A invenção do eu, do mundo e do tempo

A invenção do eu, do mundo e do tempo

O mundo de um carrapato é bem simples: ele se move em direção ao calor. Assim, se desloca lentamente até o cume das plantas procurando ficar exposto ao sol. Se um animal de sangue quente passa sob a vegetação, ele se solta na expectativa de cair sobre ele e começar a sugar seu sangue.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Humanos são diferentes de carrapatos. Temos muitas informações sobre o mundo e tudo que há nele. Olhando o mundo simplificado de um carrapato, podemos pensar: como ele pode se contentar com tão pouco? Se o carrapato pudesse pensar e soubesse quantas informação temos sobre o mundo, talvez se perguntasse: para que eles querem saber tanto?

INTRODUÇÃO

O caminho percorrido até aqui, nos dois primeiros artigos dessa série nos levou desde a atrofia dos braços até a dedução de um princípio de funcionamento neural: o neurônio nasce, cresce e morre a partir de seu próprio funcionamento. Princípio que define uma célula básica, o tijolo de que precisamos para a construção de uma Teoria Unificada para Cérebros e Cognição.

Agora, vamos começar a entender como o excesso de estímulos gerado pela atrofia cria o eu, o mundo e o tempo.

Veremos as mudanças estruturais que ele provoca ao chegar ao cérebro, como isso gera um eu rudimentar e um precário sistema de representações. Nos perguntaremos sobre as condições de invenção do tempo. Estudaremos, como metáfora, os rituais de luta e acasalamento de animais. E encontraremos soluções de alguns enigmas. Bem vindo!

UMA INVASÃO DE ESTÍMULOS

O que acontece quando o excesso de estímulos chega ao cérebro?

Se acreditamos que estamos construindo uma ciência, devemos aplicar, às perguntas, nosso princípio: na presença de um ambiente rico de estímulos, neurônios nascem e crescem. Também morrem, mas é uma morte residual incorporada a estrutura na forma de mielina. Todo dia, morrem cerca de dez mil neurônios no cérebros de um adulto. Novos neurônios também se formam, principalmente no hipocampo. Mas, como essa é uma descoberta recente, ainda não temos um balanço entre novos neurônios e mortos.

Segundo nosso princípio, ao chegar ao cérebro o excesso de estímulos provocará a formação de novos neurônios e o crescimento dos neurônios existentes. O cérebro é um grande aglutinador/distribuidor de estímulos por onde circulam estímulos vindo de diversas fontes em direção ao aparelho motor. Freud dizia que ele é um grande gânglio simpático.

Quais as regras que funcionam para definir onde e quais neurônios vão se formar e crescer? Para entender isso, vamos fazer uma visita aos rituais de luta e acasalamento dos animais.

RITUAIS DE LUTA E ACASALAMENTO

Os rituais de luta e acasalamento sempre fascinaram os pesquisadores. Em certas espécies, há semelhanças entre os movimentos nos jogos de sedução, que os machos fazem para conquistar as fêmeas, e aqueles utilizados para `amedrontar` outros machos. A pergunta que intriga: por que `dançar` da mesma forma para uma fêmea e um adversário?

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Vou propor, aqui, uma espécie de engenharia reversas usando nossa teoria. Vamos partir do problema que queremos resolver: o que produz os mesmos movimentos nos rituais de luta e acasalamento? Vamos deduzir a gênese desses rituais usando minha teoria.

Identificamos dois tipos de relações nesses rituais: a) macho - fêmea; e b) macho - outro macho. A partir delas, surge uma situação triangular: fêmea - macho - outro macho. Esse triângulo inspira a montagem de outra cena: dois machos que disputam uma fêmea. Logo, temos uma situação de conflito em potencial: dois machos têm, primeiro, que se enfrentar para, depois, acasalar com a fêmea.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Consideremos que os rituais são mais complexos quando comparados com outras ações. Ganhos de complexidade neurais são, na nossa teoria, resultado de excessos. De qual excesso se trata nesse triângulo amoroso? Temos fontes de estímulos ativas nele: a) o cio da fêmea; b) outro macho a ser vencido. Duas fontes de estímulos ativas no mesmo momento. Suficientes, sozinhas, para iniciar uma ação.

