Quem quer dinheiro?

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Aqui na empresa temos uma dinâmica bem interessante. Não são muitos os times de desenvolvimento e somos poucos Product Managers e Owners. Daí dá para colocar todo mundo numa sala e discutir — sem pudores — assuntos abstratos ou cotidianos que envolvam a produtificação de nossas atividades, ou repensar os produtos dos quais cuidamos.

Na última estávamos falando sobre descoberta (ou revelação) dos produtos — os tais processos de discovery — e acabamos nos deparando em um ponto que me incomoda há tempos. E não é apenas aqui ou nas empresas que trabalhei, é uma barreira de entendimento do mundo que está entranhada nas pessoas (e glorificada) desde os anos 1980, mas tem suas raízes anteriores a essa década, obviamente.

Um dos objetivos de uma discovery é encontrar os valores de um produto ou entender o valor que uma funcionalidade tem para o cliente (que pode ser traduzida em dor ou prazer, em recompensa ou atração e por aí em diante). Não irei prometer um texto sobre isso porque há bibliografia farta e boa sobre processos antropológicos e psicológicos do consumo e uma bibliografia mais farta e ruim sobre isso em marketing e administração e também porque o processo de discovery não é o que me incomodou.

Fomos listar os valores que entendíamos dos nossos produtos e obviamente veio: rentabilidade (travestido em conversão) e mais duas outras. Claro que fiquei nos cascos. No meu livro, o lucro vem como consequência de um trabalho bem feito e bem administrado, mas, para meu espanto, o discurso da turma é que o lucro é sim um dos valores do nosso produto. Lucro não, vamos ser justos: conversão. Obviamente questionei esse posicionamento, mas a resposta foi enfática e unânime: “o objetivo de toda empresa é fazer dinheiro”.

É?

***

Aviso: tendo a voltar ao exemplo do pipoqueiro (ou do dono do carrinho de churrascos da praça da cidade pequena) para questionar o viés monetário do trabalho ou para criticar os modelos modernos de análise de negócio, ou produto, mas vou tentar fazer diferente desta vez. Vou para uma linha mais conceitual e depois retorno para verificar se a tese “o objetivo de toda empresa é fazer dinheiro” se sustenta.

(Já adianto: não se sustenta, absolutamente!)

O que é dinheiro?

Charles Wheelan, autor de Naked Money: A Revealing Look at Our Financial System (Dinheiro nu e cru: um olhar revelador sobre o nosso sistema financeiro, em tradução própria) e de outros livros lançados no Brasil (Economia: O que é, para que serve, como funciona e Estatística: O que é, para que serve, como funciona) conta o que é dinheiro, como ele foi “inventado” e qual sua função na sociedade atual, mas mais sob um aspecto financeiro, falando sobre o “movimento” do crédito nos mercados e o que é cada um dos “agentes” ou atores com os quais lidamos às vezes sem saber os nomes deles. Yuval Harari, autor de Sapiens: uma breve história da humanidade, tem um capítulo inteiro contando sobre a invenção do dinheiro, do como ele é instintivamente reconhecido por diferentes nações e povos geograficamente e temporalmente separados. Marx (esse capitalista!) disse, em Grundrisse, que o dinheiro é a primeira mercadoria: é a primeira aquisição que se faz logo após o trabalho realizado, é mercadoria de suporte de trocas. Ou, segundo Claus Germer, em Marx e a teoria do dinheiro como mercadoria: fundamentos lógicos, resume que o valor de uso do dinheiro torna-se a forma de manifestação de seu valor, ou seja: ele tem valor percebido em si, pode ser usado para medir outras coisas e a si mesmo; ele pode vir a ser produto do trabalho humano, ou seja: trabalha-se com o dinheiro para “criar” mais valor que será traduzido em dinheiro; e o trabalho privado, através do dinheiro, transforma-se em trabalho social, ou seja: através da troca proporcionada pelo dinheiro, o que se produz particularmente, afeta o coletivo.

Esse “book dropping” e esse academiquês meia-tigela não é (só) para mostrar que leio muitos livros legais e da moda ou que frequento trabalhos acadêmicos ao invés de passear na praia, mas para demonstrar duas coisas:

  1. que dinheiro é uma ficção; e
  2. que dinheiro é uma mercadoria!

