Comunicação no foco do cuidado
Abordagem centrada em pessoas reconstrói o relacionamento médico-paciente
Por Rebeca Salgado | Entrevista para a Revista FEHOESP 360
No contexto hospitalar, a tecnologia passou a ser grande aliada dos profissionais de saúde para aprimorar tratamentos e terapias, e ganhou tanta importância que um dos princípios básicos da relação médico-paciente, a comunicação, foi ficando em segundo plano.
Diante da necessidade de sensibilidade e credibilidade nesse relacionamento, a empatia, o envolvimento e a transparência têm sido fatores cada vez mais exigidos para se estabelecer uma comunicação terapêutica de excelência.
Segundo Maria Julia Paes da Silva, professora doutora em Enfermagem pela Universidade de São Paulo (USP), para que este processo seja eficaz, não basta ao profissional utilizar somente a comunicação verbal. “É preciso se atentar aos sinais não verbais emitidos durante a interação com o paciente, tarefa cada vez mais frequente.”
Autora de vários livros sobre o assunto, a professora, em entrevista à Revista FEHOESP 360, falou sobre os benefícios e dificuldades da implantação da comunicação não verbal no ambiente hospitalar, além das técnicas que são utilizadas para a humanização do atendimento. Confira:
Revista FEHOESP 360: Como definir a comunicação com o paciente e como os profissionais de saúde podem exercê-la de modo efetivo?
Maria Julia Paes da Silva: A comunicação, do modo como entendo, é uma troca e devo saber o que quero extrair de uma pessoa para poder fazer a troca com o outro adequadamente. O ponto de partida do profissional de saúde é a clareza de que escolheu estar ali. E por que isso importa? Porque não são todos que querem estar com pessoas quando elas estão em seus piores momentos. No hospital, você escolheu estar com aqueles pacientes em seus momentos, muitas vezes, mais difíceis. Isso é um ponto importante porque partimos do princípio que o profissional está interessado em se fazer entender e também em entender os outros, colocando a atenção na outra pessoa, para que o outro, que não está em seu melhor momento, também seja claro naquilo que precisa. Há situações em que o paciente nem mesmo sabe o que está sentindo, por isso é preciso fazer as perguntas adequadas, se interessar em ouvi-lo. Se ele veio até o profissional de saúde significa que não está firme e que, talvez, esse se torne até mesmo a bengala que ele precisa para se ficar firme novamente.
360: Em seus livros e palestras você diz que a diferença na comunicação interpessoal pode ser verbal e não verbal. Como isso pode ser explicado na saúde?
MS: A comunicação interpessoal aborda a dimensão verbal e não verbal. O profissional é treinado durante o curso principalmente para a dimensão verbal, enquanto, na verdade, é a dimensão não verbal que qualifica as relações. Isso engloba os gestos, reações, posturas, distância que mantemos do paciente, expressões faciais, tom de voz, capacidade de identificar o significado dos silêncios. Quando uma pessoa não está bem ela fica mais atenta a essa dimensão porque, inconscientemente, sabe que se houver contradição entre o verbal e o não verbal, ou seja, entre o discurso e a prática, ela acaba acreditando no não verbal, pois é uma linguagem difícil de controlar. O médico e o enfermeiro precisam ser capacitados para identificar essa dimensão não verbal, que, na verdade, é reconhecida mais rapidamente pelo leigo. Por exemplo, em uma viagem, pode-se até não entender a linguagem do outro, mas se entende suas expressões. Uma pessoa fragilizada se volta para a linguagem mais primitiva, humana, é por isso que uma mãe é capaz de identificar no bebê os diferentes tipos de choro, porque vem antes mesmo da própria verbalização.
360: O número de escolas médicas tem aumentado nas últimas décadas. Mas, em muitos casos, são faculdades sem qualquer estrutura de aprendizado. Se isso já é uma preocupação, como fica a questão da comunicação com o paciente? Vem sendo abordado na formação atual do profissional de saúde?
