Literatura Fantástica em análise: "The Door", Fernando Pessoa
A vida é um sonho. É uma criação da imaginação da própria natureza humana. Tudo o que o homem vê, é fruto da sua razão, do desejo. Um mero objeto não é real sem provocar uma emoção que dará razão à sua realidade, e o sonho de um homem mais sonhador do que o normal, não é significado de loucura. É um sinal de evolução do ser humano.
Literatura Fantástica
Elementos sobrenaturais integravam histórias contadas pelos povos primitivos em rituais religiosos antes de existir a escrita. Estas transformaram-se em lendas e quando a escrita nasceu, tornaram-se criações sagradas. Mais tarde, este género literário cresceu com obras de Goethe, Homero, Shakespeare, entre muitos outros.
A narrativa fantástica apresenta o homem no seu quotidiano que é confrontado com ocorrências inexplicáveis. O leitor será sempre interrompido pela questão-conflito entre o real e o possível. Na Idade Média, a igreja contribuiu para o clima propício do sobrenatural com a caça a bruxas e demónios - devido à influência mitológica. Elementos como castelos e florestas negras onde estariam monstros, dragões e vampiros, criaram o ambiente ideal para as história de horror, maioritariamente em locais na Europa. Assim, define-se a literatura fantástica como a literatura provocadora de medo, sendo que:
"(...) a emoção mais forte e mais antiga do homem é o medo, e a espécie mais forte e mais antiga de medo é o medo do desconhecido." (Lovecraft, 1987, p. 10).
Escritores americanos como Edgar Allan Poe e Nataniel Hawthorne e escritores britânicos tais como, Oscar Wilde e Rudyard Klipling, continuaram a dar vida ao mundo do fantástico nas suas obras. Como um género literário, o fantástico teve início no século XVIII, tornando-se popular devido a mudanças na maneira de pensar e mentalidade das pessoas entre os séculos 18 e 19, que hoje em dia seriam do senso comum. O fantástico adota também grande importância na poesia, como por exemplo o clássico da poesia sobrenatural "Fausto", de Goethe.
Por um lado, este estilo transporta o leitor para um mundo que lhe é familiar, atormentando-o com o efeito da surpresa e medo que é perceptível fisicamente, isto é, a atmosfera criada é o elemento causador das emoções. Assim, o leitor pode vir a acreditar na realidade do inexplicável. A pergunta que se aplica a este género é: Estamos perante realidade ou sonho? Verdade ou ilusão? Todorov afirma que "o fantástico ocupa o tempo desta incerteza" (1981, p. 15).
Nas obras referidas, é possível identificar pelo menos uma passagem de uma fronteira, relacionada com um objeto, pois é essencial para o desenrolar da história. As passagens são exemplo do transporte da personagem para outro universo ou para um estado de "loucura".
The Door e a relação entre genialidade e loucura
O conto The Door foi escrito por Fernando Pessoa em língua inglesa entre março de 1906 e outubro de 1907. Pertence a um conjunto de produções ficcionais reunido numa edição, "A Porta e Outras Ficções", que vem continuar o trabalho de recolha e divulgação de escrituras de Pessoa. Neste volume, quatro dos contos pertencem a uma fase inicial da sua vida criativa, nomeadamente os anos de 1906 e 1907. A influência de Edgar Allan Poe é visível na prevalência de horror e perversidade nas personagens tanto em The Door como em "A Very Original Dinner", "Czaresko" e "The Eyes or Le Théatre Ximéra".
The Door centra-se no tema de reflexão sobre a relação entre o génio e a loucura, que, por sua vez, é uma caraterística comum na literatura fantástica. Pessoa, utilizou o seu heterónimo Alexander Search (como 'habitante do inferno') e a sua preocupação com o mundo do oculto (revelada nos poemas de Alexander Search) para tornar a história verdadeiramente fantástica e misteriosa.