Podemos dizer que os valores de um produto podem ser ficção ou abstrações. Felicidade, “viver o mundo de Marlboro”, liberdade, satisfação são construtos sociais ficcionais que são calcados em necessidades psicológicas factuais. Os próprios Direitos Humanos são uma ficção elaborada e inclui-se aí o direito à propriedade, claro. Mas vamos para um exemplo: é concreta a sensação de aprisionamento ou de privação do direito de circular num espaço. Todos os mamíferos, incluindo macacos como nós, sentem desconforto quando são amarrados, enjaulados ou encurralados. Mas a ideia que temos de liberdade não é o contrário do encarceramento. Um ser humano pode estar em estado total de privação de liberdades (sim, sempre no plural, si vous plaît) e não ter algema alguma, poder ir e vir para qualquer lugar no mundo. Sim, estou falando do grande irmão digital que a todos observa e nos computa no Big Data Divino ou de um hipotético personagem de espionagem que tem sua família sequestrada, ou ainda de alguém tão endividado a ponto de, mesmo podendo, não conseguir dar um passeio fora da quadra de casa; sequer tem dinheiro para a passagem.

Dinheiro é só mais uma abstração. E uma das mais sensacionais, por sinal. Como escrevi anteriormente (e o Yuval Harari desenvolveu infinitamente melhor que eu), é uma história que atravessa povos distantes no tempo e no espaço e está tão imiscuída na nossa visão do mundo que passamos a considerá-la um valor, ao invés de ser meio de valorar. O dinheiro nasce para balizar as trocas. Ou melhor: para possibilitar as trocas quando não se há confiança ou valor de comunidade entre as pontas do negócio. Vou fazer uma digressão rápida aqui, ok?

A história de uma tribo

Uma certa tribo era autossuficiente e viveu assim por uma boa quantidade de gerações. Plantavam raízes e alguns grãos, caçavam e pescavam, faziam suas roupas, casas e ferramentas. Viviam no entorno de um planalto onde havia outras tribos. Vira e mexe eles se encontravam e trocavam presentes, ou necessidades, ou filhos. Era um tal de alguém daqui ir casar lá, de lá vir casar aqui e tudo funcionava. Havia uma “moeda” chamada confiança que era o balizador para cada troca.

Todos se reconheciam e entendiam que não havia valor diferenciado para uma caça maior ou menor, para o peixe mais azul pro vermelho, do cesto de barro pro de vime. Aliás, ter, tinha, mas era irrelevante. O de barro servia para uma coisa; o de vime, proutra. No fim do dia, se alguém precisava de um cesto, pegava e usava. Se escangalhava o bicho, consertava.

Certo dia chegaram umas pessoas de uma tribo diferente. Usavam as peles de jeito estranho, carregavam as mercadorias com cestos feitos de pele e com alças (“Genial!” gritou um dos basket designers da tribo) e eles queriam algumas das ferramentas que os locais usavam. Em troca davam pedrinhas coloridas. Em pouco tempo as pedrinhas coloridas começaram a passar de mão em mão, de tribo em tribo e todo mundo queria a tal pedrinha que os estranhos traziam. Quando voltaram, pediram mais ferramentas em troca das pedras, mas o povo local que não tinha nada de bobo, mandou um “sem tempo, irmão! coloca mais parada aí na mesa!”. Nessa hora, os estranhos colocam um facão de aço na pilha e a troca volta a rolar.

Nesse momento hipotético e fantasioso (mas há relatos e registros de várias trocas assim aqui no Brasil e nos EUA) há o questionamento de valor. O mercador local não reconhece o esforço-trabalho do outro ao produzir pedras coloridas (bonitinhas, mas inúteis) e nem o mercador estranho reconhece o das ferramentas (que eram de obsidiana, muito procurada na terra deles para completar joias e fazer adereços mais baratos). Ambos alienam o valor-trabalho do objeto e só conseguem ver o valor-função ou valor-troca (ou valor-mercado) dos itens. Estou usando esses conceitos de forma freestyle para deixar mais clara a ideia, não os usem sem prescrição.

O dinheiro entra quando o ritmo dessas trocas começa a ficar mais complexa, mais diversa e — principalmente — mais intensas. Não se justifica a criação de uma abstração dessa natureza se o processo de troca não fosse intrínseco à natureza humana (fui audaz nessa!). Estou dizendo que o ser humano precisa fazer trocas e isto é elemento componente nosso. Não é uma fantasia, uma narrativa ou uma abstração. Somos altruístas no mercado, na troca, na produção para o alheio. E é isso que nos aproxima e aliena (mas isso sim é tema para outro texto).

