Educação com dipirona
Qualquer estudante na área da saúde sabe que, quando possível, tratar a causa é melhor que cuidar dos sintomas. Ao enfrentar um buraco no orçamento doméstico ou uma fraude corporativa, temos o mesmo desafio - tratar a causa-raiz da encrenca e não a sua manifestação. Se fosse fácil, as grandes consultorias e os bons médicos não faturavam tanto.
Conta a mitologia grega que Pandora, tomada por curiosidade, abriu a famosa caixa e liberou todos os males no mundo. Teríamos aí a causa-raiz fundamental, certo? Pandora, a primeira mulher, teria sido criada por encomenda de Zeus a Hefesto, como vingança por Prometeu ter roubado o fogo dos deuses. Disse Zeus: “farei um mal, com o qual, então, todos se alegrarão no seu ânimo, o mal acolhendo”. Os mitos gregos não se preocupavam com questões de gênero. Qual seria a causa raiz? Roubo, vingança, curiosidade, a caixa ou tudo isso misturado?
Essa semana estive na USP, com um pequeno e diverso grupo de inconformados para discutir propostas de políticas para educação pública de qualidade, uma questão debatida ad nauseam há décadas. Meio pretencioso, reconheço. Em comum, a consciência de que estamos falhando diante de um problema monumental e sem solução por aqui. Entre os participantes, dois membros do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o famoso Conselhão - Jeovani Salomão, empresário na área de TI, e a Dra. Rosângela Hilário, professora universitária e ativista de inclusão. Visões políticas diferentes, propósito semelhante e ótima energia.
Logo veio à baila a curiosa situação em que nos encontramos, temos meio milhão de vagas não preenchidas em tecnologia de um lado – posições que remuneram em média três vezes o que o mercado paga – e zilhões de jovens desempregados, porém despreparados, do outro.
Se a discussão fosse travada nos tribunais das redes, logo surgiriam afirmações tão precisas quanto úteis “AAAhnnn mas é só preparar! Se pensassem menos no lucro...” Ou “olha aí as oportunidades! É só se esforçar.”
Deixando de lado o reino do passivo-agressivo ou agressivo-agressivo da internet, o mito do “é só” não ajuda ninguém. Observe que toda vez que alguém solta um “é só”, a solução brilhante é ridiculamente difícil para o distinto público-alvo. “AAhnnnn, é só você criar o hábito de se exercitar todo dia” ou “se quer perder peso, é só fechar a boca”. Bem sei que só passei a frequentar a academia quando, depois dos quarenta, passei a sentir na pele, e nas juntas, a falta de exercício. Fui movido pela dor. Antes disso, não havia “é só” que me fizesse tolerar os halteres. Como disse Mencken, para todo problema complexo existe sempre uma solução simples, elegante e completamente errada.
Voltando à reunião, estavam lá um empresário, dois professores doutores, um brilhante engenheiro que desenvolve tecnologia 6G na British Telecom, uma competente e invocada profissional de TI de Campinas, mãe de quatro, que se deslocou para facilitar a reunião, e eu. Sob a batuta da Profa Hilário, discutimos o fato de termos um sistema público de ensino fabuloso, que tira a criança da rua, alimenta, veste, protege, fornece material didático, transporta, identifica e trata eventuais abusos e integra com a comunidade, mas tem esse defeitinho de fracassar miseravelmente na parte de ensinar a ler com compreensão, escrever bem e fazer contas.
Os suspeitos de sempre apareceram, fiéis que são. A falta de preparo de muitos professores, a ineficácia das metodologias, a necessidade de mais tempo para aulas etc. Obviamente não precisamos de mentes muito aguçadas para isso. Então seria “só” (olha ele aí) formar melhor os professores, implantar o integral e implementar métodos reconhecidos. Fácil. Como ninguém pensou nisso antes? Pena que o desafio sempre está em tratar causas raiz ou investir em soluções que as contornem.
Logo alguém compartilhou que, ao se preparar para a reunião, acompanhou uma escola considerada modelo e localizada em “território periférico” na cidade de São Paulo. Nesse caso, era uma unidade focada nos anos iniciais, do primeiro ao quinto ano. Reconheçamos que é a parte mais digna do nosso sistema educacional. A receita desanda mesmo do sexto ano em diante.
Não foi difícil enxergar problemas estruturais naquela escola. As professoras, na maioria mulheres em torno dos 50 anos de idade, precisavam se atualizar. A escola dispunha de recursos adequados e estrutura moderna. Havia uma sala de computadores que permanecia intocada, pois as educadoras não se sentiam capazes de aproveitá-la. O Estado de São Paulo sabe das dificuldades, claro. O que faz? Contrata cursos de capacitação e atualização e, como incentivo, paga um adicional a educadores para que os frequentem se desenvolvam. Boa ideia! No entanto, como já disse Garrincha, falta combinar com os russos. As professoras respondem ao incentivo e comparecem. O problema é que são pessoas crescidas, e entre adultos ninguém faz o que não quer fazer, no caso, estudar. O tempo de aula não raro vira um grande bate papo com trocas de experiências aleatórias. Quem nunca fez um curso em que não estava interessado que atire a primeira pedra.
