Crônica: Bola de pedra

Crônica: Bola de pedra

Palavras-chave: Existencialismo, Simplicidade, Produtividade.


Seu Josivaldo decidiu que aquele momento bastava. Seria a última golpeada da enxada na terra por hoje. Usou o cabo de madeira para se escorar e admirar o trabalho árduo que fizera até aquele fim de tarde. O horizonte era bonito. Colinas verdejantes a se perder de vista, pelos cantos dos olhos, para frente, para trás... Eita mundão fértil esse que vivia.

Jogou o chapéu às costas, que pendeu no pescoço pela cordinha. Sua cabeça, a essa idade desprovido dos fios de sua juventude, coçava ao suor que o esforço produzira. Forçou a vista para vislumbrar os últimos raios de sol, vermelho naquele céu imenso que transitava ao negrume arroxeado do crepúsculo.

Mais um dia. Graças a Deus. Como é incrível essa coisa do existir. Você apenas vive. Simples. Faz o seu cotidiano e se deita para descansar. Se adapta enquanto o corpo aos poucos deteriora. Envelhece sem escolha. Percebe de repente uma nova dor aqui, um negocinho ali. Como pode?

Josivaldo, sem perceber, deu uma tropicada no metal enferrujado da sua ferramenta. Quase dormira ali, de pé, assistindo àquele espetáculo da natureza. A bola em que vive girou para trás da bola de fogo que esquenta sua temperatura o suficiente para tornar possível a vida da sua espécie. Um ser humano agrícola que planta meia dúzia de legumes e pensa. Coisas que surgem na cabeça, ideias, vontades, desejos, devaneios... Certa vez queria plantar abóbora. Mas se arrependeu no meio do processo, pois os ramos estavam dominando a horta inteira – até mesmo invadira os seus varais de roupas.

Faltava só uma frestinha de sol. Essa era a hora favorita de Josivaldo. Dá pra ver ele descendo sem arder a vista, pensava. E aí começariam as estrelas, ali do outro lado, bem bonitas e muitas, pois não haviam os malditos postes da cidade para atrapalhar a visão. E o ventinho bateu mais fresco. A noite chegou definitivamente. Outros bichos por aí, outras coisas acontecendo, o comportamento muda. O ser humano animal gosmento se recolhe, deita se cobre se aliena em alguma tela qualquer. Faz o pensamento ser guiado por alguma outra produção que o leve. Pensar demais é um perigo, afinal. Deixa isso pra lá.

O que importa mesmo é o estômago. Jamais deixe-o roncar, é seu lema. Josivaldo não conhecia a palavra lema, mas não porta, levava a frase para si. Não precisamos conhecer, só saber tá bom. Se tá sabido, tá resolvido.

Começou o passo pesado ao depósito de alvenaria que construiu um tempo atrás. Engraçado como um grupo de cupim faz aquela porcaria de barro que pra gente é absolutamente qualquer coisa. Pra eles, um império, uma comunidade organizada. Será que é mesmo organizada? Até que ponto? São vários túneis, todo um sistema. Eu fiz uma casinha pra guardar umas coisas. Passo o cadeado e ninguém mais vai roubar. Pelo menos não tão fácil. Tamanhos e intelectos diferentes, mas construindo coisas para finalidades. Ocupando porções de terras e usando os recursos disponíveis para avançar um pouco mais a cada geração em algum raciocínio que leva a algum propósito.

Josivaldo bocejou. Tinha esquecido o quão incômodo era ser narrado. Afastou o toldo da sua nave e em menos de uma hora já estava acima da atmosfera. Ficou muito tarde, vou me atrasar para a janta. Apertou um botão aqui, outro ali, que se lasque, os cálculos da máquina são automáticos. Alguém fez, eu compro e uso. E as abóboras, quem fez?

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