O dinheiro é o suporte para a troca se realizar. É o elemento mínimo para medir o que vem e o que vai. É o quanta de trabalho que o consumidor (ou das proletariat, segundo meus colegas marxistas) precisa carregar consigo para obter aquilo que precisa para viver, se divertir, educar a si e aos seus e morrer.

Escrevi essa renca toda de texto até aqui para demonstrar que dinheiro não é valor, é ou a mercadoria que representa um valor (no caso, o trabalho-valor) para aquisição de um bem ou serviço, ou é a medição do valor-mercado de um produto (que pode ser, obviamente, um bem ou um serviço) e dizer que o objetivo-fim de um produto tem que ser a criar dinheiro é um “erro acadêmico”, até deveria ser dicionarizado.

Claro que você, meu querido leitor, pode ter uma visão diferente da coisa, pode até vir trazer seu argumento embasado em MBAs e pós de direito administrativo, mas deixo uma pergunta fundamental (e retórica, claro): quando o primeiro agricultor resolveu plantar tomates na sua pequena cidade do interior do Paraná ele olhou para a fruta (sim, é fruta!) pensando na rentabilidade dela? na sua participação no mercado de commodities? na escalabilidade de produção e penetração multi-produto em outros derivados industriais? ou apenas pensou “vou plantar tomates porque aqui tomate cresce bem”?

Os motivos pelos quais uma empresa é criada

Aí vamos voltar ao causo. A pessoa diz que uma empresa é criada para fazer dinheiro. Eu não discordo que há empresas que são feitas exclusivamente para fazer isso e que não são poucas. Normalmente a gente chama esse tipo de empresa de banco (ou escritório de investimentos, ou casa da moeda, ou cartório, qualquer um que emita um título de valor e viva desse tipo de emissão). Afora isso, as razões para que alguém — ou alguéns — criem uma empresa vão desde um “é o que sei fazer” até “deixar um legado para a humanidade”. Confesso que estudei bem pouco — leia-se: não pesquisei no SEBRAE e afins para ter os números exatos — os reais motivos que levam as pessoas a abrir um restaurante ou uma livraria, ou um café.

Numa outra empresa em que trabalhei fizemos baita duma pesquisa com nossos clientes (são basicamente micro e pequenas empresas) para desenhar as personas que eram clientes (outro processo de discovery bem legal, por sinal) e, se não me falha a memória, bem menos de 10% dos empresários declararam que criaram (ou abriram) aquela empresa para “fazer dinheiro” ou similares. Poucos fizeram um business plan, uma análise de mercado ou outra atividade lúdico-corporativa dessas para checar a viabilidade do negócio. Na verdade, a maioria ou está tocando um negócio “anterior” (já explico isso!) ou está fazendo o “negócio dos sonhos”.

O melhor exemplo que conheço de negócio anterior é a história — não sei se é apócrifa — do garçom de um boteco-restaurante em botafogo. Ele chegou do nordeste, como tantos e tantos, para trabalhar em obras, mas acabou indo trabalhar em botecos. Conseguiu emprego num bar e aprendeu o negócio inteiro; virou braço direito do dono e, em determinado momento e com detalhes obscuros, conseguiu dinheiro suficiente para comprar o negócio.

Parece que o antigo dono não estava mais a fim de tocar a lojinha (bar realmente dá uma baita dor de cabeça) e era mais em conta vender o negócio. Os herdeiros já tinham carreira própria e ia ser vendido de qualquer jeito. Por que não vender para quem já conhecia tudo?

Esse tipo de empresa é a mais comum. É quem abre uma copiadora porque já trabalhou com isso em algum lugar. É quem trabalhou numa empresa como contador e abre o seu escritório de contabilidade. É o profissional liberal que cansou de trabalhar para uma firma e abre a sua, mas continua fazendo a mesma coisa. Claro que essa pessoa quer ganhar o seu e pagar os boletos de cada dia nos dai hoje, mas o motivo de abrir a empresa vai desde “pintou a oportunidade” até “não aguento mais meu chefe” e, de novo, tem muito ou nada a ver com “fazer dinheiro” por si só. O valor, o ponto de decisão para esse empreendedor abrir um negócio é a Estabilidade (quando não é a Sobrevivência mesmo). É quem não quer mexer no que sabe fazer e está preocupado em viver o dia seguinte sem muita trepidação. Olhe para os sapateiros, os chaveiros e vendedores de balas e salgados das ruas e o encontrará ali.

