A Ditadura da Adolescência

A Ditadura da Adolescência

Manhã de inverno.

O sol desponta atrás das árvores, lançando raios intensos que se dividem por entre os galhos, ramos e folhas, criando uma atmosfera lírica, adocicada pelo canto suave dos pássaros. Estou no meio do parque, como costumo estar todos os dias a essa hora, onde os ruídos agressivos da grande cidade ficam bem atenuados.

De repente, uma sensação incômoda começa a ganhar forma na consciência. Identifico que sua origem é um som desarmonioso e desagradável. Apuro a atenção e constato tratar-se de uma gritaria, uma algazarra, própria daqueles ajuntamentos de crianças que expressam seu contentamento coletivo com espontaneidade, sem constrangimento.

Engraçado, nada seria mais encantador. Porém, por que agora o sentimento que desponta em mim é algo próximo à irritação?

Não tardo muito, entretanto, em compreender o porquê: a ruidosa algazarra não procede de um grupo de crianças como a princípio imaginava ser, mas sim de uma turba de marmanjos, mulheres e homens, todos já de talhe e forma adulta bem constituída, alguns inclusive apresentando cabeças levemente grisalhas. Tratava-se de um desses grupos liderados por um “coach” que se reúne para alguma atividade de fitness que, além de intensa, parece que obrigatoriamente tem de ser barulhenta para atingir seus objetivos. Surpreso com meu sentimento, começo a me questionar: acordei hoje de mau humor? Seria um desconcertante e precoce sinal de despertar de rabugice senil?

Acostumado, por profissão, ao exercício do discernimento dos afetos, percebo logo que a perturbação procede antes da desarmonia objetiva do fenômeno do que de alguma instabilidade subjetiva.

Efetivamente, não tenho nada contra as atividades físicas ao ar livre, muito pelo contrário. O que estava pegando era aquela “forçação de espontaneidade” adolescente num grupo de pessoas que pelo menos do ponto de vista fisiológico já superou tal fase há um bom tempo. Sim, eis aí a fonte desse sentimento difuso que, depois constatei, já não era primeira vez que se manifestava de forma insidiosa em meu ser.


Esse episódio matutino caracterizou-se para mim como uma epifania reversa que me levou a refletir sobre como não apenas parece haver uma dilatação progressiva da chamada adolescência para muito além da idade cronológica originalmente determinada por médicos e psicólogos (algo já muito comentado), mas também sobre um fenômeno intrinsecamente relacionado a essa tendência e que parece se apresentar como algo muito característico da atualidade: a ditadura da adolescência. Hoje já não basta reconhecer a beleza e legitimidade dessa etapa da vida, com tudo o que a ela está associado – jovialidade, “espontaneidade”, expansividade, turbulência e ruído –; é preciso “preservá-la” e “reproduzi-la” muito além do período organicamente determinado.

Num mundo onde ser jovem passou a ser sinônimo de ser “tudo de bom”, o não pensar e o não agir como um teenager condena o adulto a ser considerado um “velho” e, portanto, alguém associado com o “tudo de mal” que está por aí. Assim, com medo de sermos como nossos pais – como nos adverte a revivificada canção de Belchior consagrada na voz de Elis Regina –, estamos fazendo um esforço gigantesco para ser como nossos filhos.

Para além do patético – para quem ainda preserva um resto de sensibilidade e bom senso –, o resultado desse novo tipo de ditadura já demonstra ser desastroso. Isso porque na proscrição do “velho” acaba-se condenando, além daquilo que precisa ser superado, outras coisas, como a experiência, a maturidade e a sabedoria, que lastimavelmente se encontram no mesmo pacote.

Na lógica da justa medida, um mundo onde todos são jovens apresenta-se como algo tão aterrador quanto um mundo onde só houvesse velhos. Pensar nas consequências da ditadura da adolescência na nossa sociedade vai muito além de uma disfunção estética de um senhor hipersensível numa manhã de inverno; trata-se de repensar qual o papel do adulto na relação e quem exercerá esse papel.

E se projetarmos tal questionamento para o âmbito da nossa saúde existencial, já não é possível ver os sinais preocupantes dessa nova ditadura?

Dante Gallian excelente texto, importante reflexão! Passei algumas vezes por situações semelhantes e de forma bastante rasa concluí que o mundo estava “perdendo a educação”. Muito obrigada por me provocar! Precisamos urgente “repensar qual o papel do adulto na relação e quem exercerá esse papel”. Precisamos resgatar valores.

Sandra Papesky

Professora universitária no Centro de Pós- Graduação do Hospital Albert Einstein Professora do Ensino Médio, no Colégio Novo Marilllac

1 a

Professor Dante, que texto mais lúcido do que temos testemunhado em nossos dias. Também tenho alertado para isso nos contextos educacionais onde atuo. Seu texto, Dante, me fez lembrar da contribuição de Hannah Arendt sobre tradição e inovação e autoridade da educação. Realmente precisamos resgatar valores na formação dos recém-chegados ao mundo...grata pela reflexão e solidariedade no sentimento...

Michelle Figueiredo

Analista de Sistemas | Psicóloga

1 a

O despertar da rabugice senil foi fantástico! rs... Eu sempre me senti assim, na contramão da adolescência e pelo seu texto, sim, ela é uma ditadura. Essa reflexão me lembrou de uma mensagem sua, em algum treinamento desses. Ela é mais ou menos assim: não é próprio do ser humano viver como um Deus. Precisamos aceitar o que é inevitável na vida humana, precisamos aceitar o envelhecimento e a morte. A ideia de beleza como juventude eterna não é própria do humano. ❤️

Alice Endo

Gestão de Projetos TI | Consultora de Processos | Educação Corporativa | Consultora de Tecnologia da Informação | Governança de TI

1 a

Seria um upgrade do Retrato de Dorian Gray com um coach envolvido kkk

Gisele Mercado

Recursos Humanos | Felicidade | Complexidade | Transformação | Mercado Financeiro | Tecnologia | Startups

1 a

Como eu gosto das suas reflexões! Obrigada pelo alimento de hoje...

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