A serviço de quem?
Na pátria amada, com uma economia emocionante, um emprego público é um sonho pra maioria. A aprovação não é só um novo emprego, mas uma nova identidade. Tomamos posse, o cargo é nosso e ninguém tasca, e não tasca mesmo. Eu gosto muito da minha estabilidade, devo confessar. Como tenho uma doença inflamatória intestinal, eu queria poder adoecer em paz, sem ansiedade extra. Acertei na mosca, e ainda tenho a sorte de não ter precisado de licenças por muitos anos, nem por Covid.
Embora haja caminhos legais para a exoneração, a estabilidade, na prática, é absoluta. Por exemplo, para ser demitido por abandonar a função, é preciso não aparecer E não dar satisfação por muito tempo. Pela lei, você pode faltar uma semana por mês, todo mês, todos os anos, sem justificativa, e talvez, se estiver no modo presencial você pode ser descontado não demitido.
Quem mais demite é a Receita Federal, quando a Corregedoria consegue provar uma conduta irregular. Foram perto de oito mil em vinte anos, centenas de vezes mais do que qualquer outra empresa ou orgão público brasileiro. A maior parte por corrupção, um bloco menor por acumulação ilegal de cargos e ZERO por insuficiência de desempenho.
Registro que a maior parte dos colegas com quem trabalhei nos meus mais de 20 anos de TCU e em contato com outras organizações fazem um trabalho sério, embora como regra não desgastante demais.
Há, claro, os obsessivos. Trabalham sem parar, se estressam e vivem para produzir. Quando combinam isso com habilidades de gestão, se tornam comissionados profissionais, agentes de mudança e sustentação da máquina. Precisamos muito deles. Na outra ponta, como em qualquer distribuição estatística, há os que são absolutamente inefetivos, quando não tóxicos, ano após ano. São protagonistas de histórias foclóricas do imaginário estatutário, entre conflitos, desculpas e afastamentos.
Qualquer colega com poucos anos de posse terá a oportunidade de conhecer algumas figuras e de testemunhar a história sendo feita. Acostumamo-nos ao absurdo como inevitável.
Imagine alguém aprovado em concurso sem a intenção de se dedicar, afinal, trabalhar é algo que se faz só até entrar em exercício, pensa ele. Ou não. O nobre colega pode descobrir que lhe falta vocação ou não foi agraciado com o perfil para as atividades da carreira. O que fazer, considerando que pedir exoneração não passa pela cabeça da maioria absoluta dos sobreviventes na dura batalha do concurso público?
Ora, isso não é necessariamente um problema. Pode-se encontrar outro lugar na organização, o que é legítimo. Há muitos espaços para contribuir. Passou pra fiscal mas não curte fiscalizar? O mala congênito vai encontrar um barranquinho para se encostar. Só há “desvio de função” quando a alocação não é de comum acordo, e lhe colocam para fazer algo “fora do rol de atribuições” contra a sua vontade. Pessoalmente, acredito que a alocação deve ser flexível mesmo, é só um caso para exemplificar quem costuma ser o lado mais fraco dessa relação.
Caso o nobre, por demanda da carreira ou da necessidade do serviço, realmente precise fazer que lhe incomoda, não há por que se estressar. Ou melhor, ele pode se estressar sim, pois entre conflitos e eventuais atestados (reais, por causa do estresse), a figura não produz nada, atrapalha o ambiente e causa bournout no chefe. Criamos um raro caso de assédio inverso em que pouco há a ser feito.
Um exemplo classico de falta de perfil (não de malas) são os professores públicos que não nasceram para a sala de aula, especialmente em territórios de vulnerabilidade econômica. Vivem agoniados e adoecidos, pois as condições de trabalho podem ser bem insalubres. Como não são vocacionados para esse tipo de combate (esse trabalho exige mesmo desapego e paixão), desenvolvem distúrbios emocionais. Acabam emendando licenças médicas ou readaptados. Estou falando de licenças legítimas e doenças reais, não de picaretagem, que é outro papo.
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Em qualquer outro ambiente profissional fora da administração pública brasuca, a pessoa reconhece a causa da depressão, a própria falta de inclinação para a atividade agressora e pede demissão para ser mais feliz em outra atividade. Não na distopia brasileira. Como falamos, isso até acontece mas não é a regra. Há maior chance do educador machucado emendar afastamentos até a aposentadoria ou ser readaptado numa biblioteca tranquila mais perto de casa. "É porque o Estado não dá boas condições de trabalho", ouço por aí. Eles têm razão, mas somos um país com muitos problemas complexos ainda. Essas boas condições, se vierem, levarão bons anos no cenário mais otimista. O que todos os não vocacionados farão até lá? Não olhe pra mim, que eu não sei a resposta.
