A emergência mata a inteligência
Certa vez, ao atender um pedido de um cliente que solicitava uma alteração numa página de organogramas da empresa para quem prestávamos o serviço de manutenção do seu site, perguntei: “você quer trabalhar com emergência ou com inteligência?”.
Pode até parecer ríspida (e é) uma pergunta dessas, mas ela é fruto da normalização de um processo longo de abusos nas relações entre fornecedores e solicitadores. Eu, antes de trabalhar com implementação de projetos digitais, estava no ramo de produção gráfica e atendia editoras, designers freelancers e agências de publicidade com diversos tipos de serviço, desde configuração e manutenção de equipamentos, passando por padronização de produção e até troubleshooting de projetos. Com todos esses clientes havia um momento de “deu ruim” em que a gente precisava se desdobrar e valer por dois para atender prazos e qualidades.
A normalidade
Com eles, o acordo tácito era: “deu ruim; ajude a gente que vai ser compensado”. E por compensado significava ganhar mais trabalhos com melhor rentabilidade — e sem estresses — ou um preço mais alto na execução do serviço (com estresse), como uma taxa de urgência. Todas as pessoas do mercado tem uma história ou duas de “na volta vai ter a compensação” com finais felizes ou não.
Este modelo funcionou bem quando poucas empresas tinham a capacidade produtiva ou técnica que os clientes exigiam. Com a virada digital dos anos 1990, produzir um material gráfico começou a ficar mais fácil, mais barato e mais rápido (e eu já escrevi aqui <http://bit.ly/2oVSf48> que esse pensamento é a antítese de um bom serviço ou negócio).
O pivô das mudanças, naquela época, se deu nas agências de publicidade. Por conta do bolso gordo de umas contas, os fornecedores se digladiavam e o acordo citado frequentemente era quebrado. Além disso, quando tem muita gente oferecendo condições impossíveis e prometendo unicórnios falantes a cada entrega, as pessoas passam a considerar isso como o novo normal. O standard passa a ser definido num patamar de entrega mais alto. Um layout recebia considerações às 20h e o esperado era que todas as alterações estivessem prontas às 8h do dia seguinte, na mesa do cliente. Isto estressava toda a cadeia criativa, do diretor de arte ao pessoal da produção e nem sempre o valor do esforço estava claro. Falo isso de cadeira porque trabalhei nos dois lados, como fornecedor e como cliente, mas há gente melhor que eu que estudando e escrevendo sobre isso há tempos.
Há destruição de valor quando o urgente passa a ser o normal.
Este nível de atendimento pode parecer bom num primeiro momento, mas tem como consequência principal a invisibilização do esforço que é colocar um impresso, um produto, um projeto nas mãos do cliente. Ou seja, o *seu* trabalho passa a ter *menos* valor e *mais* esforço. Novamente, se o mercado está disposto a esta queda de valor e consegue equilibrar o seu valor com outros processos, tudo bem. A qualidade do quilo de açúcar de hoje não se compara à do século XVI e é BEM mais barato. Idem para o sal e alimentos. Podemos falar que a eficiência na produção de sal, açúcar e outros alimentos aumentou e o valor do serviço foi valorizada na mesma medida e tal, mas isto se aplica à prestação de serviços que vemos hoje?
O termômetro para esse movimento, para mim, é quando acontece um desastre num projeto e a tal “emergência” se manifesta. Sabemos que o evento da emergência acontece mesmo e não tem jeito. Tempestades tempestam, governos (des)governam, pessoas pessoam, projetos são desplanejados. O que se pode fazer — e, nesse ponto concordo com os bulshiteiros das mídias sociais empreendedoras — é aproveitar o evento para gerar aprendizado e mitigar os estragos, fazendo disso uma nova oportunidade de negócio. mas isso dificilmente acontece.
Por quê?
Porque a emergência emburrece.
A emergência
A gente gosta de heróis e de game changers. Fica mais fácil explicar os motivos de sucesso e fracasso de uma história se ela tiver personagens que puxam para si a responsabilidade dos fatos. O problema é que raramente uma pessoa ou fato, ou sistema é que são responsáveis pelo sucesso, ou falha de um Projeto, Produto ou Negócio (PPN). Mas esse gatilho argumentativo está no nosso sistema operacional básico, no nosso kernel de pensamento. Não conseguimos entender sistemas complexos sem um causa-e-efeito em linha, em comboios. E a vida não vem num trem; ela chega em tempestades.
Numa tempestade não há heróis. Há gente trabalhando para salvar vidas, preservar estruturas ou simplesmente sobreviver. Tem gente treinada para entrar em ação que fica invisível na maior parte do tempo (e vou falar disso mais à frente), mas a gente gosta de pinçar um herói aqui, um guerreiro acolá para deixar a história mais rica. E, pior, tem sempre um despreparado querendo fazer esse papel. Em todo projeto tem alguém que bate no peito, diz “manda para mim” e falha fragorosamente em prazo, qualidade e escopo.
É batata!
