Isso é muito Netflix!

Isso é muito Netflix!

Em junho, a famosa série “Black Mirror” estreou seu 6º ano (após muito tempo de hiato). Como a série é conhecida por chocar os espectadores com cenários de um futuro não tão distante onde é possível vislumbrar as piores previsões imagináveis sobre o uso da tecnologia, a expectativa para a nova temporada estava alta.

Porém, muita gente não gostou dos episódios inéditos, principalmente porque nem todos tratavam diretamente sobre tecnologia. Alguns traziam histórias sobre a problemática das relações humanas, não necessariamente num futuro científico.

Mas a gente quer trazer uma reflexão um pouco diferente, indo além do papo sobre a nova temporada ser boa ou ruim. Queremos falar de assuntos abordados em alguns episódios que têm tudo a ver com o que estamos vivendo no presente, no planeta Terra onde estamos, aqui e agora.

CUIDADO, A PARTIR DAQUI VOCÊ PODE TOMAR ALGUNS SPOILERS

O primeiro episódio, “Joan é Péssima”, é o mais emblemático quando consideramos problemáticas atuais: uso de dados e inteligência artificial.

Nele, a protagonista descobre que sua vida virou um seriado no streaming “Streamberry”, muitíssimo parecido com a Netflix que a gente já conhece. Essa série mostra, praticamente ao vivo, tudo o que acontece no dia de Joan, até mesmo momentos íntimos e alguns podres dessa pessoa até então anônima.

Acompanhamos o surto de Joan enquanto ela vê sua vida ser exposta e decide descobrir quem ou o que está por trás desse programa sobre sua vida. E o que ela descobre está separado da nossa realidade por uma linha muito tênue…

Para dar conta de transmitir a série sobre a vida de Joan quase ao mesmo tempo em que ela está sendo vivida, a Streamberry depende de duas coisas muito importantes: uso de dados e inteligência artificial.

Primeiro de tudo, a protagonista só está nessa situação porque concordou com os termos de uso da plataforma de streaming sem ler. Por causa disso, sem saber, ela autorizou o uso dos seus dados pela marca Streamberry. 

Deu um frio na barriga, né? Afinal, alguém hoje em dia lê os gigantes termos de uso de aplicativos e outros programas?

Já sabemos que muitas plataformas, sites, programas, aplicativos, lojas, (insira aqui o que quiser) usam nossos dados. Como você acha que aquela farmácia que você visitou fisicamente e depois mandou um cupom de desconto por e-mail indicando exatamente os produtos que você usa no dia-a-dia sabia de todas as suas preferências?

A vida de Joan é monitorada pelo seu próprio celular através da câmera e do microfone do aparelho. Como vivemos grudados nos smartphones até para ir ao banheiro, não foi muito difícil conseguir capturar cada segundo da vida dela.

E para dar conta de transmitir a série sobre a vida de Joan quase no mesmo momento em que ela está sendo vivida, a Streamberry conta com um poderoso computador quântico que usa a inteligência artificial para criar os episódios. 

Nada ali é filmado, nem mesmo os atores que interpretam os personagens da vida de Joan: tudo é criado pela IA de um supercomputador, no mais puro deepfake (técnica que usa a Inteligência Artificial para criar vídeos falsos, mas ultra realistas, imitando rostos, vozes e expressões faciais das pessoas escolhidas, ou até mesmo criando pessoas que não existem).

É impossível assistir ao episódio sem relacionar várias questões sobre a nossa realidade: já que a personagem principal aceitou os termos de uso, o uso de dados foi indevido ou não? A partir de qual momento um usuário está sujeito a qualquer coisa que queiram fazer com ele ou em seu nome?

A Netflix usa sua “gêmea do mal”, a Streamberry, para fazer uma crítica a si mesma e aos conteúdos sensacionalistas que expõem pessoas comuns. Uma executiva do streaming no episódio comenta que o seriado “Joan é Péssima” foi resultado de testes com públicos e temas diferentes, e foi apenas o formato que mostrava pessoas ruins que teve maior audiência. Afinal, assuntos negativos funcionam muito melhor que os positivos; vide o sucesso meteórico de séries documentais de crimes verdadeiros (também conhecidos como true crimes).

Essa metacrítica aparece ainda em outros dois episódios da sexta temporada de Black Mirror: em um deles, um casal de jovens cineastas tenta vender um documentário de true crime para a Streamberry, mas só consegue atenção do streaming após a tragédia se tornar pessoal. 

Afinal, um documentário sobre um crime ocorrido há muitos anos não tem nada de interessante, já que todos os streamings estão saturados desse tipo de programa. Mas, ao investigar mais a fundo, um dos jovens descobre que seus pais estavam diretamente envolvidos com os casos de tortura e morte. Como se não bastasse o choque da descoberta, sua namorada morre durante as investigações.

Agora que o drama é real, ele se torna comovente o suficiente para viralizar: o jovem que perdeu a namorada ao investigar um crime que seus pais cometeram. O documentário ganha prêmios e ele tem seus 15 minutos de fama, apesar de toda a tragédia em sua vida pessoal e as sequelas que esse trauma irá deixar.

Em outro capítulo, a questão do assédio dos paparazzi até as últimas consequências é explorada (trazendo algumas memórias para quem viveu a época da Lady Di e viu seu triste acidente provocado pela perseguição dos fotógrafos). Aqui, nenhum streaming específico é criticado, mas sim o fato da obsessão pela exposição exagerada da vida das celebridades, querendo elas ou não.

Mesmo após descobrirem a verdade terrível por trás do desaparecimento de uma atriz famosa, os paparazzi do episódio seguem atrás dela, à procura do clique perfeito que valeria milhares de dólares. A “caçada” continua até mesmo quando eles se tornam a caça, colocando suas vidas em risco e terminando a perseguição com o “clique de milhões” às custas de muitas mortes, inclusive a da artista.

Se a mídia não estimulasse tanto o consumo da vida pessoal de celebridades, fotos não valeriam tanto dinheiro e muitas tragédias poderiam ser evitadas. Estamos há anos afastados dos acontecimentos da Lady Di, mas essa perseguição acontece ainda nos dias de hoje.

O que mais te assusta no nosso presente distópico? Uso indevido de dados, inteligência artificial pensada para o mal ou a busca incessante pelo sensacionalismo e tragédia?

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