O segundo caso levantado é do investidor que aplica o capital em negócios de duração periódica ou mais ou menos permanente. É um empreendedor apenas no termo mais restrito da palavra porque, de fato, está empreendendo e correndo algum risco, mas tem uma aversão ao prejuízo que se revela em longos estudos de tendência, negociação e pouca ousadia. É quem compra uma franquia de um negócio que desponta (ou que já está na curva descendente, fazer o quê…) e que extrai o máximo daquele negócio até começar a abrir bico. Daí vende, transforma e parte para outra.

Esse é o cara que pensa no capital e quer fazer ele aumentar na ponta produtiva. Mas, como disse antes, é a minoria e quase a exceção. Se por um lado é um planejador bom, por outro ele precisa de um sócio ou funcionário do ramo para poder operar o empreendimento. Vira e mexe é chamado de “sócio capitalista” por quem não conhece de negócios de uma forma geral e as pessoas pensam que ele está ali só para abrir a carteira. Tá bom…! Senta lá, Cláudia… O ponto de decisão desse investidor é rentabilidade e lucratividade do negócio ou produto e, para ele, esse é O Valor que contará.

Essa persona aparece na conversa com o colega do amigo da prima que diz que entrou num “negócio ótimo de vender paletas mexicanas em Nova Friburgo” e que irá abrir a lojinha em junho. Parece que nenhuma sorveteria tá aberta nesse período e ele vê a oportunidade aí, o tal do “Mar Azul” (sim, eu ouvi isso do colega do amigo da prima e a burrice é democrática, né?). Também aparece no lado “errado” do shark tank e em filmes de Hollywood.

Piadinhas à parte, no mercado brasileiro o que mais se vê nesta categoria são profissionais que foram de empresas médias-grandes, conseguiram alguma reserva de capital (às vezes são as próprias reservas de FGTS ou de previdência que tinham) e estão dispostos a fazer algo mais lucrativo que deixar num banco. Normalmente não têm noção do risco, mas têm a postura de pesquisa e análise corretas para começar um negócio.

O terceiro caso levantado (e não é o último existente, estamos longe disso) era da pessoa que queria viver o “negócio dos sonhos”; é quem está insatisfeito com a carreira de modo geral e quer se reinventar ou quem é apaixonado por um tema, produto ou assunto e irá fazer esse movimento em algum momento. Algumas dessas pessoas têm o comportamento — em termos de planejamento e execução — parecido com o “capitalista” do segundo perfil, mas o ponto de decisão tem outro viés. O perfil delas é mais ligado ao negócio que o capitalista. Dificilmente essas pessoas abririam uma franquia ou se distanciariam sua imagem da do negócio. Os restaurantes “de chefs” e os bares da moda caem nessa seara. As cervejarias artesanais, os estúdios de jogos (tanto digitais quanto analógicos), barbearias premium e food trucks são outros subgrupos. São todos negócios que existem já há tempos com outras caras e formatações, mas ressuscitam como moda ou como válvula de descompressão de um modelo esgotado para algumas pessoas que não aguentam mais a vida corporativa. E quem sou eu para discordar delas.

Neste caso, o valor que elas procuram é o do Sonho. Não preciso dizer que este caso dificilmente emplaca, né?

Mas se o que motiva uma pessoa a abrir uma empresa ou negócio é um Sonho, Estabilidade, Sobrevivência e — no fim da escada de valores — Rentabilidade, como medir se um produto ou negócio está indo bem? Será que ele está entregando uma boa quantidade de Sonho? de Sobrevivência? de Estabilidade? O valor mais fácil — e preguiçoso — de medir é a Rentabilidade mesmo. Mas será que por ser o mais fácil, mais comum e mais preciso para ser medido, ele deveria ser o principal valor de um negócio?

A função de uma empresa na sociedade (e o retorno dela para os sócios)

Uma empresa é um organismo complexo dentro de outro mais complexo ainda, chamado sociedade. E quando falo de complexo, falo de sistemas onde, dada a função A, ela afeta Aa outras funções dentro e fora desse mesmo sistema.

A gente tende a imaginar nossas ações como comboios de trem ou sequência de dominós. Os americanos adoram contar o caso do cravo de ferradura que fez um reino cair, como se as consequências complexas fossem lineares, como se entendendo todos os fatores numa cadeia, conseguimos prever ou “colocar no trilho” os efeitos que desejamos. Outra falácia dessa natureza é o modelo da “evolução em linha”, tipo a da imagem que usamos para representar a evolução da nossa espécie. Nada mais longe da realidade.

