O preço da volta ao segundo lar

O preço da volta ao segundo lar

Como tantos outros, voltei ao trabalho presencial. Ou híbrido, porque a sexta-feira ninguém devolve. É tempo de readaptação. Como voltar a dirigir um carro de câmbio manual depois de anos navegando no automático.

O primeiro dia foi estranho. Acordei com tempo de sobra para o meu ritual matinal: oração, Clash Royale, café, Instagram, academia (aff) e chegar sem correria para a primeira reunião presencial.

Na hora de sair para os exercícios, percebi que não contara duas das antigas etapas: vestir a fantasia de trabalho (depois de procurá-la!) e sair de casa. Escorreguei na gestão do tempo, por pura força da falta de hábito. O jeito foi dar meus pulos sob o olhar esnobe do gato. Acho que ele permanece por perto só para isso. E comida.

O retorno ao presencial é uma mudança radical. Apesar da violência da pandemia, o tal lockdown trouxe boas novidades. Hoje, meu escritório doméstico fica a 12 centímetros de distância da cama. Se eu levantar e der dois passos, perderei a entrada e terei de fazer um retorno. O traje profissional se resume a uma camisa, que pode estar amarrotada. Fazer a barba havia se tornado uma atividade bissexta.   

Foi nesse cenário que experimentei o milagre da multiplicação da produtividade e da qualidade de vida. Ao mesmo tempo! Costumava achar que uma competia com a outra, mas isso na época pré-apocalíptica, de cansaço permanente, encerrada com a pandemia.

Para quem tem uma capacidade de foco delicada como eu, produzir intelectualmente em um ambiente com mais de duas pessoas é como viajar de carro por uma estrada de terra. Assim que ganho velocidade, caio num buraco.

Em casa, o trabalho é no quarto, uma vez que o escritório pertence à Paty (não estou reclamando, querida!). A únicas distrações são o celular e as outras personalidades que habitam meu cérebro e que, graças a Deus e à terapia, convivem em harmonia parcial.

Quando canso, é só deitar, meditar, jogar, cochilar ou até puxar uns ferros na academia. Parte do segredo é não permanecer cansado, que era o meu estado-padrão de outrora. Se precisar relaxar, posso meditar um pouco ou até fazer algum exercício físico.

Fadiga de Zoom? Ou de Teams? Só se houver muitas reuniões em que a câmera tenha que ficar aberta, e seja necessário realizar movimentos faciais de empatia e interesse. Ainda assim, com alguma criatividade, é possível espairecer ao longo do compromisso.

Nas reuniões com a câmera desligada, a liberdade é plena. Uma vez corri cinco quilômetros durante uma delas, embora o último quilômetro tenha sido custoso. O criador da Khan Academy, Salman Khan, disse, numa entrevista, que costuma sair para caminhar ao longo de reuniões on-line para permanecer focado. Faz sentido para mim.

Nas reuniões com a câmera aberta o bicho pega, pois, além de prestar atenção de verdade, você tem que sustentar a aparência de quem está prestando atenção. De verdade. Isso é especialmente difícil quando não se tem interesse direto no assunto e a discussão se arrasta sem convergir para uma conclusão. Qualquer conclusão! Bem sei que isso é desagradável para qualquer pessoa equilibrada. Para quem transita no déficit de atenção, como este que vos escreve, a agonia muda de nível. Febre, frio e dor de cabeça.

Contudo, esse cenário é pior na forma presencial. Acompanhar uma discussão, forçando os neurônios a se concentrarem, sem participar ativamente dela, é uma das atividades mais extenuantes que conheço. De coração, prefiro visitar um fisioterapeuta, dermatologista, dentista, nutricionista, personal, instrutor de pilates ou qualquer outro prestador de serviços de tortura legalizada. Até balés de fim de ano das crianças ou solenidades de formatura são menos doídas, dado que não exigem atenção, só fotos. 

