Mas é só uma pessoa cega na empresa inteira

Mas é só uma pessoa cega na empresa inteira

Como me interessei por acessibilidade e como você pode começar a contribuir

"Mas é só uma pessoa cega na empresa inteira."

Isso foi o que escutei na primeira vez que sugeri adequarmos os veículos de comunicação interna da empresa para torná-los acessíveis a pessoas com deficiência visual.

Isso foi há cerca de 4 anos, quando eu ainda trabalhava como designer gráfico, antes de migrar para UX e de começar a estudar acessibilidade digital. Ao longo da vida, eu já havia dividido baia com um colega cadeirante e acompanhei todas as dificuldades que ele enfrentava em seu dia a dia. Também havia me envolvido em atividades voluntárias com foco em mobilidade, especialmente mobilidade a pé. Nessa época cheguei a conhecer uma voluntária com baixa visão, algo totalmente desconhecido para mim. Mas ainda não havia tido a oportunidade de contribuir profissionalmente para a acessibilidade.

Foi quando eu conheci o Douglas, que me fez enxergar um universo de coisas que precisavam ser melhoradas com urgência no trabalho que minha equipe estava entregando. Quem no escritório não havia esbarrado com o rapaz que andava com auxílio de uma bengala no hall dos elevadores, mesmo sendo uma empresa de grande porte? O Douglas não tinha nascido cego. Ele já era um funcionário concursado da empresa quando perdeu a visão. E pasmem: ele não conseguia ler uma série de informações veiculadas para os funcionários. Não só as campanhas, mas informes muito importantes a respeito da sua própria avaliação de desempenho e processo de avanço de nível. Um tratamento muito excludente.

Eu já havia implementado algumas boas práticas na criação de e-mails marketing e newsletter como nunca produzir esses veículos como uma imagem única e a mensagem como texto. Para quem tem algum nível de conhecimento de HTML, isso é básico. 

Por uma série de fatores que iam desde a falta de um servidor até questões de segurança da informação, eu precisava construir toda a peça de comunicação digital dentro do próprio software cliente de e-mail, uma ferramenta disponível em versão muito antiga, com recursos tão limitados que nem tinha mais de um Control Z. Ainda assim, eu fazia todo tipo de esforço e gambiarra necessária para tentar colocar toda a informação sob forma de texto. Orientava as estagiárias a fazer dessa forma e explicava todos os porquês. Era muito trabalhoso. Demorava mais. 

Algumas vezes éramos atropeladas por uma ordem de “exporta um JPG desse cartaz para dispararmos a comunicação para os empregados”. A velha prática insistia em retornar. Eu sabia que seria um longo processo de convencimento de que aquela prática era ruim.

Mas nada como ganhar um empurrãozinho!

Por obrigatoriedades relacionadas a índice da bolsa e por aí vai, a empresa precisava fazer relatórios de sustentabilidade e também prever planos de ações de melhorias em diversos sentidos. E em todo esse mapeamento estava lá questões de acessibilidade. Todas as dificuldades que o Douglas passava estavam lá naquele plano, mesmo que superficialmente: tanto os problemas de mobilidade, quanto de comunicação.

Foi através de um colega bastante engajado da área de sustentabilidade que fui apresentada ao Douglas. Eu precisava muito entender em detalhes o que poderíamos melhorar. Fui lá na baia dele buscar feedbacks sobre os e-mails marketing, sentei a seu lado, ele compartilhou comigo o leitor de tela. Eu tive aquele choque inicial da velocidade absurda que o assistente lia. E seguimos testando alguns modelos de e-mail.

O Douglas avaliava os e-mails como acessíveis. Havia algumas limitações do próprio cliente de e-mail que não permitiam que o leitor de telas tivesse o mesmo desempenho que nos browsers ou no Word. Anotei alguns pequenos ajustes que precisaríamos fazer com relação a ordenação de colunas ou tabelas.

O Douglas até insistia: “Não, não. Não precisa ter essa trabalheira. Eu me viro aqui. Meu estagiário me ajuda a ler algumas coisas.” Parecia que ele mesmo havia sido convencido de que aquele tratamento desigual era aceitável. E eu reforçava: “Como assim? Isso é o mínimo que nós temos que entregar a você.” 

