Heróis e vilões e gente normal
Santo Isidoro, padroeiro da internete, a rede mundial dos computadores.

Heróis e vilões e gente normal

Heróis e vilões e gente normal

Adoro e tenho adorado escrever textos mais “corporativos”. Antes, fazia-o como piada, como pano de fundo para personagens ruins com quem convivi no passado. Hoje vejo que a minha bagagem é o item com maior valor nas entrevistas de emprego e para a minha própria empregabilidade. Mas isto não tem nada a ver com o que quero escrever hoje. Ou melhor: tem sim, mas bem pela tangente.

O querido e amantíssimo Cris Dias mandou ver, na edição de primeiro de setembro do seu podcast “Boa Noite Internet” <https://spoti.fi/2lUH7Du>, digressões sobre o monomito do Joseph Campbell. Já dando o spoiler do episódio, ele sai do conceito da Jornada do Herói — que já foi travestida em n outras coisas, como Jornada do Cliente, modelo de roteiro em três atos e curso de motivação profissional baseada na história de jogadores de futebol — e introjeta esse mesmo conceito para nossas vidas pessoais. Somos todos os heróis de nossas próprias aventuras e nossa vida é um filme com três atos e final feliz.

Só que não.

Essa percepção, Cris Dias também sublinha, é bem enganosa porque nossa vida não é uma série (nem novela) de televisão, filme ou romance literário. A vida é o que é e a gente dá significados a ela mais por uma questão de hipertrofia de algumas funções cognitivas que querem pôr significado em tudo mesmo.

Em episódio não relacionado com a vida corporativa, descobri que uma amiga querida me bloqueou nas redes sociais. Tudo bem, às vezes sou intenso demais nos meus compartilhamentos e acho válido diminuir as fontes de ruído para focarmos naquilo que nos interessa. Mas essa amiga querida é (era?) uma amiga “especial”. Talvez a nossa história não fosse à frente — pelo visto, não iria de qualquer maneira — talvez casaríamos e teríamos filhos e animais e uma casa com varanda e uma cadeira de balanço à porta. O fato é que, por motivo que ainda desconheço, virei o vilão de uma história muda e isso me desequilibrou.

Me chateio em horas assim, claro. Não foi a primeira vez em que pessoas com as quais dividi minha intimidade cortaram relações em definitivo. Mas isso acontecia, normalmente, depois de uma discussão, um término mais sofrido ou incompatibilidade de desejos mesmo. Em todas as vezes, fico chateado, mas entendo. A história tinha um motivo e eu ali era o vilão. E, como vilão, tinha feito uma vilania, uma biltrice, uma canalhice, uma infâmia. Ao menos aos olhos do outro. Na minha narrativa, sou sempre o herói, o inocente e incompreendido ante a sociedade que não aceita uma pessoa sincera e honesta e pura.

Aham. Senta lá, Cláudia.

Todo mundo é herói da sua história. Todo mundo puxa a narrativa para si, independente da faca pingando sangue nas mãos e o corpo assassinado aos pés. “Todo mundo aqui é inocente”, já se diz nas cadeias das fitas de cinema.

Faço a virada para a vida corporativa. Fiz umas dezenas de entrevistas no hiato entre esses meus dois últimos empregos. Nunca dourei a pílula quando me perguntaram da experiência na empresa L (“o pior lugar possível para se trabalhar; combina todos os defeitos do e-commerce com os de publicidade”) ou da empresa B (“CEO egoico e que atrapalhava o andamento dos projetos com detalhes irrelevantes; teimava em desqualificar o trabalho do outro o tempo todo”) ou da minha performance na empresa S (“eu era a pessoa errada no lugar errado; minha curva de aprendizado era mais lenta do que eles precisavam; não fazia sentido estar ali”). Faço esse sincericídio porque, apesar dos boletos que não cessam, não tenho muito mais tempo de vida produtiva à frente. No ramo em que atuo (MKT+TI) a média da idade dos funcionários de nível intermediário de gestão é quase a metade da minha. Não tenho ilusões quanto a isso.

Isto não quer dizer que eu seja heroico ou bravo, ou hipercompetente. Sou apenas o que sou, do jeito que me tornei. Falo para evitar ilusões ou expectativas muito altas. Não somos super-pessoas. Mas pouca gente se apercebe disso.

Agora seguem-se os causos.

Tive uma chefe que adorava falar da vida alheia. Vida alheia dentro do entorno da empresa, claro. Nunca vi falando do amigo do namorado (cujo nome nunca soube, apesar do personagem aparecer regularmente nos assuntos que ela puxava) ou do primo do irmão. Mas sempre comentava que o menino do time A estava saindo com a menina do time B ou que o squad C tava marcando um chope e destilava as fofocas.

Tudo bem. Isso aconteceu em toda empresa que trabalhei e, depois de um evento, sempre tem uma história picante ou engraçada a ser contada. O problema é quando a história é sempre com o outro. Sempre o outro é o personagem da palhaçada, da picardia, da pataquada.

Quando falava de si, eram os projetos que entregara, a formação primorosa, as vitórias incessantes e a qualidade e o nível dos projetos que almejava para tudo. Nunca vi um mea culpa, um “foi mal” ou um “cola junto aqui”. Essa pessoa era a heroína infalível de sua narrativa. As dificuldades eram os percalços que os outros colocavam na sua vida e não eram “culpa” dela.

Acontece.

No entorno, todos detestavam trabalhar com ela. Sua equipe foi se desmontando a olhos vistos e nunca se conseguiu implementar um projeto mais sólido, com entregas mais relevantes. Muito vapor, pouco movimento.

