Direitos de Propriedade, Escassez e Tragédia dos Comuns
Fonte da imagem: PNAS.

Direitos de Propriedade, Escassez e Tragédia dos Comuns

Os direitos de propriedade representam a linha de sustentação para diferentes vertentes que se dispõe a estudar a relação entre o Direito e a Economia: Escola de Chicago, Teoria da Escolha Pública, Nova Economia Institucional etc.

Além disso, também é um direito basilar do sistema econômico adotado pelo ordenamento jurídico brasileiro e em praticamente todos os países ao redor do mundo.

Mas, afinal, o que são os “direitos de propriedade”?

De modo geral, os direitos de propriedade podem ser definidos como a atribuição a uma pessoa ou a um grupo de pessoas do poder de decisão sobre a utilização de um recurso e dos ganhos e perdas deles resultantes.

Ou seja, o direito de propriedade não é sobre o bem em si, mas sobre o conjunto de direitos sobre ele. Mas de onde veem os direitos de propriedade?

A resposta para essa pergunta passa pela compreensão de dois principais problemas econômicos: o problema da escassez e a Tragédia dos Comuns.

O problema da escassez

Os recursos são escassos e isso é óbvio. Mas o que exatamente isso significa e quais as consequências dessa premissa para as relações entre as pessoas?

Um recurso é escasso quando não há mais quantidade suficiente para que todos os que o desejem possam obtê-lo à vontade, sendo necessário escolher entre diferentes usos ou regular o uso.

A escassez do recurso importa por que a sua manifestação se dá mediante conflito, de modo que a resposta geralmente será a violência. O estabelecimento de direitos para uso de um bem é uma resposta à escassez, de modo a evitar o “estado natural”: uma sociedade baseada exclusivamente na posse de um objeto e no uso da violência para proteger tal posse, o que certamente é pouco eficiente do ponto de vista econômico, visto que tal situação aumenta os custos de transacionar.

A Tragédia dos Comuns

Outro problema que surge além do “todos contra todos” hobbesiano, diz respeito ao uso ineficiente de recursos ou, para ser mais preciso, à sua exaustão. Esse problema de exaustão de recursos é denominado como “Tragédia dos Comuns”, o que foi muito bem explorado pelo ecologista Garret Hardin em seu artigo “The Tragedy of The Commons”.

Hardin descreveu como um sistema sem direitos de propriedade definidos diminui os incentivos de uso sustentável de determinado recurso, havendo o incentivo oposto: o consumo desenfreado e sua inevitável exaustão. Vamos tentar deixar um pouco mais claro.

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Glória e Júlia são pequenas pecuaristas que têm de dividir um pasto para os seus rebanhos. Embora o pasto compartilhado tenha recursos suficientes para alimentar somente os dois rebanhos, por ser propriedade comum, não há qualquer impedimento para que uma das duas coloque mais bois para pastar.

Ocorre que Glória, pensando de forma racional em como maximizar os seus ganhos com a venda de carne, chega à conclusão de que aumentar a quantidade de cabeças de gado no pasto é mais lucrativo, visto que o ganho sobre o gado a mais será exclusivamente dela, mas os prejuízos (como a compactação do solo, por exemplo) serão compartilhados com Júlia.

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O incentivo que Glória tem é colocar o máximo de bois que conseguir no pasto. Mas ela não está só, pois o incentivo de Júlia é o mesmo: aproveitar ao máximo que puder os recursos do pasto antes que o rebanho de Glória o faça.

As duas passam a colocar cada vez mais cabeças de gado no pasto, de modo que ele, que antes tinha recursos suficiente para alimentar os dois rebanhos, acaba sendo esgotado pela competição entre as duas pecuaristas.

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Essa é a Tragédia dos Comuns. Um recurso compartilhado e suficiente para a satisfação pessoal acaba se exaurindo por competição, tornando-se escasso. Surge, assim, um conflito entre as duas pecuaristas.