Importantes conceções sobre a loucura produzidas por escritores, filósofos e médicos até ao século XX, como Voltaire, Freud e Nordau, refletem a popularidade do tema que acaba por influenciar Pessoa na suas criações nessa época. Além disso, a expansão da sociedade burguesa e os valores normais de conservadorismo, criam, de certa forma, o conceito de loucura. O narrador, pelo contrário, refere-se a si mesmo como um homem culto, na tentativa de normalizar a figura de génio como alguém que vê mais além do que outros. Distraindo o leitor com uma racionalização da loucura, o narrador constrói uma imagem alegórica inicial incerta e questionável para o leitor.
A consideração da genialidade do narrador como um ser divino e de elevado conhecimento, adverte para uma interpretação dessa aptidão como a de um deus. Todavia, não consegue justificar a causa e efeito da sua suposta "loucura" e mal-estar. Vê em si o espelho do universo 'não-finito' e dotado de imortalidade que o atormenta e consome, pois significa que continuará preso e limitado aos ciclos eternos de repetição da vida: como expõe Friedrich Nietzsche com 'o mito do eterno retorno' ("A Gaia Ciência", 1882, 'Livro IV', p. 161-205). O mito surge pela primeira vez no primeiro capítulo do livro bíblico de Eclesiastes que remete à passagem do tempo. Esse espelho reflete a sua identidade que vive em inúmeras realidades no cosmos vasto da sua imaginação e criação.
Num misto de mistério, simbolismo e medo, é a ação de racionalização do inexplicável que, esperançosamente, libertará a sua alma. O medo da eternidade nas várias realidades e o medo do desconhecido, são a principal fonte da sua angústia, loucura e conflito. Cabe ao narrador racionalizar o seu inconsciente e distinguir ficção de não-ficção num mundo imaginário e simbólico.
Estrutura do conto
The Door está dividido em duas partes: a introdução (discurso argumentativo sobre a loucura e a normalidade, pontuado por perguntas retóricas) e um relato de paranóia ou monomania do narrador-personagem (ação de pontapear uma porta com a perna direita). Esse ato inicia a procura de uma explicação racional, por parte do narrador, como sujeito da ação e também como sujeito que observa essa mesma ação. Ao longo da obra, o decorrer dos factos é sempre apresentado de uma forma ambígua. Cria no leitor um estado de incompreensão e confusão em momentos de grande irracionalidade, mais precisamente, quando cada ideia apresentada parece não ser inteiramente compreendida ou explicada pelo próprio narrador. Para além disso, o conto não tem uma conclusão, mas sim um ciclo eterno de introspeção e racionalização, com o propósito de encontrar uma finalidade. Prevalece a ambiguidade tanto nos acontecimentos e na história, como no narrador e a sua existência. A história decorre nas diferentes fases etárias da vida do narrador e a sua debilidade física vai acrescendo devido ao seu estado mental.
Simbolismo da porta
O narrador demonstra uma atração por uma porta de uma maneira perversa e louca. A sua essência atrai-o e, por isso, a porta possui um papel fundamental na história devido à sua influência no narrador. Todos os acontecimentos nela se centralizam e determinam o desenvolvimento da história. Apresenta uma caraterística simbólica do fantástico, nomeadamente, as portas-passagens. Significa que esta porta é vista como uma passagem para outro universo, onde só quem pensa e vive divergentemente, é quem pode verdadeiramente entrar.
Na obra "O Lobo das Estepes" de Hermann Hesse, a personagem Harry Haller descobre um teatro surreal onde só os loucos podem entrar - o "Teatro Mágico - Só Para Loucos" (Hesse, 2002, p. 170). Harry vai descobrir as suas várias personalidades através de espelhos, símbolo de portas-passagens. O seu 'eu' é múltiplo, o que demonstra as várias faces de um único ser - “uma multiplicidade de alma” (Hesse, 2002 p. 66). Em The Door, o narrador descreve a porta como sendo "uma pessoa" (Pessoa, 2017 p. 46) com emoções e personalidade, temendo o que poderia algo material de terrível fazer. Por estas razões, começa a ficar doente e pensa que a morte está diante dele, levando-o a afastar-se do Castelo onde reside. Esse período de tempo está possivelmente relacionado com "The Fall of the House of Usher" de Poe (1839), pelo fator de desmoronamento e esquecimento, que no caso do Castelo foi somente temporário. Assim, as portas-passagens conduzem o leitor à re-descoberta da realidade em que vive, através da literatura que recria essa realidade como a reflexão de um espelho.
