Guia prático para ser esquisito(a) e fugir da bolha social
Não é estranho que quanto maior o acesso à informação e à diversidade, mais encurtamos as paredes do nosso mundo?
Você já deve ter ouvido falar de como criamos bolhas de realidade nas redes sociais ou que se pesquisar por “mulher bonita” e “homem bonito” no Google, o resultado trará um único padrão de beleza, como reportou o Nexo. Faça o teste, eu esperarei aqui.
Além da “parcialidade dos algoritmos” mencionada na matéria, deveríamos rever o nosso papel nessa história. O algoritmo é programado para ser assertivo na entrega: quanto mais pessoas clicam em um resultado, mais relevante ele se torna para pesquisas futuras.
“Estudiosos se preocupam com que a rede social possa criar ‘câmaras de eco’, em que usuários veem posts apenas de amigos e de fontes de mídia com pensamento parecido.” Blue Feed, Red Feed — The Wall Street Journal
A verdade é que é mais fácil apontar dedos para um inimigo invisível, enquanto o establishment somos nós. Nesse sentido, temos limitado nossa experiência em arte, beleza, lugares, contatos pessoais e assuntos do cotidiano porque, uma vez formada a bolha, ela se retroalimenta. Daí a importância de ser esquisito(a) para sair dela.
[O projeto The Atlas of Beauty, da fotógrafa Mihaela Noroc, retrata outras belezas da mulher pelo mundo.]
O que é ser esquisito(a)?
Uma das minhas esquisitices é que gosto de escolher palavras a dedo e com “esquisito” não foi diferente. Você se lembra do significado em português, isto é, o de algo “estranho”, “exótico” ou até “feio”, não é? Agora esqueça essa definição!
Aqui vamos chegar mais perto do espanhol ou do inglês, que guardam o sentido do latim “exquisitus” de “procurado; apurado”. Ainda em outras palavras, é cuidadosamente ir atrás de algo.
Veja que curioso! Parece que achamos um redator que curte mesmo bater na tecla da especificidade, como na hora de criticar o trabalho de alguém do jeito produtivo.
[Também curto falar de filmes! (Cena de O Lagosta, dirigido por Yorgos Lanthimos.)]
Por que é importante ser esquisito(a)?
Você já viu O Lagosta (The Lobster)? É um filme sobre uma distopia em que as pessoas são julgadas pela capacidade de estar em relacionamentos. Para arranjar parceiros, elas se hospedam em um hotel e tentam achar alguém com qualquer similaridade. Se não conseguem companhia até o fim da estada, são transformadas em cachorros, pôneis, lagostas…
Ele impressiona por ser único, emocionante e simbólico. Seus comentários dizem muito sobre normas sociais, como na cena em que o protagonista vivido por Colin Farrell é obrigado a escolher um dos sapatos-padrão do hotel. Ele pede o número 44 ½, mas só há 44 ou 45.
“Uma abordagem igual para todos raramente, ou nunca, servirá a todos.” Paul Goad — The Guardian
No contexto do universo da informação, a cena representa o que alguns chamam de os perigos secretos do big data. Isto é, o perigo de a experiência humana ser traduzida em números e só recebermos de volta os denominadores comuns. Isso resulta em um mundo pouco representativo, igual ao do filme e como corremos o risco de criar na realidade.
Ser conscientemente esquisito(a) é defender a variedade de expressão e a existência de coisas esquisitas, como a desse filme entre os blockbusters de Hollywood. É também manifestar que, embora as ferramentas sejam capazes de moldar a sociedade por meio de dados, elas não devem decidir o que será de nós. Precisamos mostrar o que é verdadeiro e singular em nossa humanidade.
[Cena de O Lagosta, dirigido por Yorgos Lanthimos.]
Como ser esquisito(a)?
Só você poderá definir o seu jeito de ser esquisito ou esquisita. Não precisa largar tudo e viajar “com qualquer R$ 20.000” para se abrir ao mundo. O que darei a seguir são alguns exemplos para reflexão e que poderão ajudar a desenvolver a sua esquisitice no dia a dia.
