Júlia
Júlia da Silva-Brunhs Mann (1851 - 1923)

Júlia

Em 1851, a 30 km da Vila de Nossa Senhora dos Remédios de Paraty, em uma localidade chamada Graúna, Maria Luísa da Silva, uma paulista descendente de portugueses e índios, pede que a liteira, ou a rede, não se sabe ao certo, na qual escravos a transportavam, pare. Ela está em pleno trabalho de parto e as dores já não são suportáveis junto aos solavancos da caminhada no terreno íngreme. Johann Ludwig Herrman Bruhns, ou João Luiz Germano Bruhns, seu marido, um rico comerciante e fazendeiro alemão instalado no Brasil desde 1840 e conhecido como “seu Germano”, amigo de D. Pedro, caminhava à frente e parou a comitiva que tinha como objetivo visitar uma outra propriedade da família, acompanhando a retirada da esposa para a sombra de uma árvore. Ali, como descreveria posteriormente o neto de Bruhns, Viktor ou Vikko, entre cantos de pássaros, ruídos de macacos e do rumor do vento nas folhas das árvores, nasceu a quarta filha do casal, Júlia da Silva-Brunhs. Júlia, ou Dodô, como Anna, a escrava moçambicana responsável por seus cuidados, a apelidou desde muito cedo. Júlia viveu no que ela mesma descreveu em suas memórias “Da infância de Dodô” (Aus Dodos Kinderheit) escritas à mão em 1903, como paraíso tropical, brincando nas praias e florestas brasileiras, de pés descalços, no clima quente e agradável dos trópicos até os seis anos incompletos. Nessa época, sua mãe viria a falecer em decorrências de complicações de um derradeiro parto. Júlia lembra vivamente de acompanhar o féretro e da imagem de sua mãe, muito branca, no caixão, acompanhada do bebê que acabara de dar à luz e que também não resistira. Depois disso, seu pai decide levá-la, juntamente com seus irmãos, para serem educados em Lübeck, cidade ao norte da Alemanha, onde moravam sua avó e seu tio. É importante lembrar que Lübeck nessa época era quase como uma cidade independente dado que a Alemanha ainda não era unificada, coisa que só ocorreria oficialmente em 1871, e tinha forte influência nórdica. Uma cidade fria, escura, protestante, de cultura escandinava, totalmente diferente da vida que Júlia tinha até então. Conta-se que, ao chegar com seus filhos em Lübeck, Brunhs teve que dispersar, com assobios e declarações ríspidas, uma pequena multidão que seguia a família de “morenos” aos gritos e risadas. Júlia trajava um vestido amarelo e um chapéu panamá de tal forma exóticos ao local que o furor provocado causou constrangimento geral. Brunhs falava português em casa, diferentemente de outros imigrantes alemães no Brasil que mantinham a língua nativa em seus lares, consequentemente Júlia não falava uma palavra da língua paterna. Em Lübeck, apenas sua irmã Mana, falava sua língua. Júlia ficou inconsolável quando seu pai e Anna retornaram ao Brasil algumas semanas depois. Ela e a irmã, Mana, ficaram num colégio interno onde deveriam aprender a língua e a cultura alemãs além de tornarem-se protestantes. Até que dez anos depois, num casamento arranjado, ela contrai núpcias com o comerciante e depois senador e cônsul, Thomas Johann Heinrich Mann, doze anos mais velho que ela. Do casamento, nascem cinco crianças: Heinrich (1871), o mais velho, e Thomas (1875) são dois dos principais escritores alemães do século XX, duas filhas, Júlia (apelidada Lula - 1877) e Carla (1881), que se suicidaram ainda jovens. E o referido Viktor (1890), o mais novo. Paira sobre Vikko, a possibilidade de ter sido fruto de uma relação extra-conjugal de Júlia com seu professor de música, um jovem compositor e maestro polonês de origem nobre. Não se sabe ao certo, mas o fato é que Thomas Mann retratou esse evento no ciúmes de Thomas Buddenbrook ao ver sua esposa Gerda (também ela não-alemã), tendo lições de música com Von Thotha no seu romance de estreia Os Buddenbrooks. Lula Mann casou com um banqueiro mas era extremamente infeliz. Tinha talento para escrever segundo seus dois irmãos mais velhos, mas rendeu-se ao casamento conforme conta a biógrafa oficial da família Marianne Krüll. Teve vários relacionamentos extraconjugais e era considerada dependente de morfina. Após a morte do marido em 1922, ela empobreceu consideravelmente devido à inflação reinante na Alemanha pré-segunda guerra e acabou se enforcando em 1927. Há citações de Júlia Lula nos Buddenbrooks e no Dr. Fausto de Thomas. Carla era atriz, mas não fez sucesso. Para não ser mais dependente da família, decidiu se casar. Quando percebeu que seu cônjuge, Arthur Gibo, tinha relações extraconjugais, iniciou uma longa crise que culminou com sua depressão e suicídio aos 28 anos, ingerindo cianeto. Seu irmão mais velho, Heinrich Mann, tratou de seu destino numa peça e Thomas também no Dr Fausto. Viktor (Vikko) escreveu uma biografia bastante romantizada da família Mann chamada “Éramos Cinco” (em que não cita, por exemplo, o rompimento entre Heinrich e Thomas por questões políticas relativas à 1ª Guerra Mundial como veremos, entre outras omissões), trabalhou na Alemanha nazista, mas foi respeitado e querido pelos irmãos mais famosos. A irmã de Júlia, Mana, faleceu ainda jovem.