As reuniões on line, por alguma razão, são mais objetivas. É verdade que, mesmo à distância, alguns compromissos se tornam longos e exigentes. Em casa, sem problemas. Quinze minutos de olhos fechados em silêncio trazem combustível novo. Na firma, por outro lado, há que se empurrar o dia até o fim, desviando de missões que exijam criatividade, enquanto recebemos doses massivas cafeína em veículos de qualidade duvidosa.

Sei que essa não é a experiência de boa parte dos gerentes, que, entre uma urgência e outra, com reuniões em sequência e demandas por decisões rápidas, nem veem o tempo passar. É possível entender a resistência de muitos gestores ao teletrabalho. O jogo perde boa parte da graça, e há riscos para o espírito de equipe, para a cultura e outros tantos. Não faltam artigos sobre o assunto por aí. Esse texto não é um deles.

 Ainda bem que, para minha sorte, trabalho cercado por pessoas capazes, simpáticas, dedicadas, bonitas, brilhantes e que, além de tudo, podem se deparar com esse texto em algum lugar obscuro da deepweb, num dia frio, chuvoso e sem nada de novo na Netflix, Amazon e Disney+. Como se não bastasse, o TCU é um lugar que, para ficar bom, teria que piorar muito.

Digo tudo isso, mais como uma "mea culpa". Caso você me veja distraído por aí, perdoe-me. Não é pessoal. São só anticorpos emocionais reagindo ao ambiente.

Voltando ao dia de retorno ao trabalho presencial, confesso que nem me lembrava dos sapatos que costumava usar. Das calças eu recordava, mas elas haviam esquecido de mim. Fui salvo pelos últimos buracos do cinto.

Gosto da estranha experiência de cumprimentar os colegas fisicamente. Estão diferentes da tela, bem arrumados, de cabelo penteado. Reconheço que o contato presencial com uma equipe querida produz endorfinas. E foi assim que renasceram as reuniões presenciais, a animação do café na copa, aquele papo pessoal que só o olho no olho permite, o retorno do almoço direto para a mesa de trabalho, o pacote completo.

Minha recente experiência pessoal, dos acrescida da opinião de alguns colegas de equipe e de outros que fazem trabalho intelectual, pode afirmar que o trabalho presencial tem produtividade menor, e não conta com as estratégias de relaxamento e descanso possíveis no home office.  A exceção são os que têm crianças pequenas em casa e se aproveitam do acesso à sacrossanta paz de um cubículo corporativo.

É uma visão pessoal sobre um assunto em que sobram opiniões e os dados mais confiáveis ainda estão na infância. Melhor, então, despedir-me nas palavras proféticas gravadas pelo Rei Bob, há quase 50 anos:

...

Eu voltei

Tudo estava igual como era antes

Quase nada se modificou

Acho que só eu mesmo mudei

E voltei

...

Helton Garcia

MSc, CISSP, CISA, CISM, CISO, DPO, NIST CSF LI, COBIT-F

2 a

Muito legal o seu texto. Parabéns!

Lucas Filho

Fundador da empresa Reino Consultoria. Ministra aulas de oratória para professores Universitários (outras áreas).

2 a

Grande Daniel! Bom retorno! Há tempo para tudo... (RS)... Foi muito bom revê-los em Brasília!!! Gratidão pela amizade de longa data! Abraço e sucesso!!!

Claudio Feijó, MSc.

Assistente da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho at TRIBUNAL SUPERIOR DO TRABALHO

2 a

Caríssimo Daniel, bom revê-lo animado como sempre! Quanto ao on-line, híbrido ou integralmente presencial, de fato, é a produtividade que deveria guiar as ações de qq empresa, órgão ou instituição. Só falta combinar com os gestores. kkkkkkkkkkkkkkk. Forte abraço e parabéns pelo retorno!

ELIAS CARVALHO

Coordenador de Gestão da Integridade - Corregedoria - Diretoria Colegiada - Agência Nacional das Águas e Saneamento Básico - ANA

2 a

Sucesso no retorno ao mundo novo rs.

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos