Lágrimas que correm pelo meu rosto
Acordei quando senti as gotas a caírem pelo meu rosto. Será que é chuva ou será que são lágrimas? Olhei para o céu, e nem uma única nuvem negra, carregada para explodir sobre os grandes edifícios e sobre as pessoas que circulavam nas ruas.Percebi que eram realmente lágrimas que escorriam pelo meu rosto de tristeza, escorriam como se usassem o meu rosto um escorrega.Escorriam alegres...alegres? Porquê? Se quando choro é de tristeza...mas coitadinhas estiveram á tanto tempo presas dentro dos meus olhos, quando as libertei ficaram contentes. Até as lágrimas são felizes.Percorro as ruas, há procura de comida. Peço aqui, peço ali, peço... Transformei-me num «pedinte andante», um pedinte que só quer comer uma vez por dia, pois não tem mais por onde buscar.Que vida levo agora! Mas se recuar, até fui feliz em tempos...
Cresci numa casa feliz, onde a educação e a transmissão de valores eram essenciais, para que eu e os meus irmãos...sim irmãos. Tenho dois irmãos (a Sara e o Pedro). Éramos felizes. Brincávamos e brigávamos, mas no meio destas tempestades todas éramos unidos.Fizemos os três a faculdade: A Sara tirou o curso de superior de Professora de 1.º Ciclo, dizia ela que adorava crianças e que adorava ensinar-lhes a ler e a escrever; o Pedro tirou o curso de Desporto, amante do ar livre e de desportos radicais; e, eu (Tiago) andava a tirar o curso de gestão, pois adorava dinheiro e tudo que envolvesse a economia. Éramos os filhos que qualquer família gostaria de ter.
A Sara e o Pedro foram os primeiros a casar e a dar netinhos (como o meu pai os chamava). Eu gostava mais da vida boémia, de sair com os amigos até ás tantas, de saltar de rapariga em rapariga.
Mas o destino pregou-me uma partida.Apaixonei-me perdidamente por uma rapariga no meu último ano da faculdade. Em plena serenata, reparei numa linda morena. Meti conversa com ela, finalista de Enfermagem, seu nome Maria. Conversa aqui conversa ali, começamos a dar-nos conta que tínhamos muita coisa em comum. Quanto mais falava com ela, mais deslumbrado ficava. Tinha os olhos de cor de amêndoa, o cabelo cor de alcatrão e a sua boca cor de cereja. Acabamos o curso e namoramos três anos até ao dia no nosso casamento. Sim, casamento. O rapaz das noitadas, pediu em casamento a mulher da sua vida e casou com ela, num dia lindo de verão. Foi o começo de uma nova vida e de uma nova etapa a dois.
Nos primeiros anos tudo corria maravilhosamente bem. Depois com a ganância de ter uma vida de rico, aceitei fazer parte de uma empresa de investimento. Não tinha horários, nem fins de semana. A minha vida era só trabalho, trabalho e esquecia-me da minha vida pessoal. Passei horas e dias sem dormir. Era desgastante.
Nasce o meu primeiro filho: Miguel. Lindo, perfeito, um ser inocente, mas maravilhoso. Prometi à Maria que iria passar mais tempo em casa para acompanhar o crescimento do Miguel. Mas foi o contrário...passava menos tempo em casa, e quando estava em casa discutíamos, e eu respondia que tinha de ganhar mais dinheiro porque a família tinha aumentado. Maria olhava para mim com tristeza e calava-se.
Nasce o meu segundo filho, neste caso filha: Madalena. Outro ser lindo, perfeito, maravilhoso e único. Mais uma promessa, mais um incumprimento.
As exigências no emprego cada vez eram maiores, tinha de cumprir objetivos, nem que tivesse de ficar a dormir no trabalho. Comecei a perder clientes que investiram e começaram a ver o seu dinheiro a desaparecer. A economia cada vez estava pior e não sabíamos como havíamos de ultrapassar, sem que perdêssemos o dinheiro dos mesmos. O meu chefe não estava nada contente com os resultados, pois a empresa estava a perder clientes e credibilidade. Mas que culpa tinha eu, se a economia estava em queda? Tinha e muita, segundo o meu chefe.
Comecei a pensar que tinha uma esposa e dois filhos para cuidar e se perdesse aquele emprego como haveria de continuar a sustentar a família. Nada, mas nada surgia. E cada vez menos ia a casa e cada vez mais perdia clientes.O dia que marcou a minha vida e me transformou no que sou hoje, foi quando Maria fez me um ultimato: ou ela ou o emprego. Tinha de ter os dois. Não havia hipótese de escolha, ambos eram necessários faziam parte da minha vida. Maria disse-me: «És bom no que fazes, podes encontrar outro emprego». Mas eu não queria outro emprego, queria aquele. Queria a ela e os meus filhos. Queria a família. Queria tudo.Os meus pais e os meus irmãos sempre me avisavam: «Tem cuidado Tiago, um dia vais perder a tua família e o teu emprego se achares que o mais importante és só tu e mais tu. Quem tudo ganha tudo perde». Agora percebo o que queriam dizer.
Maria pede o divórcio, com aquele olhar triste e de certo que ainda me amava, mas já não conseguia viver com uma pessoa «egoísta, só pensas em ti e esqueceste que na tua vida também somos nós: eu e os teus filhos fazemos parte dela» (palavras de Maria).O meu chefe despede-me alegando: «Diminuição de despesas e de pessoal devido à crise económica que se verificava no mundo». Boa argumentação.
Nesse dia, não tive coragem de voltar a casa. Tinha perdido a família e o emprego. Como haveria de suportar as despesas, a vida que se tinha, o divórcio? Não sabia. Vaguei pelas ruas horas e horas, sem destino, sem rumo. Parei num bar e bebi até cair. Sempre ouvi dizer que beber não mata mas faz com que se esqueça. Acordei e só me lembro de estar sem carteira, a sangrar e com a cara dorida. Não me lembrava de nada e nem onde estava. Como se alguém me tivesse apagado a memória e de todas as recordações que tinha. Ou talvez fosse eu que quisesse que fossem apagadas.
Agora aqui estou na rua, a mendigar. Sim, um sem-abrigo. Mais um nas ruas, mais um nas estatísticas, que todas as noites procura um abrigo para dormir, mais um que pede para comer, mais um que é ignorado e desprezado, mais um e mais um. Um nada... Que tem vergonha de voltar a casa pelo seu insucesso e pelos seus erros. Como eu também, há muitos colegas que andam a vaguear pelas ruas á procura de força para voltar ás origens. Eu sou uma das poucas estórias, existem outras muito mais difíceis e com maiores dramas.Eu sou um simples homem, eu sou um sem-abrigo que está a pagar por ter perdido o que mais valioso que um homem poderá ter: a Família. Talvez um dia ganhe coragem e volte. Talvez um dia me aceitem. Talvez um dia eu nem seja eu...Acordei quando senti as gotas a caírem pelo meu rosto. Será que é chuva ou será que são lágrimas? São lágrimas, lágrimas que escorrem pelo meu rosto...um dia...espero um dia...por uma resposta!
Ass. Sónia Gonçalves
24/09/2015