MS: Sim, porque se percebeu que é fundamental. Nos últimos 40 ou 50 anos, as terapias intensivas foram criadas e assim ampliou-se as técnicas terapêuticas, mas técnica não é ética. Avançamos em uma, mas não em outra. A comunicação tem a ver diretamente com ética. Se isso não for discutido na formação do profissional, não adianta ser apenas competente tecnicamente, porque a maioria dos pacientes não precisa de alta tecnologia, mas, sim, de cuidados. A ficha das escolas começou a cair.
A maioria dos pacientes não precisa de alta tecnologia, mas, sim, de cuidados.
360: Uma das principais reclamações dos pacientes é o atendimento ambulatorial ou no leito feito de modo rápido, em poucos minutos, um tempo não hábil para se criar empatia. Como trabalhar essa questão?
MS: Não tenho dúvidas de que somos escravos do Chronos. Mas o que importa e as lembranças que ficam são do tempo Kairós, o tempo do coração. Se eu disser: ‘Sinto muito, tenho apenas cinco minutos para ficar com você, mas quero saber o que importa, o que mudou de ontem para hoje’, quando terminar o tempo, o paciente vai saber que tive uma postura de interesse sobre seu quadro, fizemos um acordo antes e, provavelmente, ele se lembrará desses cinco minutos pelo resto do seu dia. O erro do profissional está quando, por exemplo, ele atende o celular durante atendimento, quando aceita ser interrompido na sala, quando fica olhando para o computador e não para a pessoa que está sendo atendida. Mesmo que o Chronos seja um fator dificultador, isso não impede que o profissional deixe claro qual o tempo disponível e o que podem fazer juntos com esse tempo. Isso muda totalmente a qualidade da relação.
360: Como isso se torna perceptível ao paciente?
MS: Vou exemplificar com uma experiência de trabalho. Quando tive a oportunidade de trabalhar na emergência hospitalar, e é óbvio que nesse ambiente não dá para ficar conversando, e cuidei de alguém dois dias, não iria poder cuidar desse paciente novamente no outro dia, devido a escala de trabalho, mas sempre que o via ali na maca dava um tchauzinho. Sabe o que vem como resposta? Você não se esqueceu de mim. O paciente está vendo a minha correria louca e desvairada, no entanto, não deixei de demonstrar o meu interesse. Isso é uma linguagem que pode tranquilizar, mesmo que eu não faça tudo o que tenho vontade de fazer com o paciente. Porém, fica a questão: por que eu não faço tudo que eu tenho vontade, eu não vou fazer nada? Isso sim é uma contradição.
360: Como convencer o gestor hospitalar, tanto público quanto privado, a aplicar uma mudança de cultura em seu ambiente por meio da comunicação e quais os benefícios mensuráveis dessa aplicação?
MS: É um processo. A qualidade é sempre uma busca contínua, um horizonte possível. Se tenho algo, quero mais. A possibilidade de melhora é característica do ser humano. Se os hospitais se preocupam com a qualidade do atendimento é inevitável não se preocupar com a questão da humanização e, portanto, da comunicação. A maior parte dos estabelecimentos de saúde atualmente trabalha com pesquisa de satisfação como indicador importantíssimo. Se você tem vários hospitais de qualidade na mesma cidade, o que te faz escolher entre um e outro? O gestor precisa conquistar a fidelidade de seu cliente. Agora, além do paciente, ter uma equipe fiel e motivada faz toda a diferença. Quando se trabalha a comunicação e a humanização também é preciso ter qualidade de escuta das pessoas que trabalham, assim se diminui índices de rotatividade e absenteísmo. O foco é escutar as pessoas que são seu time, pois quanto mais elas estiverem envolvidas, mais se atentarão à dimensão do cuidado, e aí os resultados serão a diminuição de quedas, dores, medicamentos. Temos até mesmo altas precoces e tudo isso porque os profissionais foram capazes de se entenderem e se fazerem ser entendidos.
OLHO: A qualidade é sempre uma busca contínua, um horizonte possível
360: Essa é uma questão mais efetiva com enfermeiros do que com médicos?