As decisões estratégicas, os processos evolutivos, as análises de negócios e até mesmo a predição de movimentos futuros (seja em jogos, na caça ou no flerte esportivo) passam por sistemas heurísticos e bayesianos de análise e reação ou de impacto e reação (no caso dos processos não-cognoscíveis, como doenças, acidentes e catástrofes) e, principalmente, de readequação do curso de ação. Quando uma nova variável se apresenta, um novo predador sai da moita ou a pessoa não demonstra interesse, imediatamente mudamos a estratégia (ou tática) e nos adaptamos. O stick to the plan funciona para diversas coisas, menos para a vida.

Em outras palavras: a coisa toda é caótica e reagimos ao caos com o instinto (treinado ou inato), sorte e oportunidade.

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Uma ação mal investida aqui pode vir a derrubar os mercados na Ásia e dobrar o valor do Dólar em relação ao Real, por exemplo. Um aumento de CO₂ na atmosfera ou o aumento de um certo pesticida pode erradicar um tipo de sapo, ou de inseto polinizador que poderão causar um aumento de incidência de um certo mosquito, ou a quebra de safra de um certo fruto, ambos na Califórnia e puxar o preço de antibióticos e desse fruto para cima, levando a falência uma série de fazendeiros cujos filhos, doentes, sobrecarregam o sistema de saúde dos EUA aumentando seu endividamento e quebrando uma série de bancos, quando não conseguem vender as fazendas — agora improdutivas — que foram tomadas para saldar as dívidas.

Estas são situações hipotéticas de caos econômico e social causados por dois eventos reais, cujos efeitos se sentem hoje. E são facilmente conectáveis porque são sistemas altamente complexos com elementos componentes simples, por incrível que pareça. Apontar que há mudança climática dada a injeção anual de bilhões de toneladas de um gás (ou gases) que não existiam antes é uma relação de causa-e-efeito banal. Os desdobramentos daí para a frente são igualmente ligáveis. O problema é a previsão (ou análise) de sistemas ainda mais complicados, com elementos componentes complexos. ou seja: quando envolve gente e suas relações.

Aqui apresento outro cenário rocambolesco, mas possível. É o exemplo de negócio real que acompanhei quando era analista de produtos digitais em operadoras e portais de conteúdo.

Quando apareceram o PornTube, RedTube e X-Videos, o mercado de conteúdo adulto no Brasil — que já não ia bem das pernas, com a paulatina extinção do mercado de revistas (o que merece um estudo de doutorado de marketing, fica a dica!) sofreu o golpe fatal. Logo depois ele teria que se reinventar, mas uma indústria inteira desceu pelo ralo. Apesar de hoje questionar a moralidade da coisa inteira (não pelo sexo em si, mas pelos tipos de relação de trabalho que lá eram construídas) e não ter tanta empatia pelos donos das empresas, o dano que causou nos elos mais fracos da cadeia — profissionais do sexo, da pós-produção de vídeos, de arte para DVDs e revistas — foi irreparável. Casamentos não se mantiveram, crianças deixaram de ser alimentadas, pequenas tragédias cotidianas aconteciam e acontecem invisíveis para nós. Acompanhei algumas, poucas, de pessoas que dez anos depois não conseguiram se recolocar — ou gerar renda — a contento, no mesmo nível de antes. Houve uma destruição de valor em cadeia que arrebatou tudo no caminho, das empresas às relações pessoais.

Enquanto isso, esses sites de pornografia não emplacavam, demoraram para se monetizar e apenas dez anos depois, absorvendo parte do conceito de paywall e com parceria forte com os produtores de conteúdo é que começam a dar um sinal de virada, enquanto negócio. Matou-se um ecossistema econômico inteiro em prol de uma inovação que só foi aproveitada na geração seguinte de produtores de conteúdo.

Esses novos produtores surgiram criando sites que tocados pelos próprios atores, atrizes e produtores, num esquema mais horizontal (sem piadas!) de distribuição de receita e maior transparência (eu disse sem piadas!) do próprio negócio. Não tem ninguém ficando milionário nessa nova onda, mas o que observo — mas me falta, confesso, mais números — é uma diminuição do tamanho da cadeia produtiva mas não do volume de negócios. Não há mais a necessidade do industrial que tem a ilha de edição ou o canal de vendas, ou a pós produção em escala. Também, sem a necessidade de uma empresa de editoria ou editoração para distribuição e escoação da produção de vídeos adultos, redações foram fechadas. Uma empresa em especial, a editora SexSites, tinha debaixo de seu guarda-chuvas mais de vinte publicações, principalmente de tecnologia e de ensino/treinamento profissional. Em menos de dois anos, com a virada do mercado, essas redações foram desmontadas, diversas pessoas foram para “o mercado” e seu conteúdo desapareceu.