Na empresa onde hoje trabalho, temos uma cultura de mudança contínua, de culto ao bom erro. As demandas dos setores de venda e retenção são bastante ad hoc e isto é da natureza do negócio e, claro, muita coisa pode dar errado aqui e ali. Como exemplo — e para não ficar puxando sardinha para a firma — não se pode entrar no mercado de ações e achar que apenas um bom planejamento, na “décima casa decimal”, resolve tudo. O imponderável acontece e o trabalho (no sentido de execução, de resultado) é extremamente volátil. A riqueza de hoje pode se evaporar amanhã por fatores que só se entendem a posteriori. Um investimento que parecia ser sólido pode ir pro espaço ante uma denúncia de corrupção ou a chegada de uma concorrência melhor estruturada. Lembro apenas de quem comprava telefones da Telerj para usar como renda complementar, alugando-os a quem não conseguia uma linha. Teve gente usando as economias de uma vida para comprar centenas de linhas. Pois é…
Dado que o desastre eventual é inevitável, a diferença é a postura. Em alguns lugares qualquer mudança é vista como ofensora à produtividade, especialmente as que poderiam ser previstas (eu mesmo sou adepto a essa linha de pensamento, mas abafa! Vai que meu chefe me lê…). Só que nem sempre temos os recursos para ficar prevendo o que poderá acontecer.
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Hm. Melhor explicar esse ponto.
Antever mudanças é um trabalho inglório e ineficaz, na maioria das vezes. Os mercados têm tantas variáveis que controlar cada um deles é/fica contraproducente. Porém, grandes eventos dificilmente são discretos. Natal, Carnaval, Black Friday e o Aquecimento Global tão ai, inexoráveis. Não se planejar para eles é apenas estupidez, mas eventos como o ataque e a queda das Torres Gêmeas (seguidos por outros eventos terroristas no mundo) e seu impacto nas leis de segurança em voos (ainda que ineficientes), a guerra ao Terror (cara, exacerbada, hiperbólica), o derramamento de petróleo no Alasca e as regras de SOX para transparência empresarial, geraram tantas ondas de mudança de negócios, relacionamentos e na forma que falamos/pensamos que eram impossíveis de serem previstos antes de serem vivenciados.
Em outro extremo, há negócios em que a mudança é raríssima. O pipoqueiro tem que se preocupar com poucas coisas mudando na sua rotina, tirando, talvez, a flutuação de preços do óleo, do milho, do gás de cozinha, do preço da condução, da mensalidade da escola e da licença da prefeitura. Essas variáveis estão mais para constantes que qualquer outra coisa. Isto não quer dizer que esses trabalhos sejam mais fáceis ou mais tranquilos. Apenas que o improvável é mais raro.
E quem fica diminuindo riscos — seja no mercado financeiro, seja no projeto de um edifício ou no policiamento de uma região — não tem o seu trabalho reconhecido. Um crime evitado por um esforço conjunto de inteligência social, ações que promovam a retirada de jovens da criminalidade e inclusão de minorias marginalizadas dificilmente tem o mesmo apelo midiático que um voo de helicóptero ou uma parada de tanques de guerra na principal avenida. O trabalho de formiguinha dos mitigadores do improvável é invisível. Só quem trabalha, ou melhor: estuda no nível mais profundo é que consegue ver o valor desse batalhão sem rosto que defende a normalidade diariamente.
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Voltando, dado que o risco é intrínseco, as mudanças são inevitáveis e o erro é consequência direta desses dois fatores, a única saída que resta é assumir que nada é certo e que o improvável é filho do Murphy com sua lady. A tal da Lady Murphy.
Piadas (ruins) à parte, o Nassim Taleb escreveu bem sobre como resistir e sobreviver às mudanças inesperadas no Antifrágil e no Arriscando a Própria Pele (aliás, todo gestor de projetos e produtos deveria ler MUITO sobre estatística e começar a desmontar algumas certezas). Mais do que regras, é uma forma de entender as inconstâncias e ficar preparado para a mudança da maré.
Não consigo deixar de pensar no surfista que todos os dias treina duas, três horas. Na hora H, ele pega aquela onda maravilhosa e dá seu show. Mas ele sabe bem que aquela onda não se repetirá, que aquele mar é único e o seu treinamento é feito para que não tenha de pensar naquilo que não dá resultado, para fazer seus movimentos instintivamente. Uma outra anedota é aquela do Garrincha, que parece ser apócrifa, quando foi informado do plano tático do jogo perguntou se os “russos” (a URSS, na época) tinham sido avisados.
O treino, os estudos, as projeções, o planejamento são feitos para gerar inteligência. Para que se saiba para onde se vai, meçam-se esforços, projetem-se resultados e determinem-se habilidades.
Não há planejamento que dê conta do desespero; não há projeção que pague os custos do instantâneo, não há estudo que resista a uma emergência. Só a habilidade é capaz de funcionar nesses casos e mesmo ela precisa de um campo propício para funcionar.
A inteligência
Falei antes sobre gerar inteligência a partir dos erros. Mas acho importante reforçar que o processo de inteligência corporativa (apesar de ser quase uma contradição de termos) é anátema dos métodos ad hoc. Ao mesmo tempo, é impossível fazer um determinado serviço especializado sem gerar automaticamente uma inteligência em cima dele. Somos condenados a gerar inteligência, enquanto espécie.