Vamos supor um tempo anterior em que o ritual ainda não existe. Os dois fluxos de estímulos, chegando ao cérebro, se dirigem na direção do movimento. Como é impossível realizar duas ações ao mesmo tempo, uma delas vai prevalecer. Vamos supor que a luta com o outro macho é a escolhida, uma vez que implica a sobrevivência. O fluxo de estímulos que leva ao coito com a fêmea fica momentaneamente represado. O desafio do outro macho já fornece os estímulos necessários para a luta. O que acontece, então, com os estímulos que vêm da fêmea? Eles são um excesso e devem ter algum destino. Pela nossa teoria, vão provocar nascimento e crescimento de neurônios.

Os neurônios presentes nos dois fluxos ativos são candidatos ao crescimento, em um processo semelhante aquele, que vimos no artigo anterior, de encorpamento do circuito neural que vai dos braços ao cérebro.

Aqui, uma novidade: entre os dois fluxos surgirão novos neurônios. Para onde crescerão? Crescerão na direção do excesso. Em nosso exemplo: os estímulos de acasalamento. Como consequência, pontes neurais surgirão entre os dois fluxos, canalizando os estímulos de acasalamento para os movimentos de luta.

Aqui, podemos enunciar um teorema derivado de nosso princípio (a que dei o estatuto de axioma lógico no artigo anterior):

Se dois fluxos neurais estão ativos de forma simultânea, e os dois são suficientes, quando isolados, para ativar movimentos, então, o fluxo de maior dimensão terá o controle do aparelho motor, e parte dos estímulos do segundo fluxo serão convertidos em formação e crescimento de neurônios que formarão pontes entre eles.
Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Estou abstraindo questões importantes. Como a necessidade de repetições sistemáticas desse triângulo para que pontes neurais se construam, o que explica porque não temos rituais em mais espécies. É necessário supor uma proliferação de machos em relação ao número de fêmeas para que essa situação se repita um número suficiente de vezes. Também não abordo, nesse momento, a questão de como essas possíveis aquisições serão transmitidas de geração em geração. Me interessa, aqui, um modelo lógico capaz de explicar o fenômeno.

Tomei os rituais de luta e acasalamento como anteparo. Fica evidente que com o teorema, formulado acima, diminuímos o foco de nossa lente: se antes examinávamos as células neurais em sua individualidade, agora estamos examinando conjuntos delas. O funcionamento desses conjuntos, porém, deriva da dedução que fizemos de nosso princípio de funcionamento neural e é coerente com ele.

Construídas as pontes, elas serão reforçadas cada vez que uma das situações, luta ou acasalamento, ocorrer. O movimento inibido (o coito) terá uma via para influenciar a ação ativa (a luta). Lembremos que os neurônios crescem com seus dendritos na direção do excesso, logo crescem capturando estímulos da função inibida e canalizando para a ação dominante. A função inibida passa a funcionar como moduladora da função ativa. Dessa forma. a luta começa a ganhar feições de uma dança de sedução.

Se depois de constituída a ponte, apenas a ação do coito estiver ativa, parte de seus estímulos serão desviados na direção do fluxo de luta. Essa perda, é provável, será compensada com o encorpamento dos neurônios do coito pelo crescimento de seus neurônios gerado pelo excesso. É uma forma de todo o sistema se reequilibrar. É possível supor, também, pontes secundárias se formando no caminho inverso, da luta para o coito.

Quando apenas uma das ações estiver ativa, seja a dança ou a luta, as pontes neurais funcionarão como ativadoras da ação inativa. Em outras palavras, a modulação continuará. Não só a dança estará presente na luta, mas a luta estará presente na sedução.

Esse é o nosso esquema para a gênese dos rituais de luta e acasalamento.

