A conta quase não fecha
Algumas pessoas andaram me questionando o motivo de eu querer dar aula para ensino fundamental e para o Estado, mesmo sabendo que há uma série de dificuldades. Primeiramente, eu sempre quis retribuir o que recebi na vida. Sim sou uma pessoa com firmes crenças ideológicas. Então, sim! Eu queria contribuir com a sociedade, nem que fosse algo local. Segundo, eu nunca esqueci do meu primeiro forte desejo.
Quando estava no colégio técnico, o antigo segundo grau unido com o ensino técnico, na maravilhosa ETE Camargo Aranha, um professor me fez uma pergunta muito específica: "O que você gostaria de fazer por toda a sua vida? Não responda uma profissão, mas o que você realmente gostaria de fazer." Eu respondi sem pestanejar: "Queria poder estudar a vida inteira." Ele riu e disse: "Ok! E você sabe como pode fazer isso?" Eu respondi que queria ser jornalista, porque teria que buscar o conhecimento para transmitir às pessoas.
Claro que os ventos da necessidade e da vida me levaram para outros lugares e acabei estudando Economia numa Universidade que pouco tempo depois virou meu lar. Tornei-me estagiária e lá, entrei em contato com a educação e ensino. Já deu para perceber o que aconteceu? A vida esfregou na minha cara que meu desejo foi atendido e que estaria mergulhada num mundo que eu poderia estudar todos os dias, o tempo todo. E mais: aquele seria meu ofício e meu ganha-pão.
Não demorou muito para eu querer ser com aqueles para quem eu prestava serviço: os professores. Não é porque eu não queria servi-los, muito pelo contrário. Eu sempre amei professores. Trabalhar com eles e para eles era uma satisfação. Minha mãe foi minha professora, me ensinando em casa antes de ir para escola. Tem algo mais nobre? Eu amei cada professor que cruzei, cada professor que auxiliei, cada professor que me ensinou. Eu aprendi todos os dias, sem exceção. Querer ser como eles foi por admirar e perceber que era o que eu queria desde novinha: eu poderia estudar sempre e ainda colaborar com a sociedade. De verdade. Ser remunerada fazendo o que gosta e ainda colaborar com a sociedade. Pacote completo. Completo: com ônus e bônus. Então, sim! Eu escolhi enfrentar as diversidades. Vale a pena? Para mim, está tudo bem. Não posso responder por outros.
Tem violência na escola onde trabalho? Tem, muita. É uma escola em região mista de periferia com zona rural. A comunidade enfrenta dificuldades, infelizmente é natural que as crianças espelhem ou tragam consigo essas dificuldades. Isso não muda que elas ainda são crianças.
Eu leciono para o fundamental II. A nossa sociedade paulista tem uma visão estranha: "Ah, não são tão mais crianças... São adolescentes." Perdão, mas isso é uma ignorância tremenda. Adolescentes são crianças e ponto. Não são adultos. Além disso, as crianças de 6º ano têm entre 10 e 12 anos. Eu vejo nas minhas turmas. São crianças de tudo: altura, peso, comportamento, mentalidade. São barulhentos, juntos são indisciplinados e sempre tem muita confusão. São muitas crianças juntas. Dependendo da escola, as turmas podem chegar a ter mais de 40 alunos. Minha maior turma tem 33 alunos. É muita criança junta. Vinte alunos já é uma quantidade muito grande. Quem dirá 33...
Tem pessoa que vê apenas como número. Só 33... Pensa em uma criança malcriada, birrenta, respondona e desafiadora. Agora pensa numa turma de 33. Haverá pelo 3 delas na sala. É o suficiente para estabelecer o caos e ainda desafiar sua paciência e sanidade mental. Dá vontade de dar palmadas? Só não dá se você não for humano. Mas assim como você, leitor, eu sou adulta e sei que nada se resolve com violência, muito menos se for uma criança. Não é nem questão de legalidade. Você é o adulto, você tem a obrigação de se controlar e contornar a situação. É uma obrigação social. É fácil? Não, mas nem por isso você pode deixar de fazê-lo. Isso deve ser mais difícil para quem leciona para o Ensino Médio. Adolescentes, quase jovens, com seus 15, 16 e 17 anos, que podem e querem bater em você, desafiam o seu limite e o Estado escolhe proteger só um: o menor. É aqui que mora o problema. Não é que não deva proteger o menor, porque deve mesmo. Só que o Estado não deveria escolher. Deveria proteger os dois. Aquela lei que diz que desrespeitar o funcionário público é crime para não valer para a área da educação básica. Pelo menos não na prática.
