude eterna, regido pela ditadura da felicidade e pela superficialidade.
O kintsugi nos ensina a valorizar inclusive o que se rompe dentro de nós, as mudanças do corpo, as conquistas e frustrações, as experiências felizes e doloridas, o movimento contínuo de transformação.
Linda e bem-vinda mensagem honrar nossas história e todos os eventos de nossa vida, incluindo as perdas, sofrimentos, erros.
Tenho algumas cicatrizes visíveis e conscientes, outras mergulhadas no inconsciente. Até que cheguei bem aos 50 anos com poucos fios grisalhos, o mesmo baixo peso que tinha aos 20 e só algumas dores nas costas.
Dentro de mim, já vivi muitas felicidades, experiências, conquistas. Mas também ganhei preciosas e pedagógicas “fraturas”… o diagnóstico de saúde do meu filho, a perda de meu pai, um divórcio, algumas frustrações profissionais inevitáveis, algumas relações desgastadas ao longo do tempo…
Estamos ali, remendados, mas firmes, nunca perfeitos, mas ainda lindos, frágeis, prontos para afinar caminhos, em constante mudança, acumulando experiências, ampliando o repertório emocional, com cicatrizes internas e externas, que contribuem para nossa evolução.
Essa inspiração nos ajuda a olhar para nossos “remendos” com maturidade e admiração, valorizando todo o processo interno de regeneração e resiliência como dimensões que fazem parte de nós e que nos levam adiante.
Que a gente tenha essa compaixão e valorização ao olhar para nossas próprias “cicatrizes” e para perceber as “rachaduras” das outras pessoas com a mesma poesia dessa linda filosofia-arte-ciência do Japão.
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10 mQue lindo isso, Luiz Serafim! Amei ter lido hoje, numa sexta-feira, pra ter o final de semana para continuar refletindo e interiorizando essa história. Faz muito sentido mesmo. Obrigada por compartilhá-la com a gente.
Idealizador e Presidente do HUB Suzano | Líder Local do World Creativity Day Suzano 2024 | Criatividade e Inovação para a Transformação Social
10 mExcelente Serafim!!! Realmente, transformar as marcas e cicatrizes das experiências vividas em aprendizados é uma competência e tanto! Haja maturidade! rsrsrs Parabéns pela sensibilidade na escrita e analogia trazida para reflexão.
SXSW speaker | futurista | pesquisador | advisor | autor | top voice latin america
10 mAcredito que a vida só faz sentido quando reconhecemos nela uma oportunidade e um processo constante de construção, desconstrução e reconstrução. É um ritual pessoal e perene de kintsugi, em que o nosso momento presente é apenas uma das muitas formas transitórias com que nos manifestamos no decorrer da nossa jornada.
SXSW speaker | futurista | pesquisador | advisor | autor | top voice latin america
10 mAbsolutamente fantástica a sua reflexão, meu brother from another mother! E que honra fazer parte das muitas inspirações que você colhe pelo mundo.
Arquiteta do Futuro do Trabalho | Modelos, Espaços e Futuro do trabalho possíveis e sustentáveis | Criatividade, ESG, mobilidade e cidades inteligentes
10 mCultura japonesa realmente é muito inspiradora Luiz, obrigada por compartilhar esse conceito tão lindo