A cavalo sem dentes não se olha os dentes
Durante bons anos minha produção literária mais significativa se resumiu a aforismos. Na verdade, bem, dito, a frases mesmo, porque aforismos ainda podem ter mais de uma frase.
Às vezes me dizem que não entendem minhas frases. Bom, não sou o único artista a não pretender que suas artes obrem uma racionalização lúcida, clara e inequívoca. Há sempre uma parte da graça no mistério, no corpo e na alma não revelados, mas apenas passíveis de suposição, de fantasia. Há quem diferencie, inclusive, o pornô do erótico justamente pelo explicitamento ou sua falta. Outros pelo grau de aproximação. Há quem insista na vulgaridade, é verdade. Mas veja que não estamos tão longe do caso. Afinal, explicar uma piada nunca seria o mesmo que contá-la.
Mesmo assim, quis topar esta aventura, a ver no que dava. Sigo um certo mar de ideias que vem e vão e objetivo alguma coisa aqui, sem nenhuma intenção de esgotar nada.
Sentido 1.
Dizem por aí que a cavalo dado não se olha os dentes. Quem olha dentes é alguém criterioso, senão crítico. É alguém que não gostaria de encontrar cáries em seu presente.
Sentido 2.
Não olhar os dentes é uma maneira de não reclamar. Não há como reclamar de algo que não foi notado. Em linhas tortas também se presume que o conselheiro quer que você demonstre gratidão, mesmo que o presente seja ruim, desagradável. Afinal, não foram os gregos que presentearam os troianos com um cavalo sem dentes, sem pulmão e com o intestino cheio?
Sentido 2,5
Por outro lado, se o presente for mesmo ruim, não há como reclamar mesmo. Nenhum troiano teria bom senso o suficiente para dizer: mas o cavalo que me deste não é um cavalo! Não faz sentido. O presente se explica pela intenção do presenteador. Bons presentes são bem pensados e altruístas. Maus ou não são um ou não são outro. Os gregos deram um presente, mas eles nunca com ele quiseram agradar. Por outro lado, se o presenteador quiser agradar, seria incongruente que não quisesse saber que agradou. Se este é o caso, é provável que ele presenteie por algo como orgulho ou expectativa de retribuição. Se assim for, o dado não é um presente, mas uma bomba.
Sentido 2,9
O óbvio não precisa ser pontuado. Só falta se concordar sobre o que é óbvio. Neste país nunca se concordou sobre quem deveria ser o presidente. E isso é o mais óbvio que pode haver. No entanto, se nem isso consegue ser óbvio a todos ao mesmo tempo, é porque o óbvio ou inexiste, ou existe apenas para iniciados e fiéis. O que significa que o óbvio é uma contradição em si.
Sentido 3.
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Não há como dar atenção ao que falta, simplesmente porque o que falta não é possível. Ou não existe, ou não é alcançável, ou não está dado de imediato.
Spinoza disse isso de modo diferente. Ele disse que tudo é perfeito. E não há como dizer de uma pessoa deficiente. Porque ela não pode o que outro pode. Um cego não deve nada a uma pessoa com visão. Ele não pode vir a cumprir uma natureza que não é sua. Exigi-lo, ou mesmo esperá-lo, não seria inteligente. Nem saudável.
Isso não implica que não se possa querer para o futuro. Mas ao mesmo tempo há uma armadilha neste passo. O eu que cumprirá a promessa não é o mesmo que promete. Você está terceirizoando sua decisão e seu comprometimento. A alguém para quem você sequer pagou adiantado. Você só posterga o problema, você nunca adianta a solução. Os modernos acham que procrastinação é um problema. É o contrário. A procrastinação é sempre uma solução para quem não tem comprometimento. É uma coisa meio americana, querer consertar o ato sem concertar a atitude. Eles querem que você ponha o tênis perto da porta. Mas isso pouco adianta se você não quiser correr.
Literalmente não há como olhar os dentes de um cavalo, se nele não houver dentes. Assim como não é possível ver chifres em cabeça de cavalo. Ou achar pêlos em ovos de galinha. No entanto, nossa imaginação é fértil. Nesse caso, tão fértil quanto seja, será distorcedora de fatos.
Quem quer que diga
Você não devia
Ou não precisava se incomodar
Ao receber um regalo
Realmente diz:
Eu espero que não tenhas tido
A audácia de me desapontar.
Simples assim. Agora me deixem dormir.
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