Inspirações Psicanalíticas - Filme "A filha perdida", com base no livro de Elena Ferrante
Atendendo a alguns pedidos, hoje vamos abordar o filme “A filha perdida”, de 2021, da diretora Maggie Gyllenhaal (também atriz). Antes de mais nada, quero fazer algumas advertências, porque a leitura pode não agradar: primeiro, se puder, leiam o livro antes de ver o filme (é um livro curto, muito bem escrito, que prende o leitor e não consumirá mais que duas horas e talvez acalentará parte da desarrumação que o filme muito competentemente promove). Segundo, talvez para a surpresa de alguns, estou longe nesta mini-resenha de trazer Leda como perversa ou absolutamente desprovida de desejo materno. Pelo contrário, ela choca justamente por sua despreparada humanidade, que se traduz em sua forma imperfeita de amar: o filme trata de uma das várias possibilidades de maternidade e de como, para quem está de fora, deter o olhar para essa função materna, analisando-a mais profundamente, pode ser indigesto e atormentador, e para quem vive isso, pode promover conforto e identificação.
Elena Ferrante (pseudônimo da escritora italiana, cujo livro de mesmo nome serviu de tema ao filme) aborda o tema da maternidade de um modo desconstruído e desconfortável: ela se infiltra na idealização tão disseminada sobre o suposto “instinto materno” ou um amor natural que tornaria uma mulher mãe. No filme vemos o conflito entre uma mulher e sua maternidade, que me arrisco a dizer, quase sempre existe em algum momento e em algum nível, trazendo ambiguidade e culpa muitas vezes, sem necessariamente resvalar na ausência física. Muitas mães abandonam, mesmo ficando fisicamente ao lado de seus filhos. Outras conseguem suspender por algumas horas o contrato de “amor incondicional” se deslocando, sem precisar abandonar definitivamente.
Fato é que a maternidade é exigente. Há medos, expectativas, carências e angústias recíprocas entre uma mãe e suas filhas. Há uma sensação de apagamento subjetivo, de sentir-se sugada, e muitas mães embarcam na ideia de prover suas crianças em tudo, numa fantasia de onipotência que gera dor e frustração, porquanto é impossível atender a todas as demandas de amor de uma criança. O filme (e o livro) nos fazem refletir sobre a importância de conciliar as coisas e de não se esquecer, nem se abandonar.
Em "Além do princípio de prazer", Freud (1920) discute as brincadeiras das crianças, especificamente a brincadeira de seu neto de um ano e meio de idade, que ele batizou como o jogo do Fort-da, que consiste na desaparição e surgimento de determinado objeto para simbolizar a ausência materna. Freud interpreta o jogo do Fort-da como uma encenação das partidas e retornos de sua mãe, possibilitando à criança elaborar sua falta e sair de uma posição passiva (abandonada pela mãe), encontrada na alienação, para outra ativa, de controle sobre a aparição; isso possibilita a constatação da ausência e a elaboração da falta e é fundamental para a constituição subjetiva.
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Diante disso, é fácil constatar que as maternidades (porque diversas) são incompletas e as mães falham e faltam (sem necessariamente ter que jogar tudo para o alto). E é graças a isso que os filhos, ao tolerar tal frustração e suportar tais falhas, podem se desenvolver psicologicamente, e as mães podem aceitar essas descontinuidades e permanecer falhando perto dos seus filhos.
Algumas pessoas desejam ter a “coragem” que Leda teve e dizem: “Mas eu nem sabia que poderia ir embora, isso não era uma opção para mim”. Outras, dizem que foi uma grande “covardia”, repetindo: “Mas como ela conseguiu abandonar as filhas?”. Fora desse juízo moral, talvez tanto a criança “abandonada” de algum modo, como a mãe imperfeita more em nós, e diante dessa ambivalência, cada um decidirá ir ou ficar, partir e voltar ou seguir.
Sobre a boneca, o que é uma boneca para uma criança? E para uma mãe? Para Melanie Klein, psicanalista austríaca, a escolha do brinquedo e sua manipulação pela criança representam a expressão de certos processos inconscientes, mais profundos. Leda resgata a boneca perdida na areia e a guarda na bolsa. Limpa-a, esconde-a no armário (ela brinca com a aparição e desaparição). Lembra dela e a esquece (novamente o jogo da presença – ausência). Mas no final, a devolve limpa, com roupa nova e cuidada, exatamente com uma boa cuidadora. Ela abre margem para a verdadeira dona da boneca conviver com a ideia de uma perda, exatamente como um fort-da (longe e perto), mas no fim, ela retorna. E na despedida, na praia, aparentemente se deixando morrer, parece nos trazer uma bonita metáfora de nossa impotência, e de como nem sempre as histórias reais terão finais perfeitos.
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