Não estou querendo dizer que precisamos defender as empresas monolíticas e paquidérmicas ou que inovações *realmente* disruptivas devem ser evitadas. Não digo porque é inútil. Empresas irão fechar, setores irão deixar de existir e disrupção verdadeira cria caos e destruição de valor no seu primeiro momento (e se alguém vier te vender a ideia contrária disso, fuja! essa pessoa só está querendo o seu dinheiro!). O meu ponto é outro (e sei que me tardo nele).

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Quando essas empresas realmente disruptivas foram criadas, nenhum dos seus administradores, investidores, CEO ou qualquer coisa semelhante pensou nos impactos reais dos seus negócios. E, na real, não dá para pensar mesmo. São muitas as variáveis. Mas um alvo em toda e qualquer empresa é constante: as pessoas. Toda mudança de paradigma altera a vida das pessoas em diversos níveis. Toda mudança no cotidiano afeta as vidas das pessoas. Toda pessoa afeta a vida das outras pessoas. A economia e os negócios existem porque pessoas afetam pessoas o tempo todo em tudo. Mesmo mudanças que apontam para um “lado errado” ou “missing the point” sem serem “erros” podem causar mudanças acachapantes.

Li, certa vez, que quando finalmente construíram um aparato para trazer para o mundo “real” uma hipótese física, o chefe da equipe disse que com a invenção iriam modificar toda a indústria de construção civil do mundo. O invento? o raio laser. A gente, hoje, usa o laser para quase tudo na vida (de transmissão de informação à depilação profunda e quase matou a fabricação de vinis, que foi salvo pelo mp3 e pelo streaming e isso é outra história), mas quase não se usa na construção civil, proporcionalmente falando. A nossa cegueira ao impacto das nossas ações é boçal. Somos realmente ruins em analisar impactos complexos. E é exatamente por isso que temos de ficar atentos. Uma forma de atenção é deixar claro, desde o primeiro momento, os valores que pretendemos atribuir a um produto, projeto ou negócio (PPN), mas nem isso fazemos direito.

Dinheiro como redutor dos valores (ou: cuidado para não virar moeda)

Comecei o texto falando do coleguinha que dizia: “lucro/receita/rentabilidade (=dinheiro) é valor de produto sim!”, passei pela definição de dinheiro, sobre o que motiva uma pessoa a abrir uma empresa ou começar um negócio (são coisas diferentes, mas a pessoa leitora sabe bem disso!) e cheguei no ponto em que afirmo que o impacto de uma empresa é maior que que sua atuação, daí a função dela em sistemas altamente complexos é igualmente complexa.

Há uma corrente filosófica, a Fenomenologia de Husserl, que trata das reduções das “coisas” em experiências, essências, verdades e impressões. Estou super-simplificando (até porque nada em Husserl é simples!) mas o conceito é bem direto: tudo que se fala sobre algo, não é o algo; tudo que usamos para medir esse algo, não é o algo. É mais ou menos a pintura do Magritte que diz que não é o cachimbo a imagem do cachimbo (e a imagem do cachimbo sequer é uma imagem de um cachimbo, mas isso é outra discussão).

O processo de redução das coisas (a epoché, se entendi direito o conceito) é prático e tem uma função óbvia. Não se pode resumir o Sol num desenho ou numa palavra, mas não se consegue trazer o sol para se falar dele. Precisamos de um simulacro ou de um índice para que se possa falar desse algo. Esse índice pode ser a língua (em última análise, sempre é), pode ser um KPI, um valor, um número. O problema é quando se usa o índice errado, um em que os valores não sejam representativos da coisa que se fala.

Quando reduzimos tudo a dinheiro, perdemos a pluralidade das coisas, dos negócios. Este discurso é filho de uma necessidade de medição absoluto. É da mesma parideira donde saiu “tempo é dinheiro”, “não temos tempo a perder”, “quero investir nesse relacionamento”, etcetera. Este pensamento monetizador ad extremis pasteuriza os negócios, os produtos e os projetos a um “ca-chim!”.