Tema da psiquiatria
The Door encaixa-se no subtema da psiquiatria e psicanálise, do estilo literário do fantástico, por várias razões. Primeiramente, o leitor questiona a sobriedade do autor: sendo alguém com possíveis problemas de alcoolismo, drogas ou até doenças psíquicas, histeria, que levam a sonhos, alucinações e confusão da realidade. Não obstante, é a constante reflexão realizada pelo narrador durante todo o conto, numa racionalização extrema, que o possui e enfraquece cada vez mais com o passar do tempo.
Ao entender a teoria da personalidade de Sigmund Freud sobre o inconsciente, é possível obter uma análise mais aprofundada dos estados emocionais e ações do narrador. Freud compara o cérebro humano a um iceberg que possui duas metades. Uma, está fora de água e o olho humano consegue captar logo (o consciente), e a outra metade, muito mais extensa, encontra-se debaixo de água e não é captada (o inconsciente). Segundo Freud, a maior parte da consciência é inconsciente, e é através do inconsciente que se determina a personalidade, pulsões e instintos de um indivíduo. O psiquiatra referiu-se aos instintos como necessidades ou desejos. São forças propulsoras que incitam as pessoas à ação.
Tendo isto em consideração, no conto existe um componente de pressão e um objeto, que são facilmente identificáveis, mas o narrador não encontra explicação nem para a fonte, nem a finalidade de tal ato. Portanto, é o inconsciente do narrador que determina as ações, não permitindo que essas decisões inconscientes sejam consciencializadas. Tal fascínio pela porta era uma atração quase sexual, gratificante e perversa para com o objeto, e o pontapear era uma forma agressiva ou destrutiva de libertação do seu estado de espírito.
No decorrer do conto, observa-se um perda de identidade e auto-estima que causa a ansiedade e faz com que o narrador negue a sua própria situação, tentando racionalizar o irracional como mecanismo de defesa. A porta torna-se num símbolo quase religioso. Teme-o e não o confrontaria.
Hesitação entre a realidade e a ficção
O leitor questiona várias vezes a veracidade dos acontecimentos relatados pelo narrador, como por exemplo na passagem da ocorrência mais sobrenatural da história: quando o narrador decide desafiar o seu instinto inexplicável e pontapear a porta com o seu pé esquerdo (em vez do pé direito). A porta abriu-se, e dentro da sala estava a sua mulher e o seu filho numa cama, sendo que depois "(...)o chão começou a tremer. (...) a parede sobre a cama desmoronou-se, (...) relâmpago repentino, (...) as paredes ruíram (...) sobre a cama e partiram-na" (Pessoa, 2017, p. 61-63). Tal coisa assombrosa esmagara o corpo do seu filho que se reduziu a pó. Nesta passagem é importante refletir se o narrador de facto sonha e alucina, ou se realmente o acontecimento aterrorizante ocorre. O narrador mostra hesitação quando aborda o elemento da queda das paredes "que nunca ruíram realmente", nomeadamente, "a sua queda e não-queda" (Pessoa, 2017, p. 61-63) Para além disso, a maneira como o narrador descreve as paredes a cair lentamente como se fossem "sugadas" por uma força maior que as atrai, relaciona-se, possivelmente, ao conto "A Descent into the Maelström" (1841) de Poe . Neste caso o Maelström é também uma passagem (Vortex): um turbilhão que consiste no movimento rápido da água em forma de redemoinho gerado no exato encontro de correntes de duas marés, onde os navios afundavam e desapareciam.
O realismo dos objetos torna o seu lado sobrenatural, medonho. Por isso, o narrador questionou-se: "o que era a alma da porta? O que era a porta? De que forma era misteriosa?" (Pessoa, 2017, p. 47); ele não tem palavras para descrever o que vê e explora a dúvida da sua realidade. Este medo da porta é "como o medo de Deus nos muitos religiosos" (Pessoa, 2017, p. 49). Possui um caráter pessoal podendo ser efetivamente Deus ou até o diabo.
