A Honestidade É um Prato Que Se Come Frio

A Honestidade É um Prato Que Se Come Frio

Desde a infância escutamos de nossos responsáveis que devemos sempre contar a verdade, somente a verdade e nada mais que a verdade sob pena de sofrer todo tipo de punições que variavam de uma reprimenda verbal até ser devorado pelo “Bicho-Papão” (as coisas escalavam rápido antigamente). No entanto, muitas vezes ficávamos presos em situações onde ser honesto não era a opção mais viável.

 

Aprendemos desde cedo que devemos evitar sermos “rudes” com as pessoas, independente se as conhecíamos ou não.

 

Agradecemos pelo presente de grego que recebemos de nossos parentes distantes, aprendemos que a comida da mamãe está sempre “de dar água na boca” mesmo que nosso paladar proteste veementemente contra tal afirmação ou que estamos muito felizes em entregar nossos brinquedos favoritos nas mãos de nossos primos desastrosos...

Com o passar do tempo descobrimos que existem muitas atitudes consideradas rudes: não retribuir um elogio? Rude. Comer um pacote de biscoitos recheados sozinho na frente do seu amigo? Rude. Apontar o fato de que sua namorada não cabe numa calça tamanho 38 na frente das amigas dela?

 

Não somente é rude como também é risco de morte certa...




Uma Viagem Inesperada

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Rumo à estação 9¾

Durante os dias que passei de cama me recuperando da temida Covid-19, me peguei relembrando de alguns fatos curiosos que ocorreram durante meu breve tempo como criança neurodivergente. O tempo voa quando somos jovens e ingênuos...

Devido ao péssimo humor causado pelo consumo excessivo de remédios para combater as dores e sofrendo com uma falta de apetite medonha (cada refeição me levava de volta aos tempos da comida da mamãe), grande parte dessa viagem ao passado concentrou-se em revisitar lugares e situações das mais inusitadas.

Uma dessas paradas me levou a uma memória já quase esquecida que, apesar de ainda causar certo incômodo, ensinou algumas lições muito valiosas para a vida adulta.



O Triunvirato de Quatro

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Éramos mais elegentes ainda!

Tudo começou numa manhã escolar mundana em 2008, talvez em algum ponto entre o início e o fim do mês de Agosto.

 

Peço perdão pela imprecisão: Agosto é um daqueles longos meses onde os dias se separam por anos-luz entre si.

 

Fora justamente nesse “ano dentro de um ano” que recebi o melhor presente que um pré-adolescente poderia receber: sabedoria.

Tal presente não fora dado por parentes distantes (graças a Deus), mas sim por três guris* energéticos:

O maior deles, Victor, era o típico guri de apartamento* que sofria de ansiedade devido aos cuidados excessivos por parte dos pais superprotetores. Apesar do tamanho imponente, era o mais gentil e estudioso dentre os guris da turma.

João era o mais “esperto” e com sobras: já cedo demonstrava notória habilidade em lidar com as pessoas ao seu redor e conseguia se safar de todo tipo de encrenca. Era o centro das atenções por onde andava e carregava consigo uma gargalhada contagiante.

Rafael era o que chamaríamos hoje em dia de “valentão”: apesar de ser tão ardiloso quanto João, Rafael usava tal habilidade para fins menos “nobres”, digamos assim.

Ao passo que João usava de sua oratória brilhante para complementar sua personalidade contagiante, Rafael usava de suas palavras para intimidar qualquer um que ousasse cruzar seu caminho. Não raro tais intimidações eram complementadas por sua força física.

Sentado entre o três ficava um guri tímido e franzino de 12 anos de idade. Sempre prezando pela solitude e quase que invisível aos olhos de seus colegas de classe, sua sorte como aluno de matemática estava prestes a mudar do dia para a noite.

Seu nome não é importante para o entendimento da história.