Há algumas soluções pacíficas para o problema: a) uma autoridade externa pode proibir que ambas coloquem mais bois no pasto; b) uma autoridade externa pode autorizar que cada uma coloque mais do que o número limite de bois, mas terão que pagar uma taxa por isso; ou c) pode-se definir que uma parte do pasto será para o uso exclusivo de Glória e a outra para o uso exclusivo de Júlia.

A solução varia de situação para situação. No caso específico, a forma mais eficiente de resolver o conflito parece ser a terceira: definir direitos de propriedade sobre o pasto, de modo que não apenas os ganhos com o gado adicional sejam individuais, mas suas perdas também.

Se definirmos que Glória só terá direito de colocar o seu rebanho em metade do pasto, o incentivo muda: agora ela terá que buscar um consumo mais sustentável dos recursos, pois, embora o ganho seja exclusivo dela, o prejuízo com a compactação do solo também será.

Além disso, ao definir direitos de uso exclusivo, tanto Glória como Júlia terão um incentivo maior para melhorar a qualidade do solo, o que não ocorre nas soluções "a" e "b", visto que o ganho pela melhoria do solo será compartilhado (o que pode ensejar no "Problema do Carona", assunto para outro texto).

A importância dos direitos de propriedade

Como demonstrado, a definição de direitos de propriedade, frente ao problema da escassez, acaba criando incentivos aos agentes econômicos para o consumo pacífico e eficiente de recursos.

É claro que definir direitos de uso exclusivo não funciona para tudo. Há situações em que o dilema dos bens comuns também está presente e que a privatização não seria o melhor caminho ou simplesmente não seria possível. Um exemplo clássico dessa situação é o ar.

Todos utilizam o ar, mas como o prejuízo de sua poluição é compartilhado, fábricas têm o incentivo de poluir o máximo que puderem para aumentar sua produção e, consequentemente, os seus lucros. Nesse caso, a regulação seria mais aconselhável (soluções "a" ou "b").

De todo modo, a segurança dos direitos de propriedade afeta a forma como os indivíduos usarão e investirão na proteção desses direitos. Direitos de propriedade pouco claros, como se viu no exemplo do pasto compartilhado, desestimulam investimentos a longo prazo, ao passo que direitos de propriedade mais seguros, permitem que os recursos sejam alocados de forma mais eficiente e gerem maior bem-estar social.

É justamente por isso que um regime jurídico de propriedade privada, ainda que imperfeito, é preferível ao de propriedade coletiva (que, nas palavras de Hardin, é o “caminho para a ruína”).

Glória e Júlia não precisariam utilizar da violência uma contra a outra ou se utilizar de oportunismo para aumentar sua lucratividade exaurindo o pasto. A simples definição de direitos de propriedade permitiria que as duas convivessem de forma pacífica, limitadas pela lei e alocando seu rebanho de uma forma muito mais eficiente.

Achou o assunto interessante? Então confira a bibliografia para se aprofundar:

Hardin, G. The Tragedy of The Commons. Science. Vol. 162, Issue 3859, dec. 1968, pp. 1243-1248.

Mackaay, E.; Rousseau, S. Análise Econômica do Direito. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2015. 780p.

Zylbersztajn, D.; Sztajn, R. Análise Econômica do Direito e das Organizações. 6ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. 313p.

Matheus Gomes

M&A, Societário e Contratos | RGSH Advogados

4 a

Ótimo artigo, Luiz! Mais uma grande colaboração e até uma forma de racionalizar juridicamente o porquê da propriedade.

Julia Lopes de Oliveira

Advogada Empresarial | Corporate Law | Societário e M&A | Mercado Financeiro e de Capitais | Compliance Regulatório | Governança Corporativa | Direito Digital

4 a

Quando li sobre a razão de ser da propriedade(escassez) tudo fez sentido hahaha. Ótimo conteúdo, parabéns!!

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