A democracia americana corre risco?
Desde a vitoriosa campanha de Donald Trump para ser o candidato do Partido Republicano à Presidência dos Estados Unidos em 2016, o jogo democrático na América parece contrastar cada vez com a sua imagem histórica de altivez e estabilidade. A audácia verbal, a quebra de protocolos próprios da disputa eleitoral e a forte dose de personalismo do vencedor do pleito tornaram a política americana um pouco parecida com a brasileira, marcada pela instabilidade e pela extravagância dos protagonistas.
Esse processo está chegando ao seu clímax na corrida presidencial em curso no país mais rico e poderoso do mundo, com Trump sendo Trump para se reeleger em meio às enormes e inesperadas adversidades criadas pela crise global emergida na pandemia da Covid-19. De uma reeleição garantida pelo bom desempenho na economia, ele se vê diante do risco real e crescente de ter de ceder o posto ao Partido Democrata. E o caótico primeiro debate com o rival Joe Biden, na terça-feira (29), revelou inédita perda de estribeiras no ringue eletrônico.
Em 2016, Trump chegou até a ameaçar durante o debate televisivo "botar na cadeia" a rival democrata Hillary Clinton. Mas, desta vez, ele partiu logo para os berros, interrupções e desqualificações do opositor setentão como ele. Tal qual fez no passado com Jeb Bush no caminho da peneira dos republicanos, insinuou faltar energia e sobrar fraqueza em Biden, que acabou reagindo chamando o presidente de palhaço e mandando ele se calar. Triste.
Mas o que preocupa de verdade os especialistas e que aponta para uma crise profunda do sistema democrático americano está em ameaças veladas de Trump de não reconhecer o processo eleitoral do momento e, muito menos, um eventual desfecho negativo desse processo para ele. O presidente tentou adiar o pleito sob a justificativa da pandemia e lançou suspeitas sobre a votação por carta, possibilidade que lhe apresenta como desfavorável.
A ideia-força da América de estabilidade nas regras, de alternância no poder e de supremacia da Constituição sobre projetos pessoais esbarra, pois, em uma verborragia típica de política provinciana. Trump já deixou claro que pode não reconhecer eventual derrota nas urnas ou também no colégio eleitoral, que é o que elege mesmo lá. Aí está o caminho aberto para uma crise institucional jamais antes vista na Terra do Tio Sam.
Nos Estados Unidos, a noite que se anuncia o resultado da eleição é festa para o vencedor. Os partidários esperam ansiosamente o pronunciamento inaugural do presidente eleito. Mas, na verdade, é o discurso que confirma a força da democracia é o que vem do candidato derrotado. Ao aceitar a própria derrota em discurso, quem fica em segundo lugar mostra espírito público e compromete-se publicamente a apoiar o novo presidente, endossando a legitimidade da eleição. Tal gesto sela a união do país em torno da democracia. Embates de agora, contudo, lançam dúvidas sobre um epílogo responsável e reconciliador.
Creio que os primeiros sinais dessa ameaça ao sistema eleitoral foram vistos na primeira eleição de George W. Bush, em 2000. O rival derrotado Al Gore tinha todos os motivos para contestar o resultado, inaugurou dias tensos pós-eleição de 8 de novembro, mas acabou reconhecendo a derrota 36 dias depois, em nome da paz social. O discurso de Gore, que venceu no voto popular, reconhecendo a derrota, encerrou a polêmica da votação no decisivo da Flórida, então governado por Jeb Bush, irmão de George. Só jogou a toalha após decisão da Suprema Corte sobre a recontagem dos votos contestados naquele estado.
A diferença pró-Bush, posterior à nova apuração, recuou de 1.782 para 327 votos. Somado a este fato, as cédulas dos eleitores, que votavam no exterior, ainda não haviam sido contadas. Apesar disso, declarou Gore: “Estes são os Estados Unidos, e colocamos o país antes do partido. Vamos nos manter unidos apoiando nosso presidente”. Será que teremos esse gesto de Trump? De toda forma, acredito na vitalidade da Constituição dos Estados Unidos da América, do seu sistema de freios e contrapesos entre os três poderes e, se lá qual for o resultado final, a democracia se imporá, servindo, de novo, de exemplo para o mundo.
EM TEMPO: A contaminação do presidente Donald Trump pelo novo coronavírus, anunciada em 02/10, a 32 dias da eleição, mudará de imediato o ritmo da campanha, com consequências políticas ainda imprevisíveis para o resultado de uma eleição já conturbada.
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4 aMas importante que a eleição e o sistema democrático.