Guerra dos Mundos: Conhecimento e Ignorância

Guerra dos Mundos: Conhecimento e Ignorância

Não existem mais utopias: todos os filmes e séries com temas futurísticos expõem distopias. O que nos fez perder a esperança no futuro? Creio que é a cisão entre gente que habita o mesmo país. Uma "guerra dos mundos", porque sua escala é planetária.

A guerra dos mundos que se apresenta no momento atual não é entre terráqueos e alienígenas, como a ficção científica explorava. É entre o Mundo do Conhecimento e o Mundo da Ignorância. Não se sabe ainda qual deles irá prevalecer, nem quais serão as consequências que legaremos aos nossos descendentes.

Muita gente afirma, com algum enfado, que o conhecimento sempre foi importante em toda a história da humanidade, por ser o motor do progresso. No entanto, o mesmo se dá com a ignorância: sempre esteve presente entre nós, e sempre com consequências nefastas.

A novidade é que tanto um como o outro mundo cresceram a ponto de ultrapassar os limites de uma mera cisão para se transformar em uma verdadeira guerra. Suja, como todas as guerras.

Mundo do Conhecimento

Em todas as palestras e cursos sobre o tema, eu parto da premissa de que vivemos na Sociedade do Conhecimento desde os anos 1960, que substitui o padrão antes hegemônico da Sociedade Industrial. Não se trata apenas de evolução tecnológica, porque a teconologia e a organização da sociedade são interdependentes. Ocorreu a mudança na força de trabalho. A maioria da população ativa lida com conhecimentos: são professores, consultores, escritores, especialistas em tecnologia da informação, bem como artistas em geral. Nunca houve tanta gente com elevada expectativa de vida ao nascer e conectados com a internet, o maior repositório de informação existente. Isso fez com que a evolução do conhecimento acelerasse a tal ponto que tudo fica obsoleto em poucas décadas. Com tanta informação produzida e disponível, era de se esperar que mais gente desenvolvesse seus conhecimentos - essa era a minha utopia.

O problema deixou de ser ter acesso à informação, e passou a ser como transformar informação em conhecimento. Informação abunda a ponto de causar ansiedade. Para criar conhecimento a partir de informação, é essencial as capacidades de: interpretação, reflexão crítica e raciocínio. Este é o principal foco das políticas de educação. Chamamos de analfabetos funcionais aqueles que leem e escrevem, mas não conseguem interpretar o que foi lido. São marginalizados na atual sociedade.

Indivíduos talentosos perceberam que sua empregabilidade ou chance de ter sucesso profissional nessa nova era, dependia fortemente do aprendizado veloz, e se lançaram na busca desenfreada por ampliar suas capacidades, sagacidade e sabedoria. As empresas logo perceberam que o seu valor de mercado depende fortemente do capital intelectual acumulado: as empresas de maior valor são todas, sem exceção, "organizações do conhecimento", enquanto que os baluartes da Sociedade Industrial capengam: GM e Boeing, por exemplo. Também as nações perceberam que a geração de riqueza nessa era depende fortemente do desenvolvimento e aplicação de conhecimentos. As economias ricas passaram a atrair e reter talentosos, a investir pesadamente em inovação aberta e na produção de conhecimento científico. Todo um aparato foi criado para isso: políticas de educação, de inovação e de desenvolvimento econômico. Em paralelo, consolidou-se a indústria cultural para atender ao mercado de informação, ao mercado editorial e ao mercado de todas as formas de arte. Tudo isso está em jogo na guerra entre mundos.

Mundo da Ignorância

Ocorre que a busca de conhecimento é elitista, pela própria natureza dos processos. Requer educação de qualidade, e esse é um artigo escasso, no mundo todo. É errôneo pensar que talentos nascem prontos, sobretudo nessa época em que o conhecimento evolui de forma tão acelerada. Nem há aqueles predestinados, o problema se repete em todas as nações. Nascemos ignorantes, e a questão filosófica mais relevante é como aprimorar-se ao longo de toda a vida.

Uma sociedade tão carente de educação, como a brasileira, é mais vulnerável à ignorância, por óbvio que seja. Com efeitos mais nefastos, alerte-se. No passado, a ignorância causava vergonha em seus possuidores. Era o tempo em que todos acreditavam que a educação era a principal alavanca para a ascenção profissional e vida profícua. Agora, isso mudou: a guerra dos dois mundos é reforçada dia a dia. A proliferação de fake news a comprova: o mundo do conhecimento tem mais instrumentos para detectar e combatê-las.

