Comentários à decisão que suspendeu os efeitos da Lei que instituiu o piso salarial do enfermeiro

Comentários à decisão que suspendeu os efeitos da Lei que instituiu o piso salarial do enfermeiro

Foi promulgada a Lei nº 14.434/2022 com o objetivo de valorizar enfermeiros, técnicos de enfermagem, auxiliares e parteiras por meio da instituição de um piso salarial com abrangência nacional. 

Contudo, conquanto seu objetivo fosse prestigiar os profissionais da saúde, questiona-se se a lei, que já teve seus efeitos suspensos pelo STF, se mostra adequada para cumprir sua finalidade. 

Nesse artigo vamos explicar alguns dos motivos que colocam em risco sua viabilidade. 

A Lei nº 14.434/2022, instituiu piso salarial nacional de R$4.750,00 para os profissionais de enfermagem do setor público e privado. Ainda, estabeleceu que os técnicos de enfermagem devem receber ao menos 70% deste valor e os auxiliares de enfermagem e parteiras devem receber 50%.  

O estabelecimento de um piso fixo em âmbito nacional, conquanto tenha gerado um sentimento de reconhecimento e euforia para os enfermeiros, gerou também uma grande preocupação e desespero para os estabelecimentos de saúde, uma vez que o impacto financeiro foi muito expressivo e sem qualquer contrapartida e/ou fonte de custeio. 

Nesse delicado contexto, foi apresentada a ação direta de inconstitucionalidade n° 7.222 que, recentemente, deferiu medida cautelar para suspender os efeitos da lei nº 14.434/2022. 

Justificativa da Lei nº 14.434/2022

Sem adentrar em eventual viés político, tem-se que a Lei Nº 14.434/2022 teve por objetivo valorizar os profissionais da saúde. Nesse sentido, cumpre fazer menção à justificativa apresentada pelo deputado Dimas Fabiano, quando da apresentação do projeto de lei: 

“Não é de hoje que essa categoria sofre com longas e intensas jornadas de trabalho, o que tem levado esses trabalhadores à exaustão, sem nenhum reconhecimento efetivo, pois suas remunerações medianas são de um pouco mais de um salário mínimo. 

Além disso, muitos desses profissionais não têm o direito a sequer receberem adicional de insalubridade, mesmo trabalhando em hospitais extremamente insalubres, principalmente na atual situação provocada pela pandemia de Covid-19, o que resultou em muitas mortes causadas pela proximidade com pacientes infectados por essa doença. 

Por esse motivo, faz-se necessário que este projeto seja pautado e aprovado com urgência, pois os nossos profissionais da saúde, que se dedicam diariamente para salvar as nossas vidas, merecem essa conquista.” 

Conquanto os profissionais em comento devam sim ser valorizados e foram de extrema importância para a contenção dos efeitos da pandemia, infelizmente os recursos são finitos e o legislador não vai conseguir alterar uma realidade pelo simples fato de impor um piso nacional, sobretudo, sem um estudo detalhado acerca da adequação da lei, pois é preciso verificar sua fonte de custeio e impactos de tal medida.  

Esse ponto é importantíssimo, pois é preciso entender os desdobramentos da lei. Não basta estar bem intencionado, é necessário verificar se há adequação da lei frente ao que ela pretende, sob pena de não se mostrar eficiente e não produzir os pretendidos efeitos. 

Nesse ponto, os ensinamentos de Ana Paula Barcellos, registram que a justificativa de uma lei deve conter “razões e informações relativamente a três conteúdos básicos (dentre outros possíveis): o problema que a norma proposta pretende enfrentar; os resultados pretendidos com a edição e execução da norma; e os custos e impactos antecipados da medida proposta” . 

Assim, tem-se que, conquanto a finalidade e desígnios do legislador sejam elogiáveis e os enfermeiros, técnicos, auxiliares e parteiras são merecedores de valorização também salarial, parece claro que a justificativa da lei nº 14.434/2022 se limitou a estabelecer sua nobre finalidade sem apresentar qualquer estudo de causa e efeito. 

Do fundamento da decisão do STF

Como não parece ter sido feito qualquer exame de adequação e eficiência da lei frente a sua finalidade quando da apresentação, restou ao judiciário fazer essa ponderação, uma vez que a lei poderia vir a prejudicar os próprios enfermeiros e a prestação dos serviços à saúde. Nesse ponto, cumpre registrar os principais argumentos levantados pelo ministro Luís Roberto Barroso, no voto que deferiu da medida cautelar pleiteada. 