Quando Thomas Heinrich, o marido de Júlia, morreu de câncer de bexiga, ela tinha apenas 40 anos e era bastante bonita, segundo constam os registros biográficos. Além disso, tinha dons musicais e cantava e tocava piano muito bem. Há relatos de que tinha uma risada escandalosa e adorava festas e saraus, o que contribuiu em muito para as descrições de seus contemporâneos a respeito de sua beleza e sensualidade. Porém: “A musicalidade e a beleza atribuídas a Júlia Mann tinham, em sua época, um componente negativo que não podemos ignorar, qual seja, o estigma de uma sexualidade sem limites, desviante e ameaçadora para a ordem familiar burguesa”[1]. O casamento com Thomas Heinrich em junho de 1869 foi claramente de conveniência já que ambos haviam tido amores de juventude muito mais intensos, mas inaceitáveis em termos sociais. A noiva era considerada a mulher mais bonita da cidade na época, mas o fato de ser alguns centímetros mais alta do que o marido era visto por alguns como a prova de que não formavam o par ideal. Após a morte do marido, todavia houve uma mudança brusca no padrão de vida da família muito devido ao testamento que Thomas deixou, obrigando Júlia a vender a casa em Lübeck e a desfazer-se da empresa, apesar de garantir uma pensão bastante generosa, talvez pressentindo a fama ruim que a família tinha na cidade. Com isso, Júlia mudou-se com seus filhos para Munique em julho de 1893, cidade considerada mais liberal e propícia às artes, instalando-se em Schwabing, bairro dos artistas. Lá a viúva, que ainda preservara muito da beleza da juventude, passou a oferecer recepções concorridas entre os boêmios da capital bávara. Júlia participava embevecida dos bailes de carnaval e era tão ou mais cortejada do que as filhas em idade de se casar. Dizem que mesmo o marido de Lula cortejou, antes, sua genitora[2]. Toda a história dessas perdas e as reconfigurações que Júlia teve que fazer para terminar a educação de seus filhos estão na sua biografia “Da infância de Dodô” (Aus Dodos Kinderheit), sempre falando com saudades de sua infância e de seu país natal. Júlia foi bastante ligada às suas crianças, mas sempre se sentiu exilada. Nunca mais voltou ao Brasil até sua morte em 1923, aos 71 anos de idade. Júlia falava um alemão perfeito, com o sotaque nortista de Lübeck, mas Viktor descreve que, em seu leito de morte, suas últimas palavras soavam com o “R” puxado e a melodia de sua língua natal.