Pequena análise da aplicação de nosso princípio a gênese dos rituais

Até aqui, tratamos da expansão do cérebro. A modulação de uma ação pela outra, insere, entretanto, um elemento de ganho de complexidade também na musculatura, que é requisitada a movimentos combinados e escalonados. Dessa forma, excessos geram não só complexidade nos cérebros, mas também, em espelho, na musculatura.

Há aspectos interessantes obtidos de nossa análise: a) a continuidade de um agente de ação; b) uma representação de ausência; c) uma sensação temporal.

Pensemos em uma espécie sem ritual de luta e acasalamento. Os pesquisadores não veem enigmas quando a observam porque não encontram semelhanças entre suas lutas e acasalamentos. Nem rituais. Podemos falar em dois agentes de ação com personalidades distintas quando se acasalam e lutam. É como se tivéssemos na frente de dois animais distintos. A modulação cruzada na construção do ritual de luta e acasalamento, cria algo em comum entre os dois agentes. Podemos falar de uma interseção que define um núcleo de agente comum. Um agente que permanece entre uma ação e outra. O animal ganha uma certa `personalidade`. Esse núcleo de agente é uma novidade interessante no reino animal: a continuidade de um agente de ação.

Agora consideremos o que significa o fato de, na ausência da fêmea, os machos continuarem a lutar como se ela estivesse ali. Pois, depois de constituída a ponte neural, os elementos migrantes da ação de coito para a luta continuam. O que isso significa? Significa que o sistema neural acrescentou ao mundo algo que não existe mais naquele tempo e espaço. É como se o fantasma da fêmea fosse adicionado a cena do mundo pelo próprio animal. Isso implica que ela se acha representada, embora não esteja presente. É uma representação bem primitiva, mas tem a estrutura de uma. Como toda representação é a presentificação de uma ausência.

O fato de agora ser necessário incorporar ações entre o estímulo que desencadeia o movimento e sua satisfação, implica uma sensação de tempo. É preciso executar ações intermediárias que são acrescentadas ao rito original. E mais: ações desconectadas da satisfação. Agora o animal do ritual não á apenas aquele que quer satisfazer sua necessidade, mas aquele que a quer satisfazer com `estilo`. Uma novo tipo de necessidade foi criada e ela emerge desde o interior do sistema.

Entre os bonobos (uma espécie de macaco) se dois machos estão querendo a mesma fêmea, eles transam entre si no lugar de brigar por ela.

Penso, que a essa altura, não será difícil ao leitor tentar explicar a gênese desse procedimento por si mesmo. O que serve, também, para exemplificar a diversidade dos rituais de acasalamento. Por depender de eventos externos, as composições resultantes pode ser diversas e dependem das cenas de mundo em que foram gerados.

Parece que encontramos uma equação simples para explicar todos os chamados rituais de acasalamento, não é mesmo?

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Será que podemos a partir de nossos teorema explicar outros enigmas? Pensemos nos bandos, cardumes, enxames e nas manadas. Tomando como base nosso teorema das duas fontes, como você leitor os explicaria?

Voltando ao nosso carrapato

Vou retomar o início e a suposta pergunta do carrapato: `para que eles querem saber tanto?`. Talvez, leitor, diante da análise que fizemos da gênese do ritual de luta e acasalamento, você esteja se perguntando: por que fazer ações que são dispensáveis a satisfação da necessidade? Não seria mais pertinente esses machos fazerem as coisas a maneira antiga? Não poupariam muita energia com isso? Lembremos, primeiro, que foi o excesso de energia disponível que gerou esses rituais. Elas independem de uma suposta `vontade` do macho envolvido. Então, à necessidade de copular e lutar e seus respectivos objetivos se somou um outro: a necessidade do aparelho neural de lidar com o excesso de estímulos. É só uma figuração é claro, porque no final das contas, não é de uma necessidade que se trata, mas de uma oportunidade, ao nível celular, que cada neurônio encontra para crescer.

Agora, pera aí! Por que sentimos o aroma na rolha de uma garrafa de vinho, antes de servi-lo? Por que servimos um pouco de vinho em uma taça a alguém para que experimente, antes de bebermos? Já pensou sobre isso?