- Seja consciente: não se preocupe em ver tudo que existe nem repasse como verdade tudo que recebe no WhatsApp. Uma vez que veja algo relevante ou que desperte sua atenção, como uma notícia de interesse público ou um tópico em alta da sua profissão, descubra o quanto possa a respeito. Leia o máximo de fontes à sua disposição, concordando ou não com elas; leia, compare e depois reflita. Isso toma mais tempo, mas é melhor saber bem uma coisa que ouvir falar de vários nadas.
- Tenha curiosidade: tudo está conectado quando você se dispõe a descobrir as conexões. Ao ver um filme, por exemplo, vá atrás de outras obras que abordem o mesmo tema, de outros projetos que a direção e o elenco já tenham feito, de quem escreveu o roteiro, de quem compôs a trilha sonora etc. Se tudo que você soubesse de Colin Farrell fosse o papel dele em Demolidor (Daredevil, aquela bomba de 2003), perderia as maravilhas que são O Lagosta e Na Mira do Chefe (In Bruges).
- Aprofunde-se: o jornalismo para as massas transformou-se em coberturas de memes e coleções de GIF porque nós comprovamos que isso funciona. Se você quer uma imprensa com algo mais que artigos sobre “As 5 bundas mais famosas do Instagram”, vai precisar ler esse algo a mais. Isso vale para qualquer outra produção textual. Não tenha medo do textão nem se desculpe quando fizer um.
- Permita-se um pouco de aleatoriedade: a mesma bolha que criamos nas redes sociais está presente no que assistimos, no que ouvimos… Assim como é importante ter curiosidade e ir atrás, deixar-se surpreender é igualmente bom. Pule as indicações automáticas da Netflix e do Spotify e aceite algo que não tenha relação com qualquer experiência prévia. Converse com alguém diferente na rua, entre em um café ao qual nunca foi, arrisque-se. Sair dos próprios limites faz bem para a criatividade!
- Tenha propósito e senso crítico: a partir do momento que se percebe a bolha em um contexto sociocultural, fica mais fácil entender a luta por representatividade do que falta. Falando de cinema, isso se traduz em propósitos definidos, como dar mais protagonismo a pessoas negras. Aí entra o senso crítico, sabendo que Mulher-Gato (Catwoman) não é automaticamente um bom filme por ter a Halle Berry de atriz principal, enquanto outras obras fazem jus à equipe negra envolvida, a exemplo de Moonlight: Sob a Luz do Luar e Corra! (Get Out). Protagonismo, nesse caso, é exercer potencial e não apenas estar na tela.
- Crie, preserve e compartilhe: é ótimo que você tenha gostos esquisitos! Fale deles com paixão, mantenha vivo aquilo que encanta você e ajude quem compartilha dos seus interesses. Passe adiante, mesmo que seja só para mais uma pessoa. Por um momento, danem-se keywords e trending topics, se você tiver uma receita de bolo de cenoura com mostarda ou uma indicação de filme em preto e branco sobre vampiros de uma diretora iraniana, vá fundo, seja esquisito(a).
“Certa porção de aleatoriedade em nossas vidas permite novas ideias ou jeitos de pensar que, de outra forma, seriam perdidos.” Carlo Ratti, Dirk Helbing — Al Jazeera
E último, mas não menos importante: aproveite! Mesmo que precisemos nos monitorar para buscar coisas além da nossa bolha, é o que nos abre a surpresas valiosas e nos torna pessoas mais conscientes, mais empáticas e mais criativas. Divirta-se com isso!
Resumão
Na era dos algoritmos e do big data, temos a responsabilidade de romper as bolhas de realidade que limitam a representação do mundo além delas. Se não fizermos isso, corremos o risco de perder partes da nossa humanidade.
Uma solução para isso é ser esquisito(a), no sentido de ir atrás de informações. As formas de desenvolver essa esquisitice são muitas e incluem: ser consciente; ter curiosidade; aprofundar-se; permitir-se um pouco de aleatoriedade; ter propósito e senso crítico; criar, preservar e compartilhar; e, claro, divertir-se.
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6 aExcelente abordagem, Christian. Obrigado.