A busca da equidade de gênero deve se articular à luta antirracista

A busca da equidade de gênero deve se articular à luta antirracista

Escrito por Daniela Piffer e Renata de Paiva Puzzilli Comin

Neste mês da Consciência Negra, gostaríamos de refletir a respeito do papel fundamental que o Grupo de Estudos Esperança Garcia tem desempenhado em nossas vidas desde 2021. Para isso, é preciso regressar a 2020, quando os protestos e discussões sobre o assassinato de George Floyd pela polícia nos Estados Unidos ocupavam não apenas opinião pública, jornais e redes sociais, mas também todos os aspectos de nossas vidas profissionais e pessoais. 

Residente nos Estados Unidos, Daniela envolvia-se diariamente em diálogos sobre racismo e reflexões a respeito de como implementar uma prevenção mais eficaz no ambiente de trabalho. No Brasil, por sua vez, Renata participava da criação do movimento antirracista na escola do filho. O objetivo era promover uma transformação curricular para tornar o ambiente mais acolhedor para pessoas negras, fossem elas crianças, familiares, professores(as) ou demais funcionários. 

Estávamos imersas em estudos, leituras e conversas. Participamos de grupos antirracistas e nos esforçamos para nos tornar aliadas ativas. Sentíamo-nos engajadas, mas, ao mesmo tempo, percebemos algo impactante: o quanto desconhecíamos a realidade do Brasil.

Foi durante uma conversa que ficamos sabendo das inscrições para o novo Grupo de Estudo Antirracista Esperança Garcia, criado pelo Women In Law Mentoring Brasil (WLM). O convite foi um chamado, pois tivemos a oportunidade de nos conectar a mulheres negras e brancas que pretendiam se reunir para discutir e aprofundar o entendimento a respeito do racismo. Já compreendíamos, àquela altura, que essas mulheres negras, com toda generosidade para debater temas difíceis, não tinham o papel de nos ensinar – éramos nós que deveríamos abrir os olhos, ouvir e desenvolver um senso crítico mais profundo e verdadeiramente antirracista. 

Foi preciso entender que nosso privilégio branco nos trouxe até onde estamos. O fato de Daniela ser latina nos Estados Unidos, por exemplo, a expôs a situações desconfortáveis, mas ainda assim sem o viés da "camada da cor". E isso, passamos a entender melhor, é muitas vezes sinônimo de dor, exclusão e até mesmo de risco à vida. Não se trata de um tema passageiro ou de um mero ajuste de vocabulário: é uma questão fundamental e urgente. E, sim, o racismo é estrutural, e a mudança exige uma luta longa da qual nossas amigas pretas estão exaustas de batalhar sozinhas. 

As sessões daquele primeiro ciclo em 2021 foram carregadas de emoção. As mulheres negras expuseram suas histórias, permitindo que nós, mulheres brancas, ouvíssemos suas perspectivas.  Isso nos municiou com ferramentas valiosas para debater além daquele espaço seguro. 

Também aprendemos a importância de “enegrecer o feminismo”, como ressalta a filósofa, escritora e ativista antirracismo Sueli Carneiro, destacando as contribuições das trajetórias das mulheres negras no movimento feminista. A luta das mulheres por mais reconhecimento e participação no mercado de trabalho, na política e em postos de liderança deve reconhecer os impactos e desafios adicionais que a discriminação racial impõe sobre as mulheres negras e os privilégios que institui às mulheres brancas.

Exemplos desse cenário não faltam. No âmbito das atividades de cuidado de pessoas e/ou afazeres domésticos em 2022, as mulheres gastaram o dobro do tempo por semana comparativamente aos homens (21,3 horas contra 11,7 horas), segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). E ao se aprofundar no estudo, observa-se que as mulheres negras despenderam 1,6 horas a mais que as mulheres brancas. 

 “As mulheres pretas ou pardas são as que menos participam do mercado de trabalho, as que mais estão dedicando horas a cuidados e afazeres domésticos e, por outros indicadores, vemos que são as que têm piores formas de inserção em termos de remuneração e qualidade de postos de trabalho”, aponta o relatório. As desigualdades entre mulheres negras e brancas também se verifica em outros campos, como no menor acesso à educação superior e na maior incidência de vítimas de violência doméstica.