Uma Jogada De Mestre(s)

 Éramos todos alunos no sexto ano do primário e lembro-me de estar sentado (como sempre) entre o três mesmbros do grupo mais baderneiro da sala. Lembro-me também de ter escutado os três elaborando uma espécie de “plano infalível” para colar na prova de matemática que seria aplicada na primeira quinzena do mês. O tal plano funcionaria mais ou menos assim:

Assim que o mais esperto da “gangue” (Victor) tivesse certeza de ter acertado alguma questão, ele então bateria a caneta na própria mesa algumas vezes, seguindo a ordem exata das questões.


Ele faria o som uma única vez caso a alternativa correta fosse a primeira, duas vezes caso fosse a segunda, três vezes caso fosse a terceira e quatro caso a última.


Era um plano genial e, por ter testemunhado (por acidente) a elaboração de tal plano maquiavélico, acabei por ser promovido a “membro honorário” do grupo. Precisando tirar uma boa nota após meses de desempenho ruim, de uma hora para outra eu tinha tudo para me sair bem na tal prova sem muito esforço.

Plano aprovado, o próximo passo seria elaborar um meio de pô-lo em prática a tempo do grande dia. Após semanas entre discussões acaloradas e até mesmo confrontos físicos na hora do recreio, todos chegamos a um consenso:

Teríamos de sentar todos próximos a Victor para que assim fosse possível escutar o “toc” da sua caneta sobre a mesa e fazer todo nosso trabalho árduo valer à pena.

Eis que chega o grande dia e somente a oratória invejável de João conseguiu convencer a professora a deixar o trio sentar perto um dos outros. Talvez a presença do guri franzino e quieto a convenceu que eles se comportariam de vez.

Todos os alunos estavam com suas canetas em mãos e tinham exatamente noventa minutos para completar a temida prova que decidiria quem iria ter um “bis” de Sexto Ano e aqueles que iriam avançar para o ano seguinte.

Somente quatro desses alunos tinham um plano na manga.



Ascensão

 No dia da prova o clima era tenso, todos os alunos se concentravam única e exclusivamente nas folhas de papel em suas mesas, checando o relógio acima da lousa contando os minutos para o fim de um teste cujo prêmio significava muito mais que um boletim pomposo: nossas férias estavam em jogo.


Assim pensavam os quatro alunos mais baderneiros da sala...

 

De qualquer modo, aquela maldita bendita prova estava testando não somente nossa capacidade de raciocínio lógico como também nosso controle emocional.

 

Assim pensavam os alunos que de fato estudavam para as provas...

 

Apesar de localizada no centro movimentado da cidade, mal se escutava o ruído da vida exterior à sala de aula. O silêncio era sepulcral.

 

“Toc-Toc”

 

O sinal fora dado e quatro alunos marcaram a alternativa “B” na primeira questão do teste.

Muitos outros “tocs” seguiram os iniciais (cuja ordem exata obviamente me escapa à memória) e, após 90 minutos de tensão e uma sinfonia de “tocs”, quatro guris emergiram triunfantes do maior teste acadêmico de suas vidas até ali.

O clima pós-prova era misto: alguns estavam ansiosos, outros estarrecidos. Já um pequeno grupo de baderneiros comemorava o que parecia ter sido um gol do seu time no GRENAL*.

A maioria dos alunos encarou tal baderna como uma atitude típica do trio baderneiro da sala enquanto alguns se questionavam o porquê de um guri franzino estar junto na farra.

Somente uma pessoa analisava a situação de forma crítica: a professora.



Queda

 Alguns dias após o término da prova saiu o resultado: os membros da “gangue” tiraram a maior nota da sala!

Com a exceção de quatro guris (e uma senhora de meia-idade) todos estavam chocados com tamanho sucesso repentino e inédito na história da turma.

O restante do longo mês de Agosto fora usado como uma espécie de “férias” pelo grupo, pois estávamos convencidos que nada mais iria tirar o triunfo de nossas mãos.

No entanto, não demorou muito para a professora estranhar tamanho sucesso acaêmico e, dias depois do acontecimento, ela decide convidar o mais franzino dos "gênios" a resolver algumas questões da prova em frente a todos da sala, afinal, ele fora um dos únicos a tirar a nota mais alta da sala.