Dou exemplos! Trabalhei certa vez com um CTO que se “orgulhava” de ter recusado o projeto de três moleques. Eles apresentaram um negócio cuja solução tecnológica envolvia construir um tipo de computador dedicado para uma determinada missão. A missão? Mapear todo o conhecimento do mundo. A empresa? Google. A lógica para a recusa era bem simples: o PNL de três anos não fechava (se não me engano, ele só chegou no break even quase dez anos depois de criado) e o mercado de buscadores já estava lotado (AltaVista, Yahoo! e AskMe eram os líderes). Uma redução de uma missão (megalomaníaca, é claro!) para indicadores pedestres, tacanhos até.

Para dizer que não fiz o mesmo, quando trabalhei para uma empresa de telecomunicações, em 2005, recebi o representante de uma empresa que estava criando um projeto do qual não poderia falar muito. O conceito era mudar a forma na qual as pessoas blogavam, migrando para textos curtos, gerados via SMS. Meu argumento foi que “quem bloga gosta de escrever muito, não se contenta com 140 caracteres” e tinha os custos, os retornos, as margens, etc. A empresa? Twitter. Pois é…

Note que não estou fazendo uma defesa do fim do dinheiro. Ele é fundamental como denominador mínimo das trocas mas não é a totalidade dessas trocas. No momento que alguém diz: “a função de toda empresa é fazer dinheiro”, reduz toda riqueza e toda pluralidade a um número de significação limitadíssima. A minha defesa é do entendimento dos valores que um produto, projeto ou negócio apresentam para além do dinheiro. Ou melhor, o que ele apresenta como alicerce para gerar lucro no fim do processo sem ser uma máquina de imprimir papel.

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Uma outra forma de olhar para esta questão é pensar no que significa riqueza.

Dizemos que o Brasil é um país muito rico porque tem recursos e cultura e pessoas e oportunidades. Mas, por uma incapacidade de gestão e governança (públicas e privadas) não conseguimos o desenvolvimento dessa riqueza. Esse conceito é certeiro. O produto-Brasil tem valores diversos (alguns óbvios) mas não tem “dinheiro”; ou melhor: sempre ouvimos falar que não há dinheiro, recurso, cultura, pessoas (profissionais) ou oportunidades. Boa parte desta desconexão entre o Brasil-potencial (ideal) e o Brasil-diuturno (concreto) vem das reduções que se faz. Vem por analisarmos e medirmos as nações por réguas que não são muito precisas ou eficazes.

A questão é que podemos pegar duas nações diferentes e colocar na mesma balança (PIB, IDH, Alfabetização) e não conseguiremos medir os valores delas. Coloquemos rapidamente a Suíça e a Índia em comparação.

O potencial produtivo da Índia é absurdamente maior que a da Suíça. É uma população 100 vezes maior que a da confederação helvética (com 500 milhões de trabalhadores versus 5 milhões), uma história de mais de 3000 anos, uma produção cultural de impacto em bilhões de seres humanos e uma área 75 vezes maior. Apesar da renda per capta ser 1/42 da Suíça, seu PIB é 18 vezes maior, tem mais professores que a população inteira dos helvéticos (9 milhões de habitantes), a metade do desemprego desta e cria três vezes e meia mais empresas por ano (25k versus 94k) (todos esses números podem ser checados na internet, na Wikipédia, ou aqui). Tudo indica que a Índia é um país mais rico (porém com menor distribuição de renda) e mais “poderoso” em todas as áreas, certo? Então porque as pessoas, quando pensam em emigrar, dentre todos os lugares do mundo pensam antes na Suíça que na Índia?

A resposta é que a riqueza não é facilmente mensurável, mas perceptível, subjetiva. Talvez a falta de higiene ou a incidência de doenças tropicais na Índia dê a percepção de falta de riqueza, ou o histórico miserável da região (os limites mais baixos de renda são mais graves na Índia que na Suíça), com fome endêmica em Bangladesh (que não é Índia, mas tá ali do lado), ou ainda o passado colonial que contrastou a cultura europeia com a indiana, subjugando a última tenha criado essa narrativa de pobreza extrema do país.

Atenção! Nunca estive na Índia e nem sou um estudioso dela para afirmar que ela é rica ou pobre, poderosa ou submissa. Longe de mim querer fazer tal juízo daqui da minha mesa no Rio de Janeiro, mas posso falar com tranquilidade que um país com um bilhão de pessoas não é simples de ser entendido, muito menos de ser reduzido a quaisquer índices que queiramos. Da mesma forma não podemos reduzir a Suíça a seus números absolutos sem pensar no papel histórico da Aliança Helvética, da sua experiência democrática, do seu papel nas guerras de formação dos estados europeus, no sistema bancário que suportou — pra bem ou mal — boa parte dos movimentos de atrito nacionais no século XX. Conheço pouco da sociedade suíça, talvez menos que a indiana, para estabelecer juízo, mas sei que uma nação que não está nem nas vinte mais “ricas”, consegue ter mais influência que o Brasil na ONU e em outros fóruns internacionais.