MS: Com todos os profissionais. Costumo falar um pouco mais da enfermagem porque ela faz acompanhamento 24 horas. Muitas vezes, torna-se o profissional que ganha a confiança do paciente por estar mais tempo com ele, o que auxilia significativamente o tratamento médico-terapêutico. Se o enfermeiro estiver disposto e atento, ele pode se tornar os ouvidos e olhos do paciente para o médico
360: E como lidar com a obstinação terapêutica numa era em que paciente e família têm o conhecimento em suas mãos tecnologias evoluindo a todo momento?
MS: Enquanto o foco estiver na doença, será mais difícil para o profissional aceitar que ele cuida de gente. A obstinação terapêutica acontece justamente porque não posso deixar a pessoa morrer. Mas como não posso deixar morrer se todos somos mortais? O morrer faz parte da condição humana. No meu ponto de vista, precisa-se qualificar a vida, tanto que, para isso, surgiu o movimento dos cuidados paliativos. Melhoramos a obstinação quando mudamos o paradigma de doença para saúde. Quando dissermos que profissional da área cuida da saúde, não de doença. Se eu cuido da saúde, do ser humano, eu preciso estar atento a ele como um todo e envelhecer faz com que as pessoas tenham doenças crônicas, que não vão ser curadas. Quanto mais você envelhece, mais o seu instrumento físico envelhece. A obstinação terapêutica é uma bobagem, uma fantasia. Se o foco são pessoas, deve-se lutar pela qualidade de vida delas. Mas até o limite do que é vida para cada uma.
OLHO: Enquanto o foco estiver na doença, será mais difícil o profissional aceitar que ele cuida de gente
360: Sabemos das possibilidades do testamento vital, mas há médicos e instituições que, na hora “h”, acabam não respeitando a vontade do paciente, alegando insegurança jurídica. Não temos uma legislação que assegure, de fato, médicos e hospitais nesse sentido. Falta uma legislação específica? Ou é apenas uma questão cultural?
MS: Tenho pacientes que entendem que podem deixar seus desejos registrados e são eles que dizem qual são seus limites. A escolha é deles, a vida é deles. O que acontece é que a legislação brasileira ainda abre muito espaço para esse medo. Em alguns países europeus, em alguns Estados norte-americanos ninguém tem dúvida que o documento deve ser respeitado. Existe muito desconhecimento sobre o tema, o que é completamente compreensível na insegurança do profissional de medicina. Não acredito que o médico erre propositalmente. Ele erra porque é humano. No Brasil, precisamos sim de uma legislação que dê menos margem para dúvidas, mais segurança ao profissional e também ao paciente, para que as autonomias sejam respeitadas.
360: A FEHOESP recentemente entregou um documento ao Ministério da Saúde que prevê um debate mais amplo sobre a dignidade na morte. Além disso, a Agência Nacional Saúde Suplementar (ANS) criou o Projeto Sua Saúde, para estimular uma participação mais proativa de pacientes e usuários do sistema em relação à tomada de decisão em saúde. Você acredita nesse tipo de iniciativa?
MS: Acredito que precisamos de ajuda e todos que puderem colaborar são muito bem-vindos. É excelente que propostas como essas comecem a ser discutidas porque precisamos dessa escuta, até mesmo na segurança de que, ao se cumprir o desejo do paciente, o profissional esteja coberto por uma norma reguladora, por uma lei, que não gere embate entre ele e os familiares. As agências ou instituições como a FEHOESP tornam-se intermediárias no processo da verdade e, citando Carlos Drummond de Andrade: “Quando juntamos duas verdades descobrimos que a verdade é multifacetada, o que torna a compreensão mais simples”.
Customer Experience | Volunteacher
6 aIncrível pensar que alguns hospitais e clínicas investem bastante em marketing, mas não reconhecem o valor do patrimônio humano. A comunicação com o paciente vai muito além de explicar o que está acontecendo. É aí que o médico estreita os laços e que pode realmente fazer a diferença!