Como a internet encurtou as pernas da mentira – mas aumentou o número de braços
Vivemos com a verdade e a mentira ao alcance de um toque. Até que ponto isso influi na nossa percepção da realidade?
(Por Aline Romero)
Estamos sobrecarregados de informação. Nossos sentidos se habituaram ao excesso de estímulo e nos ocupamos em preencher o tempo com uma confusão de conteúdo e interações online. Cada smartphone é seu próprio universo e em uma sala silenciosa tem gente estudando, trabalhando, jogando, conversando com pessoas em outro país ou trocando mensagens com o colega ao lado.
A cada segundo, tem alguém recebendo uma informação falsa. Meio segundo depois, tem alguém desmentindo essa mesma informação.
A internet e o acesso quase ilimitado ao conhecimento encurtaram as pernas da mentira. Marcas e influencers já foram desmascarados publicamente mais de uma vez. Não é mais possível que a Samsung use uma foto de banco de imagens e tente passar como uma selfie tirada pelo Galaxy. Não é mais possível se inspirar em conteúdos estrangeiros e oferecer como inéditos para seu público. Mas se é tão fácil ser desmentido, por que tanta gente insiste em mentir?
(via olhardigital.com.br)
Nada importa, tudo conta
Com tantos casos de fake news disponíveis para análise, já conseguimos enxergar uma hipótese: ninguém para de mentir online simplesmente porque não faz diferença. Ao mesmo tempo em que encurtou suas pernas, a internet aumentou o número de braços da mentira, potencializando a dispersão. Uma informação que chega via Whatsapp pode ser facilmente replicada no Facebook ou reforçada em um blog, que vai gerar um link ainda mais facilmente compartilhável. Não importa que a mentira seja óbvia e desmentida com uma única pesquisa no Google, com o primeiro resultado. Não faz diferença, porque a informação foi espalhada em vias numerosas demais para rastrear, condicionadas a muitas variáveis. Viral.
Não importa que alguém desminta o conteúdo. Com tantos algoritmos e premiações baseadas em pageviews, qualquer clickbait conta. E daí que saiu do ar, se já gerou meus 1,5 milhões de visualizações? Qual o problema denunciarem o meu canal, se por anos ele me trouxe retorno financeiro? Grande coisa que a informação que eu passei era falsa – as pessoas que pesquisem. O imediatismo e as promessas de recompensa compensam o risco. Não precisa dar certo para sempre: eu só preciso ser viral por uma semana. Eu não preciso que seja verdade, só quero o reforço ideológico para o meu ponto de vista. A memória também anda curta.
Batalhas reais e imaginárias
A pobre verdade enfrenta uma hidra online que produz dois novos rumores a cada boato desmentido. É uma batalha injusta e perdida, e se torna cada vez mais difícil separar fatos e opiniões. Em tempos de bolhas sociais e reforços positivos, a realidade se tornou maleável, flexível às interpretações de quem só teve acesso (ou interesse) pela metade dos fatos. A verdade se tornou o que cada um quiser que seja.
Diante disso, é muito simples criar heróis e vilões tão mitológicos e questionáveis quanto as histórias que se conta sobre eles. Esquecemos que na vida real as coisas são quase sempre cinza – nem preto nem branco, nem 8 nem 80. Precisamos fazer as pazes com a realidade, estabelecer uma relação saudável com a internet e com as possibilidades que ela traz, treinar nossos olhares e mentes. Do contrário, estamos todos eternamente ecoando nossos próprios pensamentos, perseguindo moinhos virtuais como Dom Quixotes contemporâneos.
Encurtamos as pernas da mentira, mas desaprendemos a questionar.
É hora de dar asas para a verdade.