Esquecidas
A realidade das mulheres na Penitenciária Feminina da Capital
Segundo dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o sistema prisional brasileiro conta atualmente com mais de 700 mil encarcerados no país, número que aumentou mais de 400% nos últimos 20 anos. Hoje a média de encarceramento de 300 presos para cada 100 mil habitantes, o que nos coloca na terceira posição do ranking mundial, perdendo apenas para Estados Unidos e China.
Se sobe o número de presos também sobe o déficit de vagas nas penitenciárias. Hoje, faltam mais de 350 mil vagas e, se fossem considerados os mandados de prisão em aberto, cerca de 370 mil, a população carcerária saltaria para mais de um milhão de pessoas, com o Brasil liderando o ranking mundial.
Em 2015, a Anistia Internacional divulgou um relatório com dados ainda mais alarmantes: o Brasil está no topo dos países mais violentos do mundo, com uma taxa de ao menos 100 homicídios por dia, sendo a impunidade um dos fatores incentivadores já que 85% dos crimes acabam sem solução. O índice de reincidência e as condições desumanas das unidades prisionais são também fatores preocupantes.
Esse universo é apresentado pelo médico Drauzio Varella em sua trilogia de livros sobre a carceragem no Brasil. Primeiro “Estação Carandiru” (1999) conta a história da extinta Casa de Detenção de São Paulo; em seguida, “Carcereiros” (2014) mostra a rotina de trabalho dos funcionários públicos nas penitenciárias. Agora, “Prisioneiras” (2017) apresenta um universo pouco conhecido: a vida das mulheres na prisão. Do total de encarcerados, elas representam um percentual de 3,97%, ou seja, cerca de 100 mil mulheres estão detidas no Brasil.
Trabalhando há 11 anos como médico voluntário da Penitenciária Feminina da Capital, em São Paulo, Varella conta, de modo literário, sobre as consultas e as amizades que fez com as mais de duas mil detentas que pertencem à casa. Em seu livro, elas se tornam protagonistas de roteiros dignos de Hollywood.
Se pudesse escolher outro título para seu trabalho, certamente seria “Esquecidas”. A maior parte das presas acabou encarcerada por tentar ajudar seus parceiros já presos. Foram flagradas nas vistorias tentando levar drogas aos companheiros nas penitenciárias masculinas em dias de visita e acabaram detidas pelo artigo 12 do Código Penal – tráfico de drogas. Depois disso, não são mais lembradas nem por familiares, nem pelos maridos e namorados que tentaram favorecer.
Passando em frente a qualquer instituição de reclusão masculina aos fins de semana é possível ver filas, barracas, mulheres e crianças cheias de sacolas, os chamados jumbos que abastecerão os filhos, netos e companheiros ao longo de sete dias. Já na porta da Penitenciária Feminina da Capital a cena é pífia, assim como na maior parte das cadeias femininas do país. Em geral, as famílias conseguem tolerar um homem encarcerado, mas não uma mãe, irmã, filha ou esposa.
Nesse ambiente elas se veem não só abandonadas, mas, também, sem rumo sobre qual direção tomar. Não incomum, acabam, como diz o próprio autor, ‘se convertendo à homossexualidade’ não somente como modo de sobrevivência dentro da cadeia, mas como meio de suprir a carência e a ausência deixadas por aqueles que deveriam ajudá-las. E não é uma homossexualidade qualquer, ela é classificada, por elas mesmas, em níveis, grupos e subgrupos de relacionamentos, do saudável ao abusivo.
Engana-se quem pensa que é fácil a convivência por ali. A obra mostra que existem regras, que são regidas pelas “irmãs” do Primeiro Comando da Capital (PCC), que também está presente no universo feminino e mostra sua força pelas mulheres que integram a facção. Há ordens como não trocar carícias de modo explícito, não haver brigas, discussões ou roubos, sob ameaça de julgamento do PCC.
A relação entre as mulheres que habitam as cadeias não é menos complexa que as dos homens, mas há particularidades, descritas com riqueza de detalhes pelo médico, que nos faz sentir na pele cada dúvida, cada sonho, cada angústia e cada alegria das presas em seus atendimentos. Ele relata o capricho das presas com suas celas, as quais chamam de casas. Há mulheres que ali se tornam verdadeiras donas de casa e o fazem como forma de ganhar a vida dentro das prisões. A moeda de troca válida, ao contrário do que se pode pensar, não é o dinheiro, mas maços de cigarro.
Sem papas na língua e com senso crítico, Varella aborda em sua narrativa problemas de um nicho da sociedade pouco observado. Lida com a saúde das detentas como questão de saúde pública, pouco olhada, pouco cuidada, pouco amparada pelo sistema. Mostra dificuldades, como a falta de suprimentos, a repetição de comida, os banhos de água fria, mas em momento algum coloca as detentas na condição de vítimas. Em um trecho, deixa claro que “todas estão ali por terem cometido alguma infração”, mas evidencia em todos os momentos as melhorias que deveriam ser feitas pelo governo para que houvesse maior humanização nas penitenciárias, especialmente nas femininas.
Apesar do tema, inóspito para alguns, interessante para outros, “Prisioneiras” é uma obra agradável de se ler, intensa e muito bem redigida. Rica em detalhes. Não há como chegar na última página do livro sem pensar em como se pode contribuir para uma vida melhor ao próximo, independentemente da condição em que ele se encontra: preso, solto, rico, pobre, branco, preto. Em um Brasil de oportunidades para poucos, o médico consegue envolver o leitor em uma profunda reflexão no futuro que estamos construindo.
Encerrando seu ciclo de narrativas, Varella mostra um talento excepcional não só para escrita, mas, também, para confrontar com coragem e sensibilidade as situações que viveu durante seu voluntariado. (Por Rebeca Salgado)
Prisioneiras
Editora Cia. das Letras
296 páginas
R$ 39,90