Para nós, o aprendizado tem sido intenso em todos esses anos de estudo e sabemos que ainda há muito o que compreender. Dentre tantas coisas que trazemos conosco, a que mais nos deixa alerta é a ciência de que não somos as brancas salvadoras. Somos pessoas que estamos tentando celebrar a cultura negra, empoderar as mulheres de forma intencional e lutar ao lado, aplaudir as vitórias e nos revoltar junto a elas. Incomoda-nos saber que muita gente ainda faz piada racista e diz que o “mundo está chato”. Chato é viver num mundo racista! O racismo foi criado pelas pessoas brancas e cabe a nós envidarmos nossos melhores esforços para combatê-lo. 

Por muito tempo, a luta pela igualdade de gênero foi liderada por mulheres brancas, enquanto as vidas das mulheres negras permaneciam invisibilizadas na sociedade e dentro do movimento feminista. O feminismo negro nos mostrou que a busca da equidade de gênero deve se articular à luta antirracista, a fim de combatermos a opressão de gênero e raça que atinge desigualmente mulheres brancas e negras. 

Essa experiência tem sido fundamental em nossas vidas pessoais e profissionais na busca por romper com o “pacto da branquitude” em que estamos inseridas desde o nascimento. Isso significa desnaturalizarmos nossos privilégios herdados desde a sociedade colonial escravagista e agirmos intencionalmente para transformar nossas relações em casa, na escola, na universidade, no trabalho e no círculo de amizades, sempre tendo em vista o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária para mulheres e pessoas negras. 



¹ Advogada especializada em Direito do Trabalho pelo Mackenzie, Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Certificada em Ética e Direitos Humanos pela Cornell University. Diretora Senior de Ética para mercados internacionais. Mentora e integrante do Grupo de Estudos Esperança Garcia do WLM.

² Advogada especializada pela Universidade de Paris II – Panthéon-Assas. Doutoranda em Ciência Política na Universidade de Brasília e mestre em Gestão e Políticas Públicas pela Fundação Getulio Vargas. Mentora, coordenadora do GT Acadêmico e integrante do Grupo de Estudos Esperança Garcia do WLM. 

³ CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. ESTUDOS AVANÇADOS 17 (49), 2003, p. 117-132.

⁴ IBGE. Estatísticas de Gênero: Indicadores sociais das mulheres no Brasil - 3a edição, 2024. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv102066_informativo.pdf Acesso em: 14/11/2024.

⁵ IBGE. Mulheres pretas ou pardas gastam mais tempo em tarefas domésticas, participam menos do mercado de trabalho e são mais afetadas pela pobreza. 2024. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/39358-mulheres-pretas-ou-pardas-gastam-mais-tempo-em-tarefas-domesticas-participam-menos-do-mercado-de-trabalho-e-sao-mais-afetadas-pela-pobreza. Acesso em: 14/11/2024.

⁶ BENTO, Cida. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

Cristina Etzel

Marketing e Eventos na Globalcode

1 m

Sensível, direto e essencial! Parabéns meninas! É uma luta e aprendizado diário e necessário 👏🏼👏🏼👏🏼

Sil Curiati

Speaker | Storytelling Expert - TALK THE WALK Methodology Cultural Facilitator | ex-Google Global Executive | TDS Certified Practitioner | Chief founding member | AnitaB.org Coach *TV show host*

1 m

Reflexão necessária e essencial para a mudança de atitude e aprendizados. Nosso reconhecimento como racistas é o primeiro passo de uma jornada de desconstrução.

Sil Curiati

Speaker | Storytelling Expert - TALK THE WALK Methodology Cultural Facilitator | ex-Google Global Executive | TDS Certified Practitioner | Chief founding member | AnitaB.org Coach *TV show host*

1 m

Reflexões importantes e essenciais para a desconstrução de tudo aquilo que perpetua a desigualdade. Obrigada pelo trabalho de vocês e por compartilharem com a gente!

Ha esperança de que o ser humano se conheça, pois é um estranho para si mesmo!

Paulo Basso Jr

Director at Agência Entre Aspas

1 m

Muito bom. Direto ao ponto e fundamental.

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