Casa de repouso
O jardim da vizinha tem uma pedra marrom linda como pão fresco e uma árvore repleta de luzes. Eu olhava tudo aquilo da minha janela. As lembranças são imprevisíveis e nunca pedem licença para virem à tona. Eu pensei em apalpar aquele ornamento natalino num gesto de compaixão por tantos personagens não fictícios que sonham com liberdade, amor e pão. Naquele momento um pássaro bateu asas e voou aos gritos; ao gato restou a frustração. Fiquei pasma admirando a cena. Senhora, já troquei a porta, ouvi o grito. As lembranças e a cena da vida selvagem foram interrompidas pela voz do homem que me trouxe de volta ao mundo civilizado. Ele recusou uma xícara de café, mas deixou pregos, resíduos de madeira, de plásticos e de metais - tudo espalhado pela cozinha. A dona da casa cuida da limpeza, o combinado foi trocar a porta. Engoli o insulto. Depois continuei lendo sobre um grupo de meninos que se perdeu em uma ilha deserta, mas um avião barulhento cortou o céu levando cientistas para algum lugar onde mitigariam sobre um projeto ambiental, foi o que pensei. Voltei para a ilha. Outro zumbido começou. Seria uma mosca? Deixei meus óculos dentro da ilha deserta. Lembrei-me das palavras dos médicos, não há panela de pressão ou cachoeira dentro da sua cabeça e moscas não dançam dentro dos seus olhos. Levantei-me e olhei novamente pela janela quando percebi a crueldade de uma mosca; ela voou para a lixeira da vizinha (onde insetos se encontram) e convidou todas as moscas de lá para dançarem um tango em volta dos meus olhos. Fiquei furiosa. Mosca se considera vítima de nossa fúria ao permanecer em silêncio. Eu vi a líder da gangue no chão com olhos opacos como os de um peixe morto. Ataquei a intrusa com meus chinelos, ela pulou como um prego. Continuei atacando com sapatos, panelas e vassouras. Cada um dos meus ataques foi acompanhado por gritos e resmungos expelidos da minha alma numa espécie de desabafo. Fiquei feliz em saber que tinha linguagem vocal e corporal para expressar décadas de anonimato. Fiquei calma e percebi que a mosca havia se transformado em um pequeno objeto branco. E se a mitigação ambiental promulgar uma lei que favoreça as moscas? Pensei um pouco e concluí que nenhum cientista conseguiria medir o nível de problemas psicológicos causados por um inseto. Decidi. Peguei a mosca camuflada, um pouco de água, um pouco de açúcar e coloquei tudo no jardim. A vizinha resmungou: esses estrangeiros! Ela fechou a porta após sua doce interjeição. Enquanto monologava minhas desculpas, perdi o equilíbrio; caí batendo minha cabeça na pedra marrom, mas não perdi a memória, ainda não. Minha vizinha não se preocupa em consertar o muro caído há dois Natais, mas o jardim dela parece grama de chuva onde a mosca encontraria a ressurreição. Eu nunca mais verei a árvore de Natal da vizinha porque me trouxeram para uma casa grande com muitos quartos, mas aqui tenho tempo de sobra para as lembranças.
Feliz Natal aos amigos e aos familiares distantes.