Por outro lado, está preso naquele estado mental, naquele universo, na sua "louca superstição" com um medo intenso do infinito. Ele alucina, passa da realidade para o sonho, e o que representa essa passagem é um objeto, a porta. A porta significa, pois, o seu limite de existência, especialmente quando está fechada, e através dela passará para outro universo de salvação e vida eterna. Mesmo que passe a porta ele será sempre imortal, isto é, viverá para sempre com o seu espírito e nunca sairá desse ciclo. De igual forma que um Deus é infinito e imortal. Consequentemente, o narrador teme o infinito pelo seu caráter misterioso e por existir mais de um universo, nos quais ele vive multiplicado. Este pensamento alimenta a sua depressão e torna-o ainda mais louco. Julgando pelas referências ao seu passado e infância, possíveis eventos traumatizantes dos quais ele não se recorda (pois o cérebro humano elimina-os naturalmente), vivem no seu inconsciente e observam-se nos seus instintos, ações e desejos.
Apesar da procura de uma explicação racional, o narrador afirma com clareza que está consciente do ato de pontapear e do seu desequilíbrio mental que, por sua vez, também não tem uma razão nem prova de o ser. Aceita a sua identidade e não a questiona mais. Na sua perspetiva, é completamente normal a sua loucura e os acontecimentos na sua vida. Todavia, outra perspetiva terá o leitor quanto à sua realidade.
"Assim como a loucura num sentido elevado é o princípio de toda a sabedoria, assim também a esquizofrenia é o princípio de toda a arte, de toda a imaginação" (Hesse, 2002, p. 200).
É definitivamente loucura, mas "a mais rara e pior loucura que pode existir" (Pessoa, 2017, p. 75).
.................................................................................................................................
Breve reflexão final
Conclui-se que a predominância da incerteza conduz a diálogos de reflexão elucidativos e reais. Todos os seus elementos favorecem a temática e captam a atenção do leitor, além de fazerem com que ele participe na história como espetador, crítico. Nos momentos de hesitação entre a realidade e a ficção é onde encontramos o elemento exato da literatura fantástica. Cria ilusão com elementos físicos e normais, atribuindo-lhes o sobrenatural e o estranho de diversas maneiras. No que diz respeito à porta, a sua essência é igual a todas as outras portas mas, por alguma razão inexplicável, é sobrenatural, anormal e estranha, tal como o narrador. Na sua perspetiva, a porta também enlouqueceu e isso é perfeitamente normal, pois os objetos têm o seu próprio espírito e personalidade. São como os humanos.
A literatura fantástica é a chave para o conhecimento do ser humano porque procura explicar o seu quotidiano, explorando diferentes narrativas com intenção de encontrar um equilíbrio estável para a passagem da vida e o que haverá para além dela.
Bibliografia
Pessoa, Fernando (2017) “A Porta e Outras Ficções”: título do volume que integra um conjunto de obras transcritas e traduzidas de Fernando Pessoa. Assírio & Alvim, Porto Editora, 1a ed. 288 páginas. Edição e tradução de Ana Maria Freitas.
Hesse, Hermann (1955) “Der Steppenwolf”. Montagnola. Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main. Publicação da obra em língua portuguesa: (2002)“O Lobo das Estepes” p. 9-224.DIFEL 82-Difusão Editorial, S.A. Traduzido por Sara Seruya.
Lovecraft, H. P. (1987) “O Horror Sobrenatural na Literatura Fantástica”. Livraria Francisco Alves Editora S.A., Rio de Janeiro. Tradução de João Linke. Título original: (1973) “Supernatural Horror in Literature”. Dover Publications, Inc. New York.
Freud, Sigmund (1919) “O Estranho”. Ensaio completo. Rio de Janeiro: (1969). Imago, v.17, p. 233-270 (Edição Brasileira).
Tzvetan, Todorov (1970) “Introduction à la Littératur Fantastique”. Versão original em francês: Paris, Editions du Seuil, 192 páginas. Versão brasileira distribuída por Digital Source a partir da edição em espanhol. PREMIA editora de livros S.A. México.
Nietzsche, Friedrich (1996) “A Gaia Ciência”, ‘Livro IV’, p.161-205. Guimarães Editores. Título original (1882) “Die fröhliche Wissenschaft”.