Foi quando ele trouxe outra questão: “Na verdade, o que me incomoda mesmo é a intranet. Os e-mails às vezes direcionam para lá, mas muitas informações estão como imagem. E o meu leitor lê apenas “gráfico”.” Foi doído acompanhar o leitor dele escaneando algumas páginas e repetindo a cada segundo “gráfico… gráfico… gráfico”. Não havia descrição das imagens. Eu não trabalhava diretamente na intranet, mas pedi desculpas a ele e prometi levar essa necessidade para minha área.

Eu já conhecia a função da tag ALT desde as primeiras aulas que tive de webdesign (ainda existe isso?), pois tive um professor maravilhoso que trazia sempre essa preocupação para as aulas. Então achei que bastava que o profissional que iria publicar a notícia preenchesse a descrição da imagem em algum campo equivalente ao ALT ao fazer upload das imagens. Campo este que seria lido pelo leitor de tela. Mas o buraco era bem mais embaixo. 

A ferramenta para criar publicação da intranet desenvolvida internamente não havia previsto essa funcionalidade. E é aí que voltamos ao início desse texto, quando minha esperança se afogou completamente no balde de água fria que tomei ao conversar com o setor de TI:

“Mas é só uma pessoa cega na empresa inteira. Não justifica o tempo de desenvolvimento.”

Realmente… continuaria sendo só uma pessoa na empresa se a gente não passasse a ter um olhar mais inclusivo. Não é uma boa justificativa um empregado não receber a informação adequada para que ele possa avançar na carreira, sendo tratado com igualdade em relação aos colegas? Não é uma boa justificativa a possibilidade de se adequar a receber de forma adequada mais pessoas com deficiência no quadro de empregados, especialmente num universo corporativo regido por concursos em que parte das vagas são destinadas a essas pessoas? E se você fosse essa pessoa sem acesso à informação?

Bom, gostaria de contar o final dessa novela e de ter certeza que esse olhar mudou, mas não tenho conhecimento do que aconteceu. Poucos meses depois segui para um novo desafio, migrando para UX. Entretanto, posso dizer que esses não foram os únicos aprendizados iniciais sobre acessibilidade digital ainda como designer gráfico.

Na época, mesmo com a melhoria dos e-mails, ainda havia muita coisa a ser feita. Uma delas era conscientização. Passamos a adotar a hashtag #PraCegoVer em diversas publicações para driblar a falta de recursos de descrição de imagens em algumas ferramentas. 

A surpresa veio quando um diretor ligou para nossa área achando um absurdo, uma hashtag que soava grosseira, sem entender aquilo. Após entender parte da finalidade, sugeriu que colocássemos esse texto em letras brancas, invisível para que só as pessoas com leitores de tela pudessem “enxergar”. Só que por trás dessa hashtag havia  um objetivo de conscientização das pessoas videntes (pessoas sem deficiência visual) para que elas passassem a enxergar as dificuldades de pessoas como o Douglas, por exemplo. Uma verdadeira função educativa. Então, nada de esconder a hashtag!

Um outro problema sério era a plataforma de e-learning da empresa que não era acessível. Dessa forma, empregados com deficiência visual, não tinham como realizar os treinamentos, nem mesmo os que eram obrigatórios.

Além disso, recebemos certa vez uma mensagem de um empregado falando sobre daltonismo. Ainda guardo essa mensagem. Mensalmente enviávamos comunicações sobre o atingimento de metas de redução de custos. E caímos no clichê de usar apenas cores na diferenciação para os resultados positivos e negativos. Quais cores? Vermelho e Verde! Uma vergonha, reconheço. Meu pai era daltônico, meu tio era daltônico. Vivenciei as diversas dificuldades deles e, ainda assim, eu não estava realmente às questões no meu trabalho.