Embora o Ministro reconheça que a proposta  teve um objetivo legítimo de homenagear e promover a valorização da categoria, por meio também da “correção da disparidade salarial existente entre médicos e enfermeiros”, ele entende que há um importante efeito colateral no que diz respeito à empregabilidade desses profissionais, o que levanta dúvidas sobre a adequação da inovação legislativa. 

Exemplo disso é que em “pesquisa realizada pela autora da ação, juntamente com a CMB, a Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica (Abramed), a Federação Brasileira de Hospitais (FMH) e a Associação Nacional de Hospitais Privados (Anahp), entrevistou 2.511 instituições hospitalares privadas, entre 19 e 23 de agosto, para questionar as medidas a serem adotadas para o cumprimento dos novos pisos salariais. Como resultado, 77% delas responderam que precisarão reduzir o corpo de enfermagem; 65% terão que reduzir pessoal em outras áreas e 51% disseram que reduzirão o número de leitos. A partir das informações coletadas, estima-se que 80 mil profissionais de enfermagem serão demitidos e 20 mil leitos serão fechados em todo país, como decorrência do impacto financeiro dos novos pisos salariais. 

Ainda, a instituição de um piso salarial nacional fixo, em um país tão grande e desigual como o Brasil, demonstra também um nível de generalidade perigosa.  

Nesse ponto o Ministro também registrou em seu voto que “em comparação entre os novos pisos e a média salarial praticada nas unidades da Federação evidencia que, no estado de São Paulo, o aumento salarial necessário para o atingimento do novo piso dos enfermeiros seria de apenas 10%, enquanto, no estado da Paraíba, o aumento seria de 131%. No caso dos técnicos de enfermagem, as entidades hospitalares do estado de São Paulo atingiriam o piso com um aumento de 40% em sua média salarial; no estado da Paraíba, seria necessário um aumento de 186%”. 

Ou seja, no estado da Paraíba os estabelecimentos de saúde deveriam, simplesmente, sem qualquer fonte de custeio, praticamente duplicar o valor de seus técnicos e enfermeiros. Já em São Paulo, conquanto o aumento seja expressivo, o aumento em termos percentuais não é tão expressivo. 

Quanto à questão da fonte de custeio, o Ministro chama atenção para o fato de que o próprio SUS não atualizou a tabela de reembolso a sua rede conveniada, o que demonstra uma contradição séria e um redirecionamento deste custo.  

Para se evitar que o piso salarial venha a trazer mais malefícios do que benefícios à categoria, é preciso que seja criada alguma contrapartida aos estabelecimentos de saúde, sob pena dos efeitos colaterais anularem os benefícios pretendidos. 

Não é demais lembrar, também, que o direito à saúde e à vida são direitos fundamentais que o estado não consegue prover a contento sem o auxílio de entidades privadas. Assim, é preciso que outros projetos de lei sejam rapidamente avaliados, pois alguns deles, como o PL 474/22 que estabelece que a contribuição para o Sistema S não deverá incidir sobre estabelecimentos hospitalares e demais estabelecimentos que forneçam serviços de saúde, podem contribuir para a implementação do referido piso.  

De toda forma, ainda assim é necessário verificar se o contrapeso se mostra adequado. 

Da decisão 

Quando da decisão, registrou o ministro que o deferimento da medida liminar era medida necessária, tendo em vista a incidência imediata do piso salarial e o alegado risco à prestação dos serviços de saúde, ante a ameaça de demissões em massa e de redução da oferta de leitos hospitalares.  Sendo assim, afigura-se indispensável a suspensão da lei até que sejam avaliados os impactos da alteração por ela promovida sobre a: (i) situação financeira de Estados e Municípios (ii) empregabilidade em razão de alegações plausíveis de demissões em massa e (iii) qualidade dos serviços de saúde, pelo alegado risco de fechamento de leitos e de redução do quadro de enfermeiros e técnicos. 

Embora muito se fale sobre constantes invasões de competência por parte do judiciário nos outros poderes, com a devida vênia aos que pensam diferente, entendemos que foi assertiva a decisão, uma vez que o projeto de lei não parece se mostrar adequado e apto a gerar seus pretendidos efeitos sobretudo por: (i) ter tratado o tema de maneira generalizada, sem se atentar as particularidades do Brasil e suas regiões e (ii) não ter realizado um estudo acerca da relação de causa e efeito da lei. 

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Marcos Rabello | (31) 99959-6115 | Mestre em Instituições Sociais, Direito e Democracia pela FUMEC na linha de pesquisa de Direito Privado: Autonomia Privada, Regulação e Estratégia Especialista em Direito Tributário pela Faculdade de Direito Milton Campos e Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela FEAD. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito Milton Campos.

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