Ao fim de litígios repetidos milhões de vezes em todas as áreas públicas, em todas as esferas e em todos os anos, aloca-se o servidor-problema (que não são maioria, quero destacar) em uma função de menos pressão e, salvo raras exceções, de improdutividade ocupada. Ou não, com o advento do teletrabalho salvador, nem há que se dar ao trabalho (haha). Alívio para muitos chefes.
De quando em quando algum gestor encasqueta com um caso absurdo e decide “ir até o fim”. A jornada para exonerar alguém equivale a uns 5 dos 12 trabalhos de Hércules. São tantas etapas, relatórios, avaliações e procedimentos, tudo devidamente documentado, claro, que simplesmente não vale o esforço. Ainda assim, caso o superior masoquista tenha muita disposição e competência, é possível por lei demitir um servidor improdutivo, mala e tóxico. Na prática, o cara tem que ser tudo - inútil, mala e tóxico - e ainda dar o azar de ter um chefe especialmente teimoso.
Caso a improvável demissão ocorra, a cereja do bolo é a vitória do sujeito na justiça muitos anos anos depois, por alguma falha processual sem análise do mérito (são muitas etapas em que podem conter erros e os juízes ficam com pena do pobrezinho). Daí o exonerado volta, recebe os “atrasados” corrigidos, e desfila a lá Zagallo no “vão ter que me engolir”.
Bata um papo com um gestor aleatório na Esplanada. De qualquer ministério ou autarquia. Pergunte se falta gente pra trabalhar. A resposta provável é sim. Há mais trabalho do que trabalhadores, de verdade. No entanto, raramente há mais trabalho que servidores. Temos o curioso desequilíbrio de organizações em que falta e sobra gente. Ao mesmo tempo. Talvez só falte porque sobra. Não é uma regra absoluta, claro, mas bem frequente.
As associações de classe costumavam (costumam?) meter o “mas é que falta capacitação”. Simples, é só capacitar, certo?! Pois tente. Encorajo-o a treinar a turma em novos processos ou tecnologias. Prepare-se para ouvir histórias criativas. É divertidíssimo. Depois de décadas andando por duzias de órgãos públicos pelo país, de todos os poderes e esferas, ainda curto os relatos.
Como regra, não há incentivos suficientes para motivar a força de trabalho. Nossa gestão de pessoas evolui a passos de cágado confuso. É por isso que há organizações com 80% de comissionados ou cargos de confiança, em que o adicional serve de incentivo. Achava errado, mas parei de condenar a prática há tempos. "You know nothing, John Snow". Encaro como um bandaid numa ferida sem solução fácil. Certo que há os engajados, os carregadores de piano e os incorrigíveis apaixonados. Toda honra a eles.
Por essas e outras sou a favor da tal reforma administrativa, mesmo que meia boca, incompleta e torta. Reconheço a preocupação com eventuais abusos por dirigentes contra servidores hipossuficientes, mas me parece que temos muito mais situações de abusos com sinal invertido.
A lei protege o servidor enrolador de tal maneira que o bom é honrado simplesmente por fazer seu trabalho. Ainda bem que não sou mais gestor. Boa sorte, meus amigos gerentes, diretores, coordenadores e secretários. Que a Força esteja com vocês.
Diretor de Programa/ Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental
2 mRoberto Pojo, Claudia Martinelli Wehbe
Chefe da Assessoria Especial de Controle Interno | Ministério do Planejamento e Orçamento
2 mTexto certeiro, mas ouso dizer que não apenas a reforma administrativa mas a reforma na gestão de pessoas do setor público é pra ontem. Deixar se ser uma caixinha burocrática para passar a ser o motor da organização.
Co-autora Plano Diretor de Logística Sustentável | Professora Gestão Pública IFSC | Dedicada à Governança ESG e Compras Públicas Sustentáveis
2 mTô aqui tentando escrever um comentário - sobre a gestão de desempenho ou do resultado da nuvem - mas o efeito da bomba persiste. Acho que fiquei meio surda.
Ele/Dele
2 mQuando mergulhei no mundo da criptografia de chaves assimétricas, foi quando conheci a ICP-BRASIL e consequentemente o ITI. Ao visitá-lo, achei incrível como toda uma rede importantíssima à nação, tinha como base uma instituição pública tão enxuta! Em torno de 90% da força da ICP-BRASIL vem do setor privado. O comitê gestor dela define as regras e pronto, quem investe, quem opera e quem baliza o preço, é o mercado. E funciona! Eu vejo nesse modelo o futuro de um Estado funcional, onde boas regras são legisladas, executadas e fiscalizadas, mas a um custo mínimo. E por óbvio, essa rede gigante de servidores seria finalmente testada em tamanho e utilidade.