Volto ao ponto: cada vez que reduzimos uma nação a um índice, a reduzimos a ponto de descaracterizá-las.

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A última redução possível é a de pessoas. Fazemos isso diariamente. Chamamos a turma de tecnologia de “os devs”, o pessoal de interfaces e usabilidade de “os designers”, o time de produto de “produteiros” e os executivos de “idiotaschefes”. Normalmente essas reduções têm função prática para comunicar com eficácia e economizar energia. É melhor dizer numa reunião que o UXer irá desenhar os fluxos de interação que Fulano de Tal Beltrano, formado na UFXPT com pós em usabilidade e mestrado em Bullshit irá fazer os riscos marotos. O problema é quando a redução é pejorativa ou é para “medir” o outro.

Em futebol é comum contar quantos gols um jogador fez (ou agarrou), quantos passes e finalizações. Há jogos de fantasy football que coletam essas estatísticas e usuários montam seus times dos sonhos, comparando resultados da semana anterior. O mesmo se dá para diversos outros esportes, principalmente o baseball no EUA. Mas o esporte profissional é uma área de alta performance. Ou seja, os indicadores podem ser o diferencial de vitória ou derrota e milhões de dinheiros envolvidos dependem desse controle, desse acompanhamento de métricas. Mas o que funciona para um tipo de situação, é inviável noutra.

Um profissional pode ser medido por horas de trabalho, linhas de código, metros de tecido bordado, lâmpadas trocadas ou bilhões investidos. Parte dessas métricas são índices relativos à qualidade de seu trabalho (ou sua produtividade), mas mais difícil é medir o valor real que ele entrega no dia-a-dia, no microcosmos do seu trabalho. Muitas vezes o funcionário mais “eficaz” não é quem melhora a moral do time, faz as perguntas corretas ou é bom no trabalho cooperativo.

Novamente, tenho casos. Coordenei um time de “operadores de sistema” numa gráfica rápida. Um dos funcionários mais “produtivos” era o mais intratável e chato para executar tarefas. Tinha a vantagem de saber escolher que cliente iria atender e extrair mais dinheiro por tarefa, mas literalmente destruía o ambiente. Dois anos depois que troquei de filial — fui gerenciar outra loja — houve um “motim” na equipe e todos foram demitidos. Claro que boa parte da responsabilidade do ocorrido fora da própria empresa que não estava preocupada na formação de profissionais ou na gestão de pessoas, mas o clima de “cada um por si” promovido por essa pessoa foi um fator importante. Mais um ano se passou e quase todos aqueles profissionais ou estavam fazendo bico, ou subempregados no mesmo setor enquanto essa pessoa estava numa agência de publicidade ganhando mais que todos eles juntos.

Cito este caso destrutivo porque o oposto tem sido a norma na minha carreira profissional e esse valor, o de agregar e jogar em time, dificilmente é considerado em avaliações (na verdade, citam mas apenas pro forma), indo na direção contrária dos discursos de avaliação e seleção. No fim do dia, principalmente em empresas com milhares de funcionários, a pessoa é substituída pelo índice, por aquilo que se mede.

Mais um aviso: não estou dizendo que essas medições de desempenho estão sempre erradas ou imprecisas — não tenho gabarito para tal —, mas que elas normalmente não conseguem colocar no compasso o impacto real de um profissional dentro de um time ou setor (para bem ou mal) justamente porque são reduções e este é o tema do textão.

Concluindo (ufa!)

Tudo pode ser reduzido a um ícone, a um gráfico ou uma tabela de desempenho. E estas reduções têm sua função e utilidade. Sem elas, não se consegue inferir um padrão, criar um método ou fazer ciência (sim, a ciência precisa ser redutora, mas isso é outro assunto). O problema é quando essas reduções passam a ser confundidas com o próprio objeto. Quando um produto é reduzido a seu resultado financeiro — e apenas a isso — perde-se tudo o que o define como produto; quando um funcionário é reduzido a um índice de resultados, idem.

Medir é importantíssimo, acompanhar índices também é, mas o fundamental é saber que valores carregam cada pessoa, cada empresa, cada produto. É só aí que se pode construir um PPN de resultados reais e perenes.

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