O DESVIO HUMANO E O INÍCIO DO EU, DO MUNDO E DO TEMPO

Podemos agora retomar a questão do destino do excesso de estímulos transferido desde os braços até o cérebro de nossos antepassados. Quando chegou ao cérebro, esse excesso produziu os mesmos efeitos que vimos para os rituais de luta e acasalamento: nascimento e crescimento neural na trilha que leva a fonte extra de estímulos.

Nos animais, o excesso provoca complexidades pontuais, como os rituais de luta e acasalamento. Ao contrário do humano, não derivam para uma interpretação de mundo abrangente. Por que na espécie humana o excesso teve um efeito tão estrutural e sistêmico?

Entra em cena aqui, algo a que já tinha dado importância, antes. Minha busca, desde o início, foi de uma fonte/um excesso, interno e constante. Influenciado pela hipótese freudiana, entendi que uma transformação tão radical e estrutural quanto a emergência do humano, não poderia depender de eventos internos. Caso contrário, estaríamos diante da difícil situação de explicar porque a mesma não sucedeu com outras espécies. É o que acontece com a gênese dos rituais. Depende de superposições de origens externas: o macho desafiador e a fêmea no cio, por exemplo. E da sua repetição com um grupo significativo de machos daquela espécie em um intervalo de tempo determinado. A quantidade de rituais já mapeados mostra que na diversidade biológica, os rituais não são raros, mas, também, não ocorrem na maioria das espécies.

No caso da atrofia humana, alguns fatos devem ser destacados:

a) Ocorre na musculatura que é um órgão de saída para toda ação - a partir da atrofia e durante seu progresso, toda vez que uma ação é iniciada um excesso de estímulos é enviado ao cérebro. Significa que se tínhamos sede e íamos até o rio, fome e saíamos a caça, fugíamos de um predador, copulávamos, qualquer ação que fazíamos, uma excesso era gerado. Qualquer movimento gerava um excesso;

b) Ocorre em um mamífero que possui um circuito de reforço cérebro/musculatura - esse circuito faz reverberar por diversos ciclos aquilo que circula por ele (lembremos do exemplo da caça de um tigre). O excesso, então, passa a circular nesse circuito. Se antes, era um reforço a ação que estava em curso, agora ganha um Plus e pode ganhar continuidade se tivermos uma sequência de ações em um intervalo pequeno de tempo;

c) Ocorre de uma substituição no interior do sistema motor - os braços são substituídos pelas pernas como principal meio de locomoção. Quando estávamos nas árvores, usávamos os braços para colher alimentos e se locomover. Nas savanas, usamos as pernas;

d) Ocorre durante a grande migração humana - os grandes deslocamentos que a busca pelos alimentos exigia, implicava movimentos motores de grande duração. Isso, além de criar uma espécie de motocontínuo de excesso, tornava a percepção de estímulos dos órgãos sensoriais (visão; audição; olfato) fontes adicionais de estímulos, transacionando informações de mundo para as ações.

Um centro de ressonância

A parte do cérebro responsável pelo acionamento da musculatura dos braços se torna, dessa forma, um centro para o qual estímulos de diversas ações convergem e que a partir daí são distribuídas.

Há um ponto aqui a ressaltar: se na formação dos rituais de luta e acasalamento havia uma direção privilegiada, do fluxo de acasalamento para o de luta e vice-versa, aqui temos, na maior parte das vezes, apenas um fluxo preponderante ativo, a ação hegemônica. A superposição de ações é dispensável como fonte de excesso. Significa que o fluxo secundários de estímulos ativos vão definir para que direção os neurônios crescerão. Se houver fluxos secundários significativos simultâneos, teremos construções mais rápidas de pontes neurais. Troca de elementos entre ações. Teremos complexidade tal qual a dos rituais.

A grande novidade aqui é que mesmo na ausência dessas superposições, o excesso está presente. Gerado pela atrofia e vai gerar nascimento e crescimento neural. Isso significa mais massa neural e mais complexidade. O aumento de massa neural, já sabemos, gera a expansão do cérebro. Vamos entender a complexidade.