“Olhando o comunicado abaixo me veio a ideia de te fazer uma sugestão de melhoria: usar uma forma a mais de identificar o que está acima/abaixo do esperado. As cores não são a melhor forma porque existe uma grande quantidade de pessoas, como eu, que não as identifica com facilidade. É a chamada discromatopia, que em grau mais elevado chega ao Daltonismo. Neste informe, por exemplo, eu não tenho a menor ideia de qual é o vermelho e qual é o verde. Se os números negativos e positivos são indicadores de bom/ruim acho que eles podem ser a opção mais universal para o entendimento. Sem precisar deixar de usar as cores, que saltam aos olhos de quem as vê, pode-se usar cores contrastantes, já que o vermelho e o verde são das piores para diferenciar."


Posso dizer que todos esses episódios contribuíram para que eu começasse a buscar mais informações sobre acessibilidade. Logo que comecei a trabalhar com UX, minhas primeiras preocupações eram o contraste das cores em gráficos e dashboards. 

Há infinitos detalhes que se deve atentar. Para começar no básico, tamanho de fonte. Quem já passou dos 40 talvez saiba o quanto passa a ser difícil ler algo pequeno no mundo físico e nas telas. Imagine para os mais idosos. É esse tipo de detalhe que o designer precisa ter empatia. Não é porque os browsers oferecem recurso de zoom, que iremos obrigar o usuário a fazer isso.

Também não é porque o manual de branding de uma marca definiu um determinada cor, que ela irá funcionar bem em uma tela. Algumas vezes será necessário fazer ligeiras adaptações para melhorar o contraste. Isso para uma profissional como eu, vinda de anos de vivência em branding e olhar clínico para “fiscalizar” aplicação correta de manuais, foi um exercício de mudança e desapego.

E conforme vamos avançando nos estudos, começamos a entender sobre “deficiências” momentâneas, como alguém que quebrou a mão e precisa acessar o celular por voz. Ou situações como uma mãe amamentando seu filho ou um motorista no trânsito. Ou um entregador que trabalha em uma região de clima ensolarado que necessita de um contraste maior para enxergar a sua tela. Tudo isso precisa ser considerado no desenvolvimento de um produto. 

É muita coisa? É! E o mercado inteiro tem uma grande defasagem. Dá para virar a chavinha de um dia para o outro e transformar todos os produtos? Não, não dá. Por isso sugiro que comece aos poucos. Comece se inteirando sobre o assunto de uma forma leve. Escutar podcasts é uma boa dica. Meu preferido é o Nerdcast: Cegos, nerds e loucos.

Um segundo passo para engajar outros profissionais, como me recomendaram no curso de acessibilidade digital do Paulo Aguilera, é levar o tema para o debate na empresa. E não precisa ser nada muito formal ou cheio de obrigações. 

Comecei a trocar ideia com alguns colegas. Vendo que existia interesse, fizemos um primeiro encontro, em que fizemos uma enquete para entender o nosso cenário e nível de conhecimento: desde os que tinham conhecimento zero aos que tinham pós em acessibilidade. 

A partir disso, concordamos que poderíamos criar uma comunidade para trocar conteúdos sobre o tema. E poderíamos fazer encontros sem frequência definida, quando alguém topasse contar sobre alguma iniciativa ou prática relacionada a acessibilidade digital. A comunidade teve bastante adesão. A equipe de comunicação interna divulgou o grupo. E esse foi apenas o início de um processo de transformação.

Você pode ainda experimentar os leitores de tela no seu celular e tentar realizar uma tarefa de olhos fechados. Ou ainda navegar pelos produtos que você está trabalhando usando a tecla TAB. Isso vai ajudar você a compreender o funcionamento e nível de acessibilidade. 

Tornar produtos digitais acessíveis não é só responsabilidade de UX Designers. É um trabalho conjunto em que desenvolvedores e POs também têm o seu papel e ferramentas a disposição para contribuir. Também não é o trabalho apenas de uma empresa. E sim de uma comunidade de profissionais engajados que conectam diversas empresas.

Vitor David

Accessibility Product Designer | Acessibilidade | Design OPS | Design System | Fundador da Comunidade Jovens UX & UI

2 a

Artigo muito bom!

George Vasconcelos

Propagandista na Apsen Farmacêutica

2 a

Que orgulho!!! Parabéns, Nibeca!!!

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