E não era por falta de profissionalismo ou de capacitação. Muito pelo contrário, disse aí acima que ela gostava de se gabar da formação e dos projetos anteriores. Fato: ela tinha uma baita de uma formação profissional e uma capacidade de fazer acontecer — por si só — absurdamente grande. Só que estava tão imersa na narrativa de heroína que se esqueceu que um tabuleiro de xadrez tem sempre o outro lado. Ou, me aproveitando do Garrincha, há o ponto de vista dos russos.

Para os outros setores da empresa, ela era uma chata. Um trator, amiga, competente, mas irritante. Para seus pares, incapaz de ceder ou de negociar pontos de vista divergentes. Para os comandados, alguém que se precisa estar no nível da afetividade e não da racionalidade. Para muitos, uma pessoa difícil, complexa, uma vilã.

Apesar de termos tido atritos — e, em última instância, ter sido essa dissonância a razão de ter continuado na empresa — nunca achei que ela fosse um agente do mal. Na verdade, havia gente “do meu lado” que tinha caráter bem pior que o dela. Ainda assim, reduzia-se a pessoa a um dos lados da trincheira corporativa.

***

Somos maniqueístas.

Um texto que li rapidamente anos atrás — e cuja referência já perdi — falava que o modelo chinês de competição empresarial enlouquecia o capitalista ocidental. Eles não elegiam um inimigo da mesma área de atuação e trabalhavam para tomar seu posto. Eles se viam como competidores, como cooperadores e até mesmo como fornecedores, dependendo da situação.

É mais ou menos o que acontece com a Samsung e Apple. Ambas brigam, se processam, disputam mentes e almas (e dinheiro) de seus clientes mas uma fornece telas para a outra. Não há trincheiras no mundo dos negócios, apenas oportunidades.

Isto me lembra um outro caso. Quando trabalhei num portal de internet (por que isso existiu, meu Santo Isidoro?) o CEO chamou toda a empresa para um auditório e apresentou o plano estratégico para o ano seguinte. A meta? Passar o número um do mercado. Fim. Sim, só isso.

Obviamente havia um rol de ações e estratégias e tal e tal, mas nada disfarçava o ranço que era ter alguém acima de você (em uma métrica ou outra) e você ser o segundo (ou o terceiro, ou o quarto) e era isso que motivava a ação (ao invés de ser consequência de) e era impensável aproveitar o momentum de algo gerado pela concorrência, em colaboração ou em aproveitamento de vácuo midiático. Ou era algo que deveríamos comprar e ter como “nosso” ou não prestava. O outro era o nosso inimigo e nossa batalha era subir os índices ponto a ponto até ultrapassá-lo.

Pra quê? Por quê? Qual história estava sendo contada aí? O “inimigo” se reinventou e continua aí. O antigo portal quebrou as pernas e não tem um décimo da relevância que tinha antes.

Concluindo (ufa!).

Somos maniqueístas. Se não está conosco, está contra nós; se pensa diferente, é ruim, é o vilão. Se tem orientação sexual diferente da tradicional, é doente, é promíscuo, precisa ser curado. Se não gosta de A, odeia B. E esse maniqueísmo se manifesta muito na forma em que argumentamos, no que falamos sobre o outro e, principalmente, no que falamos sobre nós mesmos.

A ex-chefe não via defeitos — daqueles importantes, estruturais — em si; era plena e apta à empresa, a qualquer empresa. O ex-CEO não via caminhos além da derrota do inimigo, toda e qualquer estratégia valia a pena dado o que importava era tomada do poder… digo, da liderança nos rankings do IBOPE.

O comentador de posts traz sempre o último governo ou o ex-presidente preso para desmerecer qualquer crítica a qualquer notícia, independente da esfera de poder. O analista de BI sempre reclama da má implementação do tagueamento nos aplicativos, sempre é trabalho malfeito. Os defensores de governos incapazes colocam a culpa nos italianos, nos alemães, nos japoneses (recomendo ler cartas de jornais da década de 1930–40, uma delícia!) ou no imigrante da moda. Alguém precisa ser sempre vilanizado.

E não quer dizer que não haja gente ruim por aí. As pessoas fazem muita merda mesmo. As pessoas são más e cruéis umas com as outras naturalmente. Mas é para diminuir a maldade, a crueldade e aumentar a eficiência entre as trocas é que temos leis, regras de conduta empresarial; os vergalhões que sustentam o cimento social.

O movimento contrário também vale. Temos uma necessidade imbecil de heróis, de salvadores da pátria e das empresas e dos negócios que imbeciliza e idiotiza o mercado. Steve Jobs não se fez sozinho. Era brilhante, mas estava em ombros de gigantes (e apareceu no momento correto, no início da onda da microcomputação). Bill Gates tinha uma equipe enorme desenvolvendo seus produtos de qualidade duvidosa e um outro time vendendo-os agressivamente. Bezos contou com uma linha de receita quase infinita enquanto operava no “prejuízo” por anos a fio.

***

Resumo da ópera: não há herói, não há vilão. Não os de gibi, dos contos ou do monomito. Há gente normal que comete pequenas e grandes vilanias dia a dia e comete pequenos e grandes atos de heroísmo mês a mês (o bem é sempre mais raro, segundo Maquiavel).

***

E peço desculpas a quem ofendi sem intenção. Venham falar comigo e me digam onde e quando os magoei. Tento muito observar meus atos e palavras mas nem sempre eles me obedecem. Não tenho pudores em pedir perdão.

***

Já aos que tive intenção, que se danem mesmo!

Aline T.

Profissional em Inglês Nível C2 com mais de 25 anos de Experiência

5 a

Você sempre sensacional, Zander!!

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