Na ausência de um fluxo secundário significativo, o crescimento neural vai lançando bases para diversos caminhos neurais. Dessa vez com a direção invertida: dos diversos fluxos para o centro neural motor gerador do excesso. Os fluxos de estímulos ativos vão ter uma vantagem competitiva, pois já se acham ricos de estímulos. O excesso que invade o cérebro, desde os braços, se torna uma espécie de centro de gravidade para onde convergem fluxos neurais, sejam perceptivos, sejam motores.

Esses caminhos neurais em construção tendem a se encontrar, antes mesmo que as pontes neurais sejam finalizadas. Cria-se uma grande caixa de ressonância que coleta os mais diversos sinais: 1) de mundo gerados pelos órgãos perceptivos; e, 2) de necessidades gerado pelo interior do organismo. Enriqueceramm a percepção do entorno dos nosso antepassados.

Um poderoso núcleo neural, consequência da atrofia, começa a se formar.

Devemos entender que o mamífero já tem uma determinada percepção de mundo criada pelas suas próprias características. Para nossos antepassados, em especial, se locomover nas árvores também implicava ter uma percepção de galhos, predadores no solo, presença de frutas comestíveis.

Tenho falado muito do movimento principal, aquele que leva nossos ancestrais a se locomoverem por longas distâncias, nas savanas africanas. Mas, sabemos que os órgãos perceptivos, além de colherem informações e transmitirem ao cérebro, também são direcionados por eles na direção dos estímulos. A expansão cerebral de que estamos falando deve ter reforçado esses arcos de comunicação neural cérebro-órgãos perceptivos.

À expansão cerebral correspondeu uma expansão do mundo de nossos ancestrais.

As grandes migrações humanas já mapeadas pelos antropólogos, mostra a magnitude da jornada que estamos examinando. Uma situação que perdura por um bom período de tempo e envolveu grandes grupos da espécie. A tendência foi a construção de um centro que englobou, pouco a pouco, todos os circuitos neurais do cérebro.

Essa é a própria imagem que eu tenho da expansão cerebral: o surgimento de um cérebro integrador. Nada de significativo vai lhe escapar a partir desse momento.

Vimos na análise dos rituais de luta e acasalamento três consequências interessantes: a) a continuidade de um agente de ação; b) uma representação de ausência; c) uma sensação temporal. Tínhamos, então, apenas duas ações ativas importantes e um processo focal. Essas três ocorrências vão se dramatizar e vemos emergir, em nossos antepassados, forma primitivas de:

1) um eu;

2) o mundo;

3) o tempo.

A invenção do eu

A continuidade entre as ações envolvidas na gênese dos rituais, agora aparece em qualquer ação, provocando circulação de sinais. Sinais de mundo proveniente dos órgãos sensoriais. Sinais de necessidade. Que reverberam na circulação cérebro/musculatura mesmo depois de suas motivações cessarem. Começa a se formar, nisso que circula, um eu primitivo, ainda muito instável, pois sua configuração depende de diversos fatores: a) dos elementos ativos perceptivos; b) das fontes motivadoras das necessidades; c) das demandas não atendidas; d) dos fantasmas de mundo e agentes de ação que reverberam no circuito. Esse eu primitivo vai adequar sua `personalidade` a cada situação.

É provável que, com o tempo e repetição, certos estímulos logrem estar em permanente circulação nesse eu primitivo. Esse conjunto consistiria no primeiro núcleo estável de um eu primitivo.

A estabilização desse eu, entretanto, exigirá uma outra transformação estrutural importante, a aquisição de linguagem, para ocorrer.

A invenção do mundo

O mundo do nosso antepassado começa a se expandir de uma forma dramática! Ele não apenas começa a acrescentar seus próprios signos no mundo que percebe, mas, também, começa a incorporar sinais de mundo de que antes prescindia. Esses sinais aumentam sua percepção/interpretação de mundo. Eles agora, percebem todo o tempo coisas que só percebiam associados a necessidades. Isso deve ter tido um certo efeito alucinógeno para eles. Precisamos entender que o grande período, cerca de cinco milhões de mundo até a aquisição da linguagem, foi necessário para que esse mundo pudesse ser construído, sem que ao mesmo tempo a sua sobrevivência fosse ameaçada.