A vida de Júlia Mann teve recentemente seu interesse renovado devido a publicação em 2018 do livro Julia Mann, a Mãe de Heinrich e Thomas Mann: Uma Biografia, de Dagmar von Gersdorff que ainda não tem traduções para o inglês nem para o português. A doutora Veronika Fuechtner é professora associada de estudos germânicos na Dartmouth University e também professora adjunta do departamento de educação médica da Geisel School of Medicine e do departamento de literatura comparada na mesma instituição, é filha de pai alemão e mãe brasileira, nasceu no Rio de Janeiro e morou em Berlin quase toda sua vida. Fala português, inglês e alemão. Está escrevendo uma monografia sobre Júlia Mann que interroga o fato, para ela inusitado, de que seus filhos, Thomas e Heinrich são dois dos mais importantes e estudados autores alemães do século XX, suas duas filhas se suicidaram, e sua influência na história de vida e na formação das crianças em todos esses eventos é praticamente ignorada e totalmente inexplorada. A obra chamar-se-á The Magician’s Mother: A Story of Coffee, Race, and German Culture. No Brasil, há vários estudos sobre Júlia Mann. Os mais importantes para quem quiser se aprofundar na incrível vida dessa mulher extraordinária são Terra Matria. A Família de Thomas Mann e o Brasil de Karl J Kuschel & Paulo Soethe de 2013; Na Rede Dos Magos Uma Outra História Da Família Mann de Marianne Krull de 1997; Júlia Mann - Uma Vida Entre Duas Culturas, uma série de ensaios sobre a matriarca dos Mann organizado por Maria A. Strauss & Dieter Sene e, finalmente, o romance Anna em Veneza de João Silvério Trevisan, ficção bibliográfica sobre sua vida. Recentemente, a premiada escritora portuguesa Teolinda Gersão, publicou O Regresso de Júlia Mann a Paraty (2021), ficção em que a autora combina três contos: uma carta de Freud a Thomas Mann, uma de Mann a Freud e, no último, acompanhamos a derradeira viagem de Júlia Mann que se imagina cair no rio Trave e ser arrastada para Atlântico até chegar ao Brasil, enquanto recordações minuciosas de sua vida são rememoradas. Há também o trabalho de Richard Miskolci no artigo Uma brasileira - A outra história de Julia Mann nos Cadernos Pagu. Unicamp; 2003 e no livro Thomas Mann, o artista mestiço.

Thomas Mann evitava falar de suas origens brasileiras, diferente de seu irmão Heinrich, e quando o fazia, mencionava  uma certa “latinidade” trazida pela mãe e herdada por ele e seus irmãos. O livro de Júlia, apesar de ter sido escrito em 1903, só foi publicado em 1958 por inúmeros obstáculos colocados pelo seu mais famoso filho. Para encerrar essa seção sobre Júlia Mann, deixo uma citação de Anatol Rosenfeld no ensaio Thomas Mann ao qual ainda voltaremos mais tarde. Diz Rosenfeld, por volta de 1943: “A separação parece ser a condição do homem que tem uma missão espiritual a cumprir, embora não seja necessário levar isso ao ponto de ir ao deserto ou ao convento, como faziam os profetas e fazem os monges. (...) Muito cedo Thomas Mann se convenceu de sua missão de escritor e artista. Tendo a clara intuição de sua situação anormal de artista dentro da sociedade burguesa, teve a sua sensibilidade para esse fato enormemente aguçada pela anormalidade de sua ascendência entre as famílias tradicionais de sua cidade natal. Assim, o mero fato anedótico de sua ascendência parcial de brasileiro influenciou poderosamente toda a sua obra e a apresentação do seu retrato aqui se reveste de um valor muito mais profundo do que de início poderia parecer”[3]. Voltaremos a esse ensaio seminal, mas o importante é ressaltar aqui que a tese que a professora Veronika Fuechtner gostaria de demonstrar é, já há muito tempo, dada como certa por escolares brasileiros.

Esquerda: Julia Mann (c.1875). Direita: Julia e Heinrich.

Notas

[1] Miskolci R. A brazilian woman: the other history of Julia Mann. Cadernos Pagu. Núcleo de Estudos de Gênero - Pagu/Unicamp; 2003;(20):157–76.

[2] Idem.

[3] Rosenfeld, A. Thomas Mann in Thomas Mann. Série Debates - Crítica. Edusp, Editora da Unicamp, Editora Perspectiva. Pgs 20-21. 1994.

Ellen Hardy 🌿

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