Meu primeiro currículo, 40 anos atrás.
Duas fotos 3x4, de 1978 e 1981.

Meu primeiro currículo, 40 anos atrás.

Em meio ao turbilhão digital em que se transformou a pandemia, consegui uma semana de desconexão para descongestionamento mental. Usei cada minuto para me afastar das redes digitais e me reconectar com o mundo físico. Arrumei a casa, consertei coisas, adubei plantas e afofei canteiros. Como podem ver, tenho muita sorte em poder me ofertar esses momentos de felicidade e silêncio, num mundo extremamente ruidoso e perverso. 

Em meio ao vai-e-vem de arrumações, fui reapresentado por minha mãe octogenária a uma “maleta 007” que comprei em algum momento da minha adolescência, quando eu sonhava ser alguém na vida, sem imaginar que, anos depois, como executivo, eu adotaria o modelo calça jeans e camiseta preta, ao invés de terno, gravata e pasta de couro.

Abri a maleta curioso e me deparei com um conjunto de papéis: original da certidão de nascimento, histórico escolar e diploma do antigo “primeiro grau”, um atestado de bons antecedentes (no final dos anos 70, sem um atestado destes, a vida ficava ainda mais difícil), o contrato de trabalho de meu primeiro emprego formal (1979, aos 15 anos), um currículo (o primeiro que fiz, em dezembro de 1981, quando saí de minha cidade natal para continuar os estudos em Ribeirão Preto e precisava trabalhar para somar a grana necessária). 

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Reler todos esses documentos foi inspirador e formativo para o meu momento de vida, quando, aos 56 anos de idade, sempre estou olhando para trás e para frente, para ver se sou capaz de descobrir até aonde quero ir agora. Como muitas pessoas, estou cheio de dúvidas sobre minha trajetória profissional e as escolhas num provável reposicionamento de carreira. Eu não esperava ter em minhas mãos um encontro inesperado com o “comigo mesmo de há 40 anos atrás”. E nem que esta experiência me permitisse tantos aprendizados.

A pasta, em si, o modo como os documentos estavam ali acondicionados e o conteúdo, não deixam dúvidas: sempre fui organizado e metódico (isso é pleonasmo?). Hoje reconheço que em toda a minha formação, o cuidado com o “método” sempre me atraiu. Estar diante de um problema e pensar em “como” resolvê-lo, definindo as ferramentas e o processo. 

Talvez, por esta razão, eu sempre tenha sido um craque em datilografia, e destaco isto naquele primeiro currículo, ao listar a formação no Curso de Datilografia oferecido pela Prefeitura Municipal e pelo representante das máquinas Remington para datilografar. 

O currículo está perfeitamente datilografado e metodicamente organizado. Quatro páginas divididas em seções, subtítulos claros e itens numerados em ordem crescente, com listas e pequenas explicações objetivas sobre as experiências.

Naquela época, imagino que eu não tivesse consciência que buscava afirmar alguns diferenciais no meu perfil, as tais “soft skills” e outras competências múltiplas, mas me deparei com o que seria um bom currículo, ainda hoje, para um jovem aos dezessete anos: dados pessoais, educação escolar, cursos, prática profissional, palestras, viagens e eventos, por fim, outras experiências, como a participação em grupos de jovens e mobilização social. Mexendo um pouquinho na ordenação e no “tom de fala”, estaria pronto para o século 21.

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Logo na primeira página adicionei o subtítulo “cursos de extensão escolar e profissional”, falando sobre minha formação em trabalhos manuais, teatro de fantoches e enfermagem! Nas experiências profissionais, indiquei posições ocupadas e uma lista de atividades que enumeraram habilidades desenvolvidas em cada emprego (3 em 4 anos, diversidade que ainda defendo no primeiro contato com o mundo do trabalho), dando foco ao “saber fazer”. Por fim a atuação social, como parte de um coletivo de jovens, Secretário e Presidente do Interact Club de Santo Antônio da Alegria.

E lá fui eu para o mundo, com esse maço de papéis numa “maletinha 007”.

Devo confessar aqui que a estratégia não deu muito certo. Nos anos seguintes, eu não consegui nada além de trabalhos voluntários em Ribeirão Preto. Tive muita dificuldade também para encontrar meu caminho para a vida adulta. Fiz vestibulares para Arquitetura e Medicina. Entrei e saí do seminário, casei uma prima e fiz trabalho pastoral. Por fim, cursei História na Universidade Federal de Ouro Preto (palco do meu encontro com a vida), depois parti para o Rio de Janeiro, onde me doutorei em educação e vivo até hoje.

Neste período fiz muitas coisas: trabalhei em bar, em sala de projeção, produtora de vídeo, escrevi e publiquei, criei roteiro e fiz direção para TV… Sou professor! Separo isso porque a educação está presente em minha vida desde o primeiro emprego aos 15 anos, atendendo a crianças da educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental, num centro comunitário da cidade onde nasci. 

Sou interessado, aprendi a aprender, e ainda me engajo com as descobertas do dia a dia que me chamam à atenção. Reencontrei essa característica neste velho currículo datilografado e fiquei mais à vontade, renovando o sentimento de não precisar me aprisionar a uma carreira, um pouco na contramão do que é mais usual neste campo.

Percebo que sempre tive a liberdade de saltar rumo ao desconhecido, e mesmo vivendo num tempo de incertezas, isso me alegra e me conforta. Me deixa mais à vontade aos 56 anos, com essa sensação boa, de que ainda posso acreditar em algo “novo”. Experimentar o que ainda não fiz.

Já saí do emprego e comecei do zero mais de uma vez por achar o ambiente “tóxico” (como dizemos hoje), pois sou fiel aos meus princípios. Já fui embora por me apaixonar por um espaço novo de atuação, ganhando menos. Não me adapto bem à solidão das salas e portas fechadas. Talvez por isso eu sofra tanto com a redução drástica de minha bolha de relacionamentos, durante a pandemia, e com a imaterialidade do trabalho quando fica restrito ao universo online.

Agachado aqui no lugar de onde vim, com os pés na terra e a cabeça nas nuvens, me descubro feliz e tranquilo com essa busca permanente do meu rumo na vida.

Priscila Steffen

Communications Coordinator / Coordenadora de Comunicação at U.S. Forest Service / International Programs - Brazil / Communications Consultant

3 a

Sensacional essa reflexão João! Você é inspiração.

Julia Mantovani

Gestão de projetos de arquitetura, engenharia e socioambiental

3 a

Emocionei.... e me vi em sentimentos muito semelhantes. A vida é mesmo uma arte, a arte de se reinventar, de aproveitar ao máximo as oportunidades que surgem não por currículo, mas pela construção de relacionamentos pra vida toda, pela troca de experiências e ampliar conhecimento em qualquer área! Parabéns João, pela linda trajetória!

Márcia Côrtes

Sustainability, Social Impact, Strategy

3 a

Sensacional, João. Adorei sua história. Boa sorte em tudo.

Márcio Rezende

Doutor em Literatura Comparada (UERJ) e diretor escolar

3 a

Viver é um eterno recomeço. Belo texto.

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