Por que a pendenga entre conhecimento e ignorância se transformou numa guerra? Nas nações, nas organizações e nas famílias todo o aparato criado para promover conhecimentos, infelizmente, não foi suficiente para reduzir a ignorância. Enquanto o conhecimento evoluia de modo acelerado, muita gente "perdia o bonde" e isso trouxe consequências: eles se deram conta de que eram mal, pagos, em empregos ameaçados e ainda mais, excluídos da elite do conhecimento. Esse ressentimento é a base dessa guerra. Exemplos disso: o Brexit foi causado não pelos londrinos cosmopolitas, mas pelo interior recalcitrante; o Trumpismo foi causado pelo "círculo da ferrugem", estados desindustrializados desde o advento da Sociedade do Conhecimento; e o Bolsonarismo, no vácuo da frustração com a classe política e no crescimento de ideologias de direita.

Essa massa que não é conservadora, como se pretendem, mas é reacionária, nega o conhecimento em seu esplendor. Negam a ciência, criam guerra cultural, explora pautas antissociais e, para piorar, revigora um belicismo que eu acreditava sepulto. Sempre estranhei que existissem "terraplanistas", até os alcunhados de "filósofos": qualquer um que compreenda o fuso horário ou qualquer foto sobre corpos celestes não defenderia tal posição, mas guerra é guerra. Criticar intelectuais e artistas é outra faceta da guerra - em movimentos similares no passado, até livros eram queimados e teatros fechados. Colocar-se contra a vacinação e criar entraves para o enfrentamento de pandemia é outro exemplo dessa guerra irracional. Guerrear contra meios de comunicação e contra políticas de educação, foi apelação. Mas justifica a guerra.

O mundo da ignorância demonstra desdém pela ciência e seus promotores. Prefere redes sociais a quaisquer fontes qualificadas de informação. Apresenta traços de paranóia frente ao mundo do conhecimento. Daí que apresenta soluções militaristas e antidemocráticas. A convulsão que observamos na atualidade deriva do fato de que os mais jovens de fato são mais vulneráveis às redes sociais, a crenças conspiradoras de que existe uma outra verdade por detrás da realidade, e à estridência das narrativas do Mundo da Ignorância. Eles não mais acreditam na educação como meio para ascenção profissional, e tem menor apreço pela leitura de livros e artigos científicos.

Guerra dos Mundos

O Mundo do Conhecimento, por sua vez, ensimesmado, não percebeu como esse outro mundo se expandia. O sistema do conhecimento não foi desmontado, nem a indústria cultural. Explodem investimentos em pesquisa. E nas gerações mais antigas, o gosto pela leitura e por prudutos culturais é excelente e insubstituível fonte de educação informal. Nesse mundo a tendência é a de consolidar uma elite mais velha, sábia e tolerante, inclusive frente aps desvios da democracia. No outro mundo, o da ignorância, a tendência é a de produzir jovens mal escolarizados, cheios de opiniões, crenças e superstições, vivendo na periferia do mercado de trabalho. A convulsão da guerra favorece este mundo.

Se o Mundo da ignorância prevalecer, voltaremos à "idade das trevas", sabe-se lá como e por quanto tempo. Exatamente na era em que todos têm acesso ao conhecimento - o que é um paradoxo. Ocorre que nesse paradoxo, as batalhas se dão no campo da ignorância, e não do conhecimento. Perdi amigos e briguei com familiares tentando usar argumentos factuais e comprovados pela ciência - mas nessa guerra as narrativas se igualam, e tudo passa a ser denominado opinião pessoal, como barreira ao debate. Desde Platão, há 25 séculos, sabemos que opinião não é conhecimento, justamente pelo reconhecimento das armadilhas do pensamento racional.

Melhor desertar dessa guerra, ouço em todo lugar! Só que não!

O que está em jogo é se queremos um mundo pautado por conhecimentos ou pela ignorância. Ou um mundo civilizado ou retrógrado. Ou se queremos o progresso, seja lá qual for, ou o retrocesso. Abdicar do debate é o mesmo que ampliar o fosso entre os dois mundos. Não há solução fácil, mas espero que possamos conseguir recuperar a civilidade, o respeito e a compaixão, tornando possível o uso de comunicação não-violenta. Quando ofereço consultoria a organizações que pretendem implantar a Gestão do Conhecimento Organizacional, sempre alerto que a principal premissa é a de combater o elitismo. Em vão, na maioria das vezes. A guerra só poderá retroceder para a convivência civilizada caso o mundo do conhecimento faça uso de seu capital intelectual para combater a ignorância.

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