Vou contar duas anedotas para ilustrar. O primeiro caso é o do pipoqueiro do início do texto. Ele não planeja no último grau o quanto de óleo, do milho, do gás de cozinha e acepipes deverá comprar semanalmente. É um conhecimento que ele vai adquirindo durante a execução de seu trabalho, de acordo com o local em que parará sua carrocinha e com o calendário escolar. Ele não precisa de uma planilha e nem de uma ferramenta na nuvem para estimar custos e otimizar receitas. E quando digo “não precisa”, significa que se ele gastar tempo para ficar nesse nível de controle, provavelmente estará deixando de fazer outras coisas e gastando menos no seu produto. Um overplanning pode matar o trabalho do pipoqueiro.
Mas aí aparece um concorrente. Um outro pipoqueiro que resolve vender — além da pipoca — amendoim doce. Ele aposta na diversificação de produtos para conquistar o nicho de clientes que não quer comer produtos de milho (pipoca doce, salgada e mista). E ele também faz pipoca. E torresmo. E bacon. Pronto. O mundo do pipoqueiro ficou mais complexo, o share of wallet dele fica comprometido, o revenue flow fica estrangulado. Ou não. Dependendo da inteligência do pipoqueiro com o seu negócio ele pode intuir que o concorrente não terá fôlego para manter os produtos naquele preço e quebrar, ou ele poderá se aproximar do concorrente e dividir os custos de gás, dividindo a oferta de produtos, evitando o overlap, e comprando seus insumos a granel, mais em conta. Tudo dependerá do que ele adquiriu nos anos e anos que passou vendendo sua pipoca e das habilidades que cultivou.
Numa empresa maior — digamos… numa operadora de celular — o cenário é um pouco mais complexo. Os valores que entram em jogo são muito maiores; os danos de um projeto mal planejado podem chegar na faixa de bilhões. Daí a necessidade de controles, medições e planejamento. A inteligência, neste caso, fica a cargo dos procedimentos (mais do que sistemas e repositórios) que esta empresa adota para si.
O maior risco aí é de um underplanning, um movimento que vejo ser replicado muito hoje em dia por executivos que são espelho do que aconteceu vinte anos atrás nas agências de publicidade. Hoje, colocar um app (se pensarmos app como serviço ou ferramenta digital) ou um sistema é mais barato, rápido e fácil que naquela época. Nos anos 1990, um auto atendimento dependia de investimento de hardware e software de todo mundo. Hoje, investimento já foi pulverizado, distribuído e amortecido várias vezes (vide os ATM do Banco24Horas que de caríssimos, viraram commodities e perderam valor de marca para os bancos). Só que nada disso é desculpa para a pressa na hora de se executar um projeto. “Quando se corre, perde-se a paisagem”, diz a frase de caminhão, e a paisagem é o principal atributo desses projetos. O que se aprende com o cliente, com o produto, projeto e negócio é o determinador principal para se gerar a habilidade necessária (e coletiva) para sobreviver às tempestades corporativas.
Mas aí o Vice-Presidente de Inovação Contextual resolve criar um app de autoatendimento; e não conversa com o time de suporte ao cliente, confia no seu gut feeling. Trabalhou por vinte anos na empresa, conhece todo mundo e o modelo de negócio como o verso de sua mão. E conhece mesmo. Mas está entrando numa seara onde investirá mais de 100 milhões de reais por ano nos primeiros três anos e convence o presidente da empresa com o seu carisma. É o herói que irá salvar o negócio de todas as pessoas com o seu bold movement.
Fato, ele até pode chegar nos resultados apostados, mas a sorte e a capacidade de trazer para perto de si quem tem a inteligência corporativa tem mais a ver que o ato. As habilidades que ele desenvolveu foram de amealhamento de recursos — inclusive os 100 milhões por ano — e tem pouco a ver com adaptabilidade ou flexibilidade. O app, dois anos depois, é reativo: está sempre dois passos atrás da concorrência. Ele não aceita os números que o time levanta, retruca os argumentos com seu personalismo e no fim do segundo ano perde o cargo. Há a troca regular de executivos e seu capital político se esvai. Perguntam dos 5w2h do projeto (What, Why, Where, When, Who, How, How much) e dos OKR e dos KPI e das metas… enfim, qual a inteligência usada ali.
Capitalistas gostam de risco, mas nem toda organização tem esse espírito. Há quem tema o erro como doença, há quem ache que todo planejamento é perda de tempo. A coisa não está nem num lado, nem noutro dessa balança (como diria Aristóteles em sua Ética a Nicômano), mas no meio. Ou melhor: no que for mais adequado a seu negócio.
Mas uma coisa é certa:
Fuja de quem se autodenomina super-herói. Eles não existem.
(E nem os mitos.)
para ler e discordar (ou não)
- Antifrágil: Coisas que se Beneficiam com o Caos, de Nassim Nicholas Taleb
- Subliminar — Como o Inconsciente Influencia Nossas Vidas, de Leonard Mlodinow
- Do que é feito o pensamento, de Steven Pinker
- Ética a Nicômano , de Aristóteles