 

Também fora mera coincidência o fato dele “esquecer” como calcular frações e até mesmo a somar números inteiros.

 

No dia seguinte (também por coincidência) todos os membros da “gangue” foram convidados a explicar para a professora como resolveram todas as questões com tamanha maestria, tendo em vista que éramos até o dia da prova, os piores alunos da classe (autistas também podem ser baderneiros).

Após um trabalho digno de investigador de filme americano e se utilizando de uma experiência analítica de décadas como educadora, nossa professora conseguiu, aos poucos, minar a lealdade de cada membro do grupo e identificar o elo mais fraco: o guri franzino.

Pois bem, uma variável com a qual nem mesmo o gênio de Victor contava era o franzino e sua língua solta.

Convencido de que tinha sido traído pelo líder do grupo após “provas” de que o mesmo estava me acusando de ter arquitetado todo o plano sozinho, decidi revelar o esquema na frente de todos da classe e assim consolidar minha “vingança”.




Uma Refeição Solitária

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MeninOs MalvadOs

A sabedoria popular diz que “a vingança é um prato que se come frio” e nunca um ditado popular fez tanto sentido quanto naquele dia. O gosto não é dos melhores devido à falta de acompanhamentos e, principalmente, acompanhantes.

 

De membro honorário do grupo mais popular da sala voltei ao completo anonimato escolar, agravado pelo fato de ter arruinado não somente as notas do trio como também por ter feito papel de “traíra” na frente de todo mundo.

Aprendi nesse dia que, uma vez traída, a confiança se torna uma commodity rara de ser encontrada novamente. Os demais alunos, tanto da minha sala como do colégio inteiro, buscaram evitar o guri “traíra” pelo resto do ano letivo.

Desse dia em diante, passei a almoçar longe do refeitório, pois palavras de baixo-calão não desciam bem com as refeições.



De Volta Para o Futuro

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Para onde estamos indo não existem estradas

Apesar dos muitos meses que se seguiram, a frágil aliança que mantive com o trio e os poucos dias em que finalmente me senti pertencido a algum lugar são as memórias que prefiro guardar comigo.

 

Lembra do exemplo da namorada lá no início do texto?

Se trata de um exemplo real e, apesar de eu ter escapado relativamente ileso (a calça nem tanto), tal situação provocou certo vexame na hora e somente após retornarmos para casa foi quando percebi o quanto meu comentário feriu os sentimentos dela. Relembrei desse acontecimento após notar como a dita cuja não poupou esforços em cuidar do seu namorado “rude” mesmo após ter enfrentado tamanho vexame por parte da língua solta dele.

Durante esses dias confinados numa cama, não pude deixar de perceber como neurotípicos são capazes de se doar de corpo e alma em prol das pessoas que amam, mesmo após serem vítimas de ofensas, injustiças e vexames. Como uma mãe que se joga em frente a um carro em movimento para salvar seu filho do perigo iminente, minha namorada não poupou esforços em sacrificar seu bem mais precioso (seu tempo) em prol do meu bem-estar.

Não fosse ela, esse período de recuperação pós-covid teria sido muito mais difícil. Com seus cuidados e pratos dignos de restaurantes cinco estrelas, ela me permitiu recuperar as forças e de quebra embarcar numa viagem no tempo.

Também não pude deixar de notar como as refeições descem melhor quando temperadas com amor.




Dicionário de “gauchês”

 

Alguns leitores mais atentos notaram que usei algumas palavras consideradas como tipicamente gaúchas, pensando no leitor estranho a tais palavras, decidi traduzi-las para o bom Português Brasileiro:


*Guri: Sinônimo de “moleque”, “mocinho”, “piá”, "pivete"


*Guri de apartamento: Designa um guri que vive trancado em casa e é mal-acostumado pelos pais. Não precisa necessariamente morar num AP.


*GRENAL: Maior clássico futebolístico do mundo. Ponto. O lado vermelho da rivalidade possui mais vitórias que o azul, mas isso é apenas uma mera coincidência.

 

Obs: Nenhuma calça fora ferida durante a redação desse artigo

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