Desobediência Tecnológica na Cultura Hacker/Maker
PARTE 1 - Desobediência Tecnológica em Cuba ou Form Follows Necessity
O conceito de desobediência tecnológica, definido como sendo “um sistemático desrespeito do indivíduo diante da complexidade e da lógica fechada e excludente dos objetos industriais” emerge do principal trabalho do designer cubano Ernesto Oroza, que consistiu em recolher, sistematizar e fotografar objetos, móveis, máquinas e equipamentos criados pelos cidadãos cubanos a partir da Revolução, datada de 1959.
Esses objetos, cujo desenho é resultado da situação de necessidade e carência de recursos imposta pelo governo revolucionário, possuem características muito específicas que os distinguem, numa análise um pouco mais aprofundada, de uma simples “gambiarra” como poderia parecer a um observador menos atento.
Primeiro Momento
Logo após a instauração do governo revolucionário no poder, em 1959, e da nacionalização do parque industrial, os operários cubanos são instados a organizar os chamados Comités de Piezas de Repuesto que tinham como missão produzir, agora apenas com recursos próprios, as peças de reposição para as suas máquinas, de forma que a produção não cessasse por completo após a saída das empresas estrangeiras do País.
A precarização das indústrias somada à diminuição da oferta de mão de obra qualificada de engenheiros, técnicos e operários, que fugiam para os Estados Unidos em busca de melhores condições de trabalho, levou Ernesto Guevara, então Ministro das Indústrias, a fazer um chamado oficial aos trabalhadores: “¡Obrero construye tu propia maquinaria!”.
Dez anos de prática na substituição e criação de peças e máquinas para manter a engrenagem industrial operando, fizeram com que o trabalhador cubano extendesse essa prática também para sua vida quotidiana. O mesmo operário que fabricava peças de reposição para os MIG's soviéticos, utilizava dessa mesma lógica e criava artifícios para vencer as dificuldades cada vez maiores causadas pelo embargo dos EUA e pela ineficiência e burocracia governamental, que impedia qualquer iniciativa empreendedora.
Segundo Oroza, esse era o verdadeiro paradoxo da Revolução: “la desobediencia tecnológica, que nace como una alternativa que la revolución estimuló, devino el principal recurso de los individuos para sobrevivir la ineficiencia productiva de la misma. Así, el propio obrero que ha utilizado por años su imaginación para ayudar a que la revolución no se detenga, la ha usado también para resistir las duras condiciones de vida que el inoperante gobierno revolucionario le impone.”
Após dez anos de Revolução, o esforço que demora a render frutos se transforma em desconfiança, que desemboca em um comportamento amplamente disseminado pela ilha, o da acumulação. Cada espaço da casa passa a servir de armazém e cada objeto - ou parte dele – passa a ser guardado para sua posterior utilização, seja como peça de reparo em um processo de canibalização ou mediante o emprego de novos usos, não previstos originalmente.
É nesse momento que há uma primeira dissociação ou desobediência frente ao objeto industrial, na medida em que o seu ciclo de vida original é subvertido.
Além da prática da acumulação, uma outra questão fundamental para a formação de uma cultura da transformação dos objetos industriais foi a imensa padronização de máquinas e eletrodomésticos existentes em Cuba, trazidos pela aproximação com a União Soviética e a criação do Conselho de Ajuda Mutua Econômica (COMECON). Todos os cubanos possuíam o mesmo aparelho de TV, refrigerador, ventilador e lavadora de roupas. Isso criou um campo comum, uma estandartização que alguns anos mais tarde seria o estopim para aquilo que Oroza chama de Desobediência Tecnológica.
Período Especial
Com o colapso da União Soviética, no final da década de 1980, Cuba viu suas exportações despencarem mais de 80%, o que levou o país ao pior momento econômico de sua história. Os cubanos perceberam que agora estavam sozinhos na batalha por sua própria sobrevivência e foi nesse momento que surgiram os primeiros objetos espontâneos, soluções provisórias que, somados à cultura da acumulação e da padronização, seriam a antessala do fenômeno criativo mais revolucionário da história do Pais.
Agora para o cubano comum não existe mais temor frente a autoridade emanada de marcas industriais consagradas, como Sony ou Swatch. A regra do período é “Si está roto, se arregla. Si le sirve para reparar otro objeto lo tomará, a pedazos o íntegramente. El desacato ante la imagen consolidada de los productos industriales se traduce en un proceso de deconstrucción: fragmentación en materiales, formas y sistemas técnicos.”
