Emprego dos sonhos!

Emprego dos sonhos!

Quero começar logo com uma notícia bombástica: encontrei o emprego dos sonhos!

Tudo aconteceu de um jeito estranho. Andava meio desligado, meio procrastinando, e fui parar no LinkedIn quase inconscientemente para evitar o trabalho que de fato tinha de fazer. Nisso vi uma nova mensagem à minha espera.

Uma moça se dizia RH de uma empresa chamada iDream, que estava precisando de um redator. Quimera, o nome da moça, achou meu perfil compatível e perguntou se eu estava interessado em conversar sobre a oportunidade. Aceitei, mas não tanto por interesse e mais por farra.

Na entrevista on-line eu ainda pouco sabia da empresa e a moça repetia aquela velha ladainha: Qual sua experiência? Como você pode contribuir conosco? Qual seu maior defeito?

Nessa última pergunta perdi a paciência e resolvi ser sincero. A falta de pretensão permite que sejamos nós mesmos até a medula. Então soltei o verbo:

— Meu maior defeito é que vivo sonhando. Não de um jeito poético, não de um jeito saudável. Sonho a ponto de não me conformar com a realidade e prefiro passar meu tempo no terreno da ilusão. Não sinto graça em nada mais. Esse é meu defeito.

A moça, Quimera, foi ouvindo e anotando, ouvindo e anotando. Pensei que o negócio havia acabado por ali, depois de um tiro no pé como esse. Mas no fim ela só disse:

— Você é perfeito para esse trabalho. Está contratado.

Foto de um homem assinando um contrato.

Adicional noturno

Fui contratado sem saber exatamente qual seria minha função. Somente tinha ideia de que era no período noturno, no endereço *** e que pagava razoavelmente bem para uma vaga PJ.

Quando cheguei lá no primeiro dia, isto é, na primeira noite, enfim descobri o que a iDream faz. O negócio dela é sonhos, não no sentido de que toda startup vende “um mundo melhor”, e sim literalmente os sonhos que as pessoas têm quando dormem. Como redator, meu trabalho é escrever as histórias que passam pelo seu inconsciente.

Ninguém ali pôde me dizer como isso funciona ou por que as pessoas precisam sonhar à noite. Nesse sentido, a iDream é parecida com qualquer outra empresa: pouca informação, muita correria e todo mundo fazendo as coisas como sempre foram feitas, sem questionar.

No começo, achei que teria mais tempo para elaborar umas fantasias caprichadas, quem sabe fazer umas referências a Kurosawa, mas a equipe de redação está visivelmente desfalcada. Outro ponto em comum com tantos lugares onde já trabalhei.

Um bom sonho, como qualquer outra narrativa, precisa de tempo para ser desenvolvido. Tenho de pesquisar as memórias da pessoa, construir um enredo, uma atmosfera… Agora imagine fazer isso com milhões de brasileiros dormindo ao mesmo tempo, já que meu setor cuida de todos os sonhos em português do Brasil. Impossível!

De segunda a quinta são as piores noites, porque a maior parte do pessoal vai dormir cedo. Nesses momentos, a produção de sonhos tem clima de pastelaria e recorro aos atalhos do serviço: procuro nas suas memórias uma das últimas coisas que tenha pensado e escrevo algo caricato a respeito.

É por isso que você vai sonhar com o filme que acabou de ver, com o livro que está lendo ou com aquela tarefa que passou o dia fazendo (ou evitando fazer). E é por isso que você vai transar com aquela pessoa aleatória do trabalho, da universidade ou da internet; foi o primeiro rosto que encontrei abrindo as pastas do seu acervo inconsciente e, convenhamos, sex sells.

Em outras ocasiões escrevo o que está no inconsciente coletivo. Por exemplo, num sonho, você está na banheira do Gugu e de repente se vê no meio de uma prova do SuperMarket em que tem de encontrar uma cenoura mais barata, mas não consegue porque fica escorregando com seus pés ensaboados e nessa hora aparece o Paulo Guedes para zombar da sua cara.

No final de semana o expediente é mais tranquilo — são noites de festa, afinal — e o problema dos sonhos fica para o turno da manhã. Nessa calma então posso me dedicar melhor ao trabalho.

Mr. Christian, bring me a dream

Entre os sonhos que mais gosto de escrever estão os de viagens por terras que nunca serão vistas à luz do dia. Destinos esses que são uma amálgama de muitos lugares que vi e que só o orçamento da iDream pode bancar o trajeto, mas, para quem embarca nessa jornada, a viagem é de graça. 

O que poderia ser melhor que isso? O único problema é acordar com aquele aperto wanderlust no peito, aquela saudade de lugares que nunca existiram. Aí eu lhe digo o que Peninha já dizia: “ter saudade até que é bom, é melhor que caminhar vazio”.

Outros sonhos escrevo segundo o que chamo de Pedagogia da Vergonha. Os sonhos, como o torpor do álcool, livram-nos por um momento do terrível medo de sermos humanos. A vergonha é didática, nesse caso. Devemos aceitá-la como parte de nossa matéria física e aprender a ir além dela, pois negá-la é negar a natureza humana.

Então, vou escrever cenas em que você cantará e dançará comicamente em praça pública, ou estará sem roupas no mercado, ou vai enrolar os pés nos tapetes nos tapetes das etiquetas e fará rir às criadas de hotel e onde mais passar. Espero que lhe sirvam de lição.

Mas em noites especialmente silenciosas posso escrever os sonhos que você ainda levará consigo por muito tempo. Para isso, preciso ir fundo na sua memória, estudar seu passado, ler nas entrelinhas do seu inconsciente o que pulsa mesmo na distância.

Nessas noites você sonhará com alguém que tenha perdido, seja para a morte, seja para a vida, e terá mais alguns instantes com essa pessoa. Talvez até saiba que se trata de um sonho, mas o espanto logo dará lugar a um sentimento mais quente e você aceitará a fantasia. Afinal, é tudo que lhe resta.

Ou terá a chance de declarar amores que não pode consumar e despertará com o gosto de um beijo invisível em seus lábios. Então desejará viver entre sonhos tanto quanto eu.

Contudo, se não puder lhe dar nada além do que já tenha no presente, darei a visão de futuro que tanto espera e nela você contemplará seus dias com prazer.

São poucas as vezes em que sinto valer a pena meu trabalho. No geral, sou apenas mais um redator correndo atrás dos prazos, dormindo pouco e sem direito a férias. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

***

Esse texto foi publicado originalmente na Newslenta, minha newsletter mensal e gratuita. Se gostou da leitura, inscreva-se para receber as próximas edições.

Agora me despeço com um exercício de imaginação para você: como seria seu próximo sonho, se pudesse escrevê-lo?

Aline Cardoso

Analista de Dados Pleno @ Cora

2 a

Aii, Chris! Que delícia de leitura pra começar a semana! 💕

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