Nós estamos acostumados a pensar em uma relação simétrica entre o mundo real em que habitamos e a percepção que temos dele. Os pesquisadores que trabalham com questões associadas a percepção de mundo sabem que não é bem assim. Cada espécie, inclusive a nossa, enxerga o mundo a sua maneira. O fato de precisarem operar sobre ele para sobreviver, mostra que essas diversas percepções, mesmo quando parciais devem manter uma certa solidariedade com o mundo real. E mesmo entre nós cada um tem uma percepção diversa do mundo, embora estejamos de acordo na maior parte. As drogas alucinógenas e as alucinações psicóticas dramatizam esses efeitos de distopias perceptivas a que estou me referindo. Antes da aquisição da linguagem, que vai dar uma certa estabilidade ao mundo humano, o pintávamos com cores diversas a cada momento. E cada um da espécie o construía sofrendo os efeitos de sua singularidade.

A invenção do tempo

Nossos antepassados tiveram que trabalhar muito mais que os outros animais a sua volta. Seus longos deslocamentos somados a sua expansão cerebral introduziram uma continuidade que perenizavam um eu primitivo e estabilizavam uma arcaica interpretação de mundo.

Tomar uma ação exigia levar uma porção de mundo maior em consideração. Elas ficavam mais longas. A sensação de tempo de que falamos nos rituais passou a ser uma apreensão primitiva de tempo.

Dia e noite antes do aparecimento de um eu primitivo existiam apenas como percepção de mundo de uma ação, de uma necessidade. Nosso antepassado não podia constituir um constraste entre esses dois períodos de tempo. Faltava uma continuidade para que ele pudesse reconhecer ele mesmo e o mundo em duas situações diferentes: no dia e na noite. Quando a continuidade começa a se formar, isso muda de maneira dramática: o que permanece, seja o eu ou o mundo, agora se apresenta em duas vestes diferentes: na luz e na escuridão. A partir daí, destacada do que permanece, noite e dia começam a ser apreendidos.

É preciso que haja um núcleo que permaneça como referência para o que o diverso possa ser percebido. Esse núcleo, por sua vez, não pode ser apreendido.

Isso é dramático com relação ao tempo. Sua percepção primitiva se dá pelo contraste de cenários, noite e dia, em que se moviam o eu que se formava e o mundo que se construía.

Efeitos anatômicos da expansão cerebral

Abordei acima uma das consequências importantes da agregação das percepções de mundo ao centro de ressonância que começava a se formar: a requisição cada vez maior dos órgãos perceptivos. Passamos a usá-los com maior frequência. Há consequências anatômicas: as musculaturas dos órgãos perceptivos ganham volume e precisão.

Nos rituais, identificamos uma espécie de dança como efeito da influência da ação de coito na ação de luta. A circulação do excesso no circuito cérebro/musculatura deve ter provocado um efeito parecido nas ações humanas. Se pensamos no que apontamos para os órgãos perceptivos, podemos pensar em uma requisição cada vez maior dos braços e mãos em nossas ações. Agora, a musculatura que se atrofiou volta a se modificar, só que no lugar de massa muscular temos um ganho de movimentos finos, mais precisos, como a precisão dos órgãos perceptivos. Em outras palavras, ganhamos habilidade manuais.

Invertemos a causalidade de Darwin e as habilidade manuais são consequências de nossa expansão cerebral e não a causa delas.

Talvez você, leitor, esteja sentindo necessidade de uma ancoragem anatômica para o que estou apresentando aqui. Primeiro peço sua paciência: o tema que abordo, por ser multidisciplinar, exige, em paralelo, uma construção de leitor. Optei em apresentar a modelagem lógica como elemento de convencimento da solidez do modelo. Uma forma de tornar mais palatável o que é apresentado. A ideia é causar o efeito `Putz! isso explica muitas coisas!` antes de entrar nos detalhes. Torno transparente o método escolhido por uma questão de honestidade intelectual.