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Ao indagar o porquê de elas não quererem fazer o esforço para se atualizarem, a resposta é simples e recorrente: “já estou perto de me aposentar”. Quão perto? 5, 7, 10 anos. Eis um problema interessante, até porque a média de idade dos servidores educadores na rede pública é elevada.
Correndo o risco de simplificar demais, sabe-se que melhorar a formação de professores depende obviamente da vontade individual de cada um. Há os que se engajam e há a imensa massa dos que já se veem perto de se aposentar. Entendem que o esforço mental não vale à pena, ainda que estejam de corpo presente. Na prática, se até um ente federado rico, como São Paulo, não consegue endereçar essa questão satisfatoriamente, imagine os demais.
Voltando aos suspeitos de sempre, falta de formação, método adequado e educação integral, poderíamos concluir que sem formação ou atualização de nossos educadores, a questão da metodologia não evoluirá como deve e o aumento de carga horária terá resultados pedagógicos frustrantes - embora eventualmente tenha resultados sociais interessantes.
De novo, reconheço que tomei atalhos lógicos. Além disso, este pequeno texto trisca apenas um aspecto desafiador na formação dos professores, a motivação pessoal, e essa questão é apenas uma entre tantas outras liberadas na caixa de Pandora da educação brasileira. O remédio para a falta de motivação dos professores foi enfrentado por lá com um incentivo financeiro, que eleva a presença nos treinamentos, mas não o engajamento.
A disfuncionalidade da dinâmica é um tanto óbvia. Vejamos. Problema: professores desatualizados. Solução implementada: cursos disponibilizados. Novo problema: a maior parte dos professores não se inscreve nos cursos. Nova solução: dar dinheiro em troca de matrícula e frequência nos cursos. Novo problema: professores se inscrevem e frequentam os cursos, mas a maioria (?) não está motivada a se atualizar. Nova solução: ainda não encontrada.
Claro que há aqueles que aproveitam o que é oferecido e estão cheio de energia, no entanto nossos indicadores de aprendizado mostram que não são tantos assim. Parecemos o cão que corre atrás do rabo.
Em porcentagem do PIB investido em educação, o Brasil hoje não faz vergonha na OCDE como fazia no passado, mas seguimos falhando. O País tem um edema cerebral grave e esperamos que ele melhore com doses massivas de dipirona. Como privilegiamos medidas de esforço no lugar de resultados ou desempenho, os incentivos estão tortos e o sistema está doente. Não é simples nem fácil repensar os incentivos que regem esse sistema. Se outros países conseguiram, é possível. Por aqui, talvez.
Curiosamente, há um sopro de esperança vindo de onde menos se espera. Como é bom desafiar nossos preconceitos. Tradicional frequentador das últimas posições em qualquer avaliação educacional realizada até meados da década passada, o Piauí vem consistentemente elevando seu desempenho e, pasme excelências, já figura entre os 10 estados com melhores índices no Ideb. Colhe os frutos de uma estratégia fortemente baseada em tecnologia e telecomunicações, fazendo uso do contraturno escolar.
A estratégia não é combater o sistema, dado que é invencível, mas passa por ocupar os espaços disponíveis com parceria e qualidade. Sem ironia, parabéns aos envolvidos. As propostas do nosso grupo foram nessa direção, plataformas de aprendizado, tecnologias e contraturno. É o espaço que temos.
Analista de Regulação Senior | Cemig - Companhia Energética de Minas Gerais
6 mNos meus tempos de faculdade, era poético ver professores ensinando conceitos e deduzindo fórmulas "na ponta do giz". Hoje, de volta à sala de aula como aluno de curso técnico na área de Análise e Desenvolvimento de Sistemas, me entristeço ao ver que a grandeza pedagógica que o quadro negro refletia, foi substituída pela frieza do Power Point. Saudosismos a parte, parabéns pelo excelente artigo e pelas iniciativas em prol de um país melhor.
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6 mMaravilhoso
Graduate Administrative Specialist at Superior Tribunal de Justiça (STJ)
6 mExcelente artigo, xará! Acompanho as aventuras da minha esposa, professora dos 1os anos da EJA. Ela de fato já está no abono permanência, mas continua trabalhando para tentar ter a melhor aposentadoria possível. Ela, como tantas outras profissionais da educação, teve uma necessidade de olhar para as tecnologias durante a pandemia - mas na prática, dependeu de alguém com mais agilidade no manejo dessas, o marido. Hoje já avançou mais no uso de inovações no preparo da aula, mas ao enfrentar a sala de aula, tem no máximo uma TV para passar vídeos que fazemos download para um pen drive. A escola, em Brasília, não tem um wi-fi de qualidade, a sala de tecnologia pouco utilizada. Mas em sala de aula, com as alunas do 4o ano, ela já usou ChatGPT para tirar dúvidas e vai incorporando o que pode de novidade ao diálogo.
Secretária de Controle Externo no Tribunal de Contas da União
6 mAdoro suas reflexões, Jezini. Brilhante!