Lei que estabelece revisão anual da Tabela do SUS é sancionada: o que muda para os hospitais conveniados?

Lei que estabelece revisão anual da Tabela do SUS é sancionada: o que muda para os hospitais conveniados?

A Tabela SUS, como se sabe, é utilizada para o cálculo da remuneração devida aos hospitais e demais parceiros privados que atuam em complementação ao Estado na prestação de serviço de assistência à saúde, conforme estabelecem os artigos 24 da Lei 8.080/90 e 199, § 1º, da CF/88¹.

No entanto, a defasagem da referida tabela é pública e notória. O sucateamento da remuneração dos hospitais privados conveniados, principalmente os filantrópicos (que compõe a maioria desses nosocômios e são os que mais necessitam da verba) já vem sido alertado há muitos anos, quiçá décadas.

Apenas para se ter uma singela amostra dessa realidade, o Conselho Federal de Medicina, em novembro de 2022, veiculou notícia informando que nos procedimentos de “parto normal” a equipe envolvida no atendimento (médicos e enfermeiros) recebia em 2012, para cada Autorização de Internação Hospitalar (AIH) aprovada, o valor de R$ 175,80 (cento e setenta e cinco reais e oitenta centavos). O valor continuava exatamente o mesmo, dez anos depois, na data em que publicada a reportagem.

Em 2019, em audiência pública realizada pelo “Grupo de Trabalho Tabela do SUS” na Câmara dos Deputados, as defensoras públicas ouvidas atestaram a urgência de atualização da tabela, exemplificando a extrema discrepância entre o valor da diária de UTI paga pelo SUS, que é de apenas R$ 1.000,00, para o valor usualmente pago pelas operadoras privadas aos Hospitais, que fica em torno de R$ 10.000,00.

Foi diante desse contexto, que no dia 16 de janeiro passado entrou em vigor a Lei Federal nº. 14.820, oriunda do Projeto de Lei nº. 1.435/2022, de autoria do Dep. Antonio Brito (PSD/BA). A legislação, de forma suscinta e objetiva, acrescentou apenas um parágrafo ao art. 26, da Lei Federal nº. 8.080/1990, estabelecendo agora uma revisão periódica (anual) dos valores de remuneração dos serviços prestados ao Sistema Único de Saúde – SUS.

Com a vigência da nova lei, a cada mês de dezembro, a partir do presente ano, a Direção Nacional do SUS, após aprovação do Conselho Nacional de Saúde, definirá os valores dos procedimentos. Tal fato, todavia, não implicará necessariamente, ao menos conforme prevê o texto legal, na correção ou reajuste automático de valores. Vejamos o que diz o comando normativo sancionado:

“ § 5º Os valores a que se refere o caput deste artigo, para o conjunto das remunerações dos serviços de saúde, serão definidos no mês de dezembro de cada ano, por meio de ato do Ministério da Saúde, devendo-se buscar a garantia da qualidade do atendimento, o equilíbrio econômico-financeiro na prestação dos serviços e a preservação do valor real destinado à remuneração de serviços, observada a disponibilidade orçamentária e financeira.” (grifos nossos)

Chama a atenção acima o singelo trecho no qual, após toda a orientação dada, “buscando a garantia de qualidade do atendimento”, é feita a ressalva: “observada a disponibilidade orçamentária e financeira”.

Ora, de que forma será feita essa verificação da disponibilidade orçamentária e financeira? O que servirá de justificativa para eventuais limitações dos reajustes? Quais critérios específicos serão utilizados pelo Ministério da Saúde? O dispositivo de lei não esclarece tais pontos...

Não se questiona o fato de que a União, a partir do presente momento, busca dar uma solução ao déficit orçamentário dos hospitais privados, a maioria deles filantrópicos, que prestam serviço complementar ao SUS. Entretanto, a iniciativa ainda carece de bastante objetividade e parâmetros específicos.