Sim, já humilharam e descriminaram um colega meu por ele ser negro. Sim, aluno já tentou bater em professo. Sim, eles ameaçam meus colegas professores. Sim, um aluno já me disse que ia matar todo mundo da escola. Dou aula para turmas com crianças que possuem diversos tipos problemas de saúde, transtornos ou deficiências, incluindo aqueles que sofrem de esquizofrenia. O Governo os manda para escola sem nenhum tipo de aparato sustentável. Eles pode até receber algum tipo de suporte estatal, mas ele não é consistente e constante. As dificuldades são tantas, que de tempos em tempos as crianças ficam sem medicamentos e/ou tratamento e acabam tendo os chamados surtos. O aluno que me disse isso é esquizofrênico e estava em surto, provocado por um motim da sala. Crianças podem ser terríveis. Eu o abracei e chorei com ele. Não é mera violência. Essa criança sente dor, física e mental. Não é fácil e está longe de ser simples. Ele não é um lunático que simplesmente disse que quer matar todo mundo. É uma criança que tem um transtorno que requer tratamento constante médico e cuidado especial da família e, no caso, da escola.
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Na escola, professores, coordenadores e diretor, estão voltados a cuidar de todos e destes alunos especiais. A escola faz parte do Programa de Ensino Integral (PEI), então há todo um trabalho para todo tipo de criança: regulares, superdotadas, especiais. Não vou negar. É intenso e constante. Mas todos os dias há algo gratificante. Não estou enfeitado nada. Onde trabalho há uma preocupação constante e um trabalho para que haja segurança e harmonia. É muito difícil e tem dias que não funciona, apesar de todos os esforços. O aluno que mencionei é uma criança que pode estabelecer um relacionamento de confiança. Comigo, ele só teve este surto e não foi por minha causa. Ele ficou bem nos dias se seguiram, durante às minhas aulas. Comigo, não com todos. É difícil construir laços de confiança. É processo lento. Sei que ele confia em mim, porque fiquei ao lado dele e me deixou abraçá-lo. Ele não gosta de abraço, foi uma sinalização que ele deu. Não se dá as costa para uma criança aceita sua ajuda. No caso dele, foi uma oportunidade rara.
Contribuir com a sociedade não é simplesmente lecionar. Chegar e dar minha aula de matemática. Se você não contribui com o desenvolvimento global da criança, não vai funcionar. Eu aceitei o compromisso. Eu o quis.
Esta ciência que as pessoas devem ter quando fazer as escolhas de vida. Não adianta reclamar por reclamar ou reclamar e questionar absolutamente tudo. O Governo é vilão? Calma. É um Governo, feito por pessoas, logo, é falho. Não 100%. O Programa de Ensino Integral (PEI) é uma proposta incrível, com muitos aparelhos super eficientes. É perfeito? Longe disso. Mas tem uma parte maravilhosa e essa parte funciona, dá resultados.
O Professor é mal remunerado? É. Muitas pessoas dirão que o salário é bom. Se você olhar para o número bruto, é bom. A questão é que ele é bruto. A maioria dos professores não são concursados. Todos somos servidores, mas um percentual baixo é titular por determinação do próprio Governo. A maior parte dos contratos são por tempo determinado (cerca de 3 anos, ainda estou aprendendo). Há várias categorias, enquadradas por meio de leis, decretos, resoluções etc. Não há recolhimento de FGTS e os impostos de INSS e IRPF são o teto. O Leão devora forte o salário docente, não discriminando se é do setor público ou privado. Tirando os concursados, os professores, em sua grande maioria, não recebem auxílio transporte e alimentação. As escolas têm muitos recursos, mais do que tinham quando eu era criança, nas décadas de 1980-90. Ainda assim, é muito aquém do que é preciso para se educar as crianças. Então, sim, o professor tira do bolso materiais altamente custosos para dar aula. A conta quase não fecha. E as crianças ainda acham que somos ricos e que temos que premiá-los com docinhos por tudo. Eles são crianças, é natural não compreenderem. O paradoxo é uma constante na educação.
Com tudo isso que foi explanado, respondo àqueles que ainda insistem em me questionar sobre a minha escolha. Foi minha escolha, mesmo sabendo que haveria problemas. Não escolho algo por ser fácil ou difícil. Certamente escolho algo sabendo o máximo possível sobre as vantagens e dificuldades, aceitando o desafio imposto. É mínimo que uma pessoa deve fazer diante dos caminhos que a vida nos coloca para escolher.