Podemos avançar, porém, em duas validações anatômicas de nosso modelo.

Sabemos que a expansão cerebral humana se deu com ganhos no seu córtex. Com efeito, o cérebro cinzento humano tem uma proporção muito maior que nas outras espécies. Podemos falar, inclusive, de cérebros brancos e cinzentos, como o humano. Pois bem, sabemos que o córtex tem o efeito modulador nos movimentos finos e que o cerebero é responsável pelos movimentos imediatos. Essa especialização anatômica está de acordo com a gênese da expansão cerebral que fizemos aqui.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

Mais impressionante, ainda, é o mapeamento das funções motoras, feita inicialmente pelo Dr. Wilder Penfield. Feita no decorrer da segunda guerra mundial com soldados feridos que precisavam de cirurgias cerebrais, estimulações cerebrais permitiram mapear áreas do córtex motor e associá-las aos movimentos musculares que desencadeavam. Impressiona as áreas ocupadas pelo controle dos braços, no principal as mãos. E, também, a boca e a língua. A consistência dessa imagem com a linha que venho desenvolvendo aqui me parece importante como elemento validador.

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

A deformação do homúnculo de Penfield, como ficou conhecido, representa de uma forma curiosa o que tento passar para você, leitor, sobre a construção do eu e do mundo. Essa distopia entre anatomia conforme a enxergamos e a gerada pelo mapeamento do córtex (a figura ao lado mostra esse efeito também na parte sensorial) gerou várias criações artísticas que se memerizaram.

CONCLUSÃO

Foi um longo processo de transformação: cerca de seis milhões de anos desde que descemos das árvores e se iniciou o processo de expansão de nosso cérebro. Ainda bem para nossos antepassados. Começar a construir eu e mundo em uma espécie de efeito especular não foi uma escolha consciente, mas a consequência da necessidade de se aventurarem enquanto bípedes pelas savanas.

Escrever em meu note esse texto, conectado a internet, ao mesmo tempo que acompanho as notícias da nascente indústria espacial, de inteligência artificial e da robótica, mostra que foi o caminho correto a tomar. O humano trocou a satisfação imediata de suas necessidades por uma construção paulatina de interpretação de mundo. Perdeu sua naturalidade com o mundo concreto. Passou a povoar ele com seus fantasmas e os de seus ancestrais. Teve que pagar na carne o preço por entender o que estava a sua volta.

Importante apontar como regras simples derivadas de nosso princípio de funcionamento neural foram capazes de nos fazer avançar rápido na solução de enigmas que já demandaram muita tinta e papel de muitos, muitos, pensadores e pesquisadores. Falo da construção da gênese dos rituais animais e do eu, do mundo e do tempo.

E você leitor, conseguiu de forma simples deduzir o ritual entre os bonobos? E a formação de bandos, cardumes, enxames e manadas? Imagino que sim!

Não foi fornecido texto alternativo para esta imagem

No próximo artigo, vamos prosseguir em direção a construção da linguagem e suas leis. Vamos enfrentar as questões da gênese e derivação da línguas. E entender, por fim, o que é a consciência e como ela se estrutura. Apresentarei a vocês minha hipótese da aspiração que explica o desaparecimento das demais linhagens de hominídeos. Aguardo pela sua companhia.

👏👏👏👏

👏👏👏

João Rafael Dalmolim

Advogado especializado em registro de marcas

1 a

👏👏👏

Matheus Brito

CEO na Brito Serviços Contábeis

1 a

👍👍👍

Ralf França

Sócio Especialista em Planejamento Tributário | Elisão Fiscal | Recuperação Tributária | Proteção Patrimonial, Sucessório e Holdings | Regimes Tributários

2 a

👏👏👏

Entre para ver ou adicionar um comentário

Outros artigos de Eduardo Sande

Outras pessoas também visualizaram

Conferir tópicos