Quando estava em seu estágio embrionário, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei atrelava a correção de valores ao IPCA (IBGE). Contudo, quando a discussão chegou ao Senado Federal em dezembro/2023, o Senador Jaques Wagner (PT/BA), Líder do Governo, com o argumento de “evitar um veto indesejado do Sr. Presidente da República”, apresentou uma emenda para retirar essa vinculação a um índice de remuneração, pois haveria um impedimento pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

Assim, ao final, aprovou-se o projeto de lei sem que houvesse um marco claro e preciso em como será calculado esse reajuste de valores dos procedimentos. Isto é, tudo agora vai depender do “orçamento da União” e da boa vontade do Conselho Nacional de Saúde. Para não dizer que não há vantagem, o único ponto positivo é que o Ministério da Saúde estará obrigado a discutir esse tema anualmente; porém, se haverá reajuste ou não, só o “orçamento da União” irá nos dizer.

De toda sorte, a pressão política irá recair agora em cima da Direção Nacional do SUS e do Conselho Nacional de Saúde. Abriu-se, assim, um espaço para interlocução entre o Governo Federal e as entidades hospitalares.

Não se pode deixar de louvar a referida iniciativa da Lei em comento. Inegável que se trata de um primeiro passo para a correção das distorções no subfinanciamento do sistema público de saúde. Por outro lado, não se pode deixar de lado o fato de que a revisão anual, conforme prevista, não garante nem vincula, efetivamente, o reajuste dos valores almejados, haja vista o espaço “em branco” na lei para que a correção não ocorra conforme esperado.

Por fim, em relação aos inúmeros hospitais que ajuizaram ação contra a União a fim de obterem a revisão judicial da Tabela SUS, estes não precisam se preocupar. Primeiro, pois a ação judicial engloba a prescrição quinquenal, garantindo a revisão de valores desde os últimos cinco anos a contar da data de ajuizamento da ação – quantia bastante expressiva para cada um dos hospitais. E, em segundo lugar, pois o pedido principal das ações é a equiparação de valores com aqueles praticados pela ANS – situação na qual as operadoras de planos de saúde reembolsam os hospitais públicos e privados em quantias bem superiores.

O único desfecho, portanto, que se deve esperar em dezembro de 2024 é que o Ministério da Saúde, por meio da Direção Nacional do SUS, equipare a Tabela do SUS no mínimo com aqueles valores já praticados pela ANS, nos termos do art. 32, da Lei Federal nº. 9.656/1998². Caso contrário, a intervenção do Judiciário continuará sendo necessária e restará comprovado que a lei sancionada não passou de mais um caso de “boa intenção”.


Martim Francisco Ribeiro de Andrada , advogado, graduado pela Universidade de Brasília (UnB), com mestrado na área de Direito Constitucional, pelo Instituto Brasiliense de Direto Público (IDP). Com experiência nos Tribunais Superiores, atua no Contencioso Cível, Trabalhista e Relações Governamentais. Atuou em gabinete de ministro do Superior Tribunal de Justiça, com ênfase em direito público e administrativo.


Notas de Referência:

¹ Lei 8.080/90 - Art. 24. Quando as suas disponibilidades forem insuficientes para garantir a cobertura assistencial à população de uma determinada área, o Sistema Único de Saúde (SUS) poderá recorrer aos serviços ofertados pela iniciativa privada.

Parágrafo único. A participação complementar dos serviços privados será formalizada mediante contrato ou convênio, observadas, a respeito, as normas de direito público.

CF/88 – Art. 199. A assistência à saúde é livre à iniciativa privada.

§ 1º - As instituições privadas poderão participar de forma complementar do sistema único de saúde, segundo diretrizes deste, mediante contrato de direito público ou convênio, tendo preferência as entidades filantrópicas e as sem fins lucrativos.


² Lei 9.656/1980 – Art. 32.  Serão ressarcidos pelas operadoras dos produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, de acordo com normas a serem definidas pela ANS, os serviços de atendimento à saúde previstos nos respectivos contratos, prestados a seus consumidores e respectivos dependentes, em instituições públicas ou privadas, conveniadas ou contratadas, integrantes do Sistema Único de Saúde - SUS. 

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