Mídia Educação como estratégia de formação para a cidadania
Escolhi essa foto do casamento de meus pais, que eu adoro, para começar esse texto. Eles são brasileiros do interior do estado de São Paulo, onde eu também nasci. A família de meu pais mergulha suas raízes pelo mais profundo Brasil, se formando num caldeirão de misturas incontáveis. Já a árvore genealógica de minha mãe estende os braços em direção à Europa, de onde trouxe o seu Bellucci e o perdeu pelas mãos dos oficiais de cartório dos rincões brasileiros, em se desdobrou em Beluti, Bellutti, Beluci, Bellucci... e mais um sem-fim de derivações. Eles se casaram no pós-guerra, um tempo de esperanças para o mundo e o Brasil, uma geração pré Bossa Nova, com a pressa de Juscelino Kubitschek e os ares norteamericanistas que renderam ao meu irmão um Helder e a mim um Junior. Nomes modernos como o tempo exigia.
Eles nasceram e viveram sua infância antes que o rádio se difundisse pelo país, conheceram o cinema, as revistas, a televisão, a televisão a cores, resolveram me dar um computador de presente no início dos anos 1980, sempre gostaram de telefone e, eu diria, estão octogenários e perdidamente apaixonados pelo smartphone. Vou aproveitar esta oportunidade aqui pra dizer mais uma vez: "...pai, vai lá, deixa o whatsapp e vem jogar baralho com a gente"!
Acontece que os tempos são outros. No último meio século, ocorreu uma evidente aceleração na produção e portabilização de equipamentos que incorporam tecnologia digital. Atualmente estamos cercados por televisores, tablets, computadores pessoais, leitores digitais, fones de ouvido, para mencionar apenas alguns que envolvem também recursos de interconectividade e comunicação. A eles podemos acrescentar os eletrodomésticos como as lavadoras, secadoras e secadores, microondas, panelas elétricas, e por aí segue.
Há uma quantidade enorme destes aparelhos dividindo nosso tempo e se inserindo em nossa intimidade e rotina. Sua presença -- que nos é vendida como facilidade e automação -- também, acaba por nos impor uma série de novas tarefas, como carregar a bateria do smartphone (inclusive a bateria extra), ou programar a panela elétrica de arroz para ter comida pronto quando voltar para casa. Talvez a vida fosse mais simples sem todas estas novas obrigações.
Todas estas novas rotinas, tarefas, obrigações que surgem em decorrência o alto índice de densidade tecnológica ao nosso redor, cria o que eu chamo de imersão operacional. A imersão operacional contribui para uma nova experiência existencial, de vida conectada e em rede, que se completa com a imersão narrativa, a outra face desta moeda.
A maior parte destes novos aparatos digitais nos imergem num ecossistema comunicacional de múltiplas linguagens e produtores e distribuidores de conteúdo. Como as tecnologias de produção e circulação de mensagens de popularizaram, é bastante fácil e simples produzir e distribuir conteúdo em diferentes redes digitais. Muita gente pode escrever, produzir imagens, vídeos, desenhos e animações, por exemplo, e os distribuir, fazer com que eles cheguem até outras pessoas de seu círculo próximo ou distante. É possível mandar uma imagem para um grupo de amigos organizados num aplicativo de mensageria eletrônica, ou publicar a mesma imagem numa rede social e deixar que ela circule publicamente até os confins da globalização.
Henry Jenkins, na introdução do seu conhecido Cultura da Convergência, traz um exemplo curioso de um garoto norteamericano que junto o Beto do Vila Sésamo com uma imagem do Bin Laden, apenas como uma brincadeira adolescente, e acabou vendo sua montagem ser transformada em milhares de cartazes utilizados em manifestações contra os Estados Unidos em países do Oriente Médio. Nem tudo está no controle.
Os tempos atuais são estes, de cultura da convergência, de inteligência coletiva, de consumo e produção de conteúdo. Essa condição nos coloca, a todos, em meio a uma permanente disputa de narrativas, às quais devemos estar preparados para decifrar, avaliar, formar opinião, apoiar ou não... São tempo em que é mais importante narrar que viver. Do que adianta ir a uma festa ótima, se eu não produzir e fazer circular uma selfie. Ou fazer uma viagem, sem produzir stories dos inúmeros lugares interessantes visitados. É praticamente impossível deixar de postar algum prato de comida bem montado que você recebeu naquele restaurante do final de semana. Coisas assim.
Num mundo cada vez mais virtualizado, a experiência do real perde força frente à narrativa do vivido.
Para sobreviver em meio a esta multiplicidade de narrativas em disputa, que também alcançam o mundo político, social, econômico, só é possível com quando se alcança fluência na capacidade de leitura, entendimento e expressão própria nas diversas linguagens em uso. Estamos preparados para isso?
Parece que estamos mal no quesito alfabetismo. Sim, pelos dados que são produzidos pelo INAF - Índice Nacional de Alfabetismo Funcional, percebemos que pouco mais de 12% da população brasileira pode ser considerada plenamente alfabetizada. E estamos nos referindo quase que puramente ao letramento e numeramento. Ou seja, a certas habilidades na leitura do texto e dos números em suas diferentes representações.
E como ficam as imagens, os códigos computacionais a mecânica dos jogos?
Resposta simples e direta: ficam pior.
Esta condição, de semi-alfabetizados ou analfabetos em grande parte das linguagens em uso, fica muito difícil para nós sairmos inteiros desde vendaval de narrativas em disputa que nos cerca. É impossível dar conta de todas as notificações. Todas as versões. Todas as montagens, invenções e boatos. Com a terrível consequência de um redução exponencial das capacidade de participar da vida social de forma consciente e responsável, plena e cidadã.
Por isso minha defesa ferrenha da importância da mídia educação para crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos. Na verdade, tenho ficado cada vez mais preocupado com a educação midiática de adultos e idosos, pois tenho observado que são menos hábeis no manuseio das tecnologias, e menos acostumados com os novos campos expressivos. Sua menor capacidade de dialogar de forma plena com o conteúdo da narrativas pelas quais são bombardeados a todo instante, os tem transformado em vetores de difusão da desinformação. Mais que os jovens. Mais que as crianças e os adolescentes.
Há que ser colocada também na conta dos adultos o fato de concederem acesso não supervisionado a aparatos eletrônicos e conteúdo em rede, para crianças, desde muito pequenas, que ainda estão em processo de formação, deixando-as expostas a determinados conteúdos e situações que as colocam em risco e, algumas vezes, as levam ao comprometimento da saúde mental e física.
Toda a sociedade adulta deve se sentir responsável por parte dos males que acometem os mais jovens e cumprir a obrigação de supervisionar e ajudar os mais jovens na construção de uma relação saudável com os aparatos e produtos digitais.
A visão que sempre me ocorre, aqui presente nesta fotografia de Carol Reis, durante uma oficina que realizei para crianças no Fórum das Letras de Ouro Preto, é a de precisamos auxiliar nossas crianças, jovens e adultos a retirarem as vendas de sobre os olhos, através de processos educacionais que os auxiliem a enxergar o que lhes tem passado despercebido.
A proposta é esta: educação midiática para todos, para retirar as vendas, para a vida cidadã.
É uma grande satisfação contar com a sua parceria, João!
Senior Manager at o9 Solutions
5 aExcelente texto, João.
Senior Project Manager at Workforce Science Associates
5 aMuito bom! Proposta bastante desafiadora para todos nos.