Reparação, Refuncionalização e Reinvenção
O processo de subversão da lógica industrial fechada a partir da produção artesanal de objetos cotidianos se dá através de três práticas distintas: a reparação, a refuncionalização e a reinvenção. É uma classificação que nos permite observar essa produção sob uma espécie de gradiente, onde o conceito de desobediência tecnológica aparece de maneira crescente e de acordo com o avanço na crise e na precariedade das condições de vida dos cidadãos.
A reparação é o processo mais banal e recorrente, sobretudo nos primeiros momentos do Período Especial, onde o significado e a função originais do objeto são mantidas, mas seu ciclo de vida é alterado e extendido através da substituição de peças ou pela adaptação de outras.
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Segundo as palavras de Oroza “La reparación puede ser definida como el proceso mediante el cual devolvemos parcial o totalmente las características –técnicas, estructurales, de uso, de funcionamiento o de apariencia– a un objeto que las ha perdido completa o parcialmente.”
Na segunda posição deste gradiente aparece a refuncionalização. Aqui o objeto industrial ganha novos usos, gerando novos objetos com um grau maior de subversão. Carências básicas são supridas com adaptações funcionais que se aproveitam das qualidades materiais do objeto original - material, forma ou função - mas que são colocadas em outro contexto, completamente diferente daquele para o qual foi criado originalmente.
Por último aparece a reinvenção, a prática mais subversiva desse conjunto, que consiste em criar um objeto absolutamente novo, baseado em peças e partes de outros objetos descartados. O resultado final desse processo é uma alusão involuntária ao objeto socialista, ou transparente, imaginado por Boris Arvatov. Um objeto austero, despido de suntuosidade (burguesa) e que expõe completamente a sua lógica de produção, quase que didaticamente, a fim de que possa ser manipulado, consertado, recriado e reproduzido.
A Gambiarra
Até esse momento, observando rapidamente os resultados formais de tais processos é inevitável fazermos uma comparação com a prática da gambiarra, tão comum no Brasil. De fato, é possível traçarmos um paralelo entre os três níveis de desobediência dos objetos cubanos com a classificação proposta por Boufleur em sua tese de doutorado (ver referências ao final da parte 2), onde também aparecem níveis crescentes de desvirtuamento da lógica industrial na prática da gambiarra: o improviso, o ajuste utilitário e a subversão.
Apesar da semelhança formal apresentada pelo resultados dessas produções, acredito que a diferença principal entre os objetos coletados por Oroza e aqueles construídos pela prática da gambiarra é que a criação dos primeiros é uma resposta – baseada na prática da acumulação e na ampla padronização existentes na ilha - à questões básicas de sobrevivência, surgidas na precariedade imposta pela ineficiência do regime, e não apenas uma adaptação passageira, criada com as condições materiais existentes num determinado momento.
FIM DA PARTE 1
Eduardo Lopes
Sou um lifelong learner, doutor em robótica aplicada a arquitetura e design, inovador por natureza, maker, vegano e pai de um casal de adolescentes.
Passei a escrever semanalmente no LinkedIn para compartilhar os aprendizados (e as angústias) de minha jornada atual como empreendedor digital aos cinquenta anos, além de contar algumas experiências e aprendizados que vivi no mundo acadêmico e corporativo.
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C'ya!
MIT Senseable City Lab | Interaction Designer & Creative Technologist
8 mEdu, salvei pra ler depois e valeu muito a pena. Recentemente o shutter da minha Nikon D600 estragou e acabou riscando o sensor, transformei em full spectrum com apenas metade do shutter funcionando... desobediente! Com isso descobri fotografia infravermelho, um novo mundo se abriu.
Designer | Maker | Entrepreneur | Open design - User Innovation - Open innovation.
9 mOla Edu, super interessante o seu texto cara, vou procurar saber mais sobre Oroza. Curiosa essas perspectiva... parece que quando existe a ausencia do estado e do mercado promovendo a logica do consumo, emerge no seu lugar o incetivo para ver o residuo como recurso ... uma circularidade por necessidade, se podemos dizer assim.
Coordenadora pedagógica na Escola Projeto Vida
9 mGostei, Du. Vou esperar a segunda parte. Fico imaginando essas gambiarras como protótipos sustentáveis que visam fazer o uso integral dos recursos que foram manipulados pela industria e que tiveram uma função só. Vamos pensar que a escassez vivenciada por Cuba 🇨🇺 exigiu que as pessoas encontrassem soluções para os problemas com aquilo que estava a mão. Ainda sobre a tecnologia, no começo do texto. Acho que tinha sim consciência das consequências.
Strategic Advisor Mobili Partners/ Founder & Chief Executive Officer (CEO) Redcore
9 mObrigado pela lembrança!😉