No meio do caminho tinha pedra pra caramba
Logo mais celebraremos o centenário daquele famoso poema de Drummond que fala sobre os obstáculos da vida. Publicados em 1928 na Revista de Antropofagia, os versos de “No Meio do Caminho” continuam provocativos e universais.
Não sei como anda sua vida no quesito “pedra no caminho”, mas aqui dentro o extrativismo mineral tem funcionado a todo vapor.
Durante este ano, tive de lidar com rochas de diversos pesos e origens: magmáticas (aquelas que estão ali desde sempre, tipo o meu apêndice, que resolveu embolorar do dia para a noite), sedimentares (dessas que vão acumulando e podem culminar num desgraçado burnout) e até umas metamórficas (resultados da fusão de sofrimentos rígidos complexos, como uma reforma infinita em minha casa simultânea a uma desejada reinvenção profissional, tudo isso dentro de um contexto sensível de depressão). Sem falar de erupções vulcânicas fora de meu controle que me geraram traumas nada cristalinos.
Desconfio que por aí a pedreira também tenha pegado forte nos últimos doze, vinte e quatro, trinta e seis meses… Daqui a pouco, Simone já vem perguntar o que você fez. Nada melhor, então, que encerrar o ano com essa analogia pesada e dura. Tanto bate até que… Desculpa, parei.
Voltei da FLIP há poucos dias e peço licença para elaborar aqui algumas reflexões que não ficarão restritas a esta edição, já aviso.
É que, de forma quase poética de tão linda, vivenciei metáforas do meu processo de burnout e ritualizei de forma especial essa recente jornada curativa. De fora para dentro.
Tudo começa antes da viagem. Encho as malas de expectativas moderadas para não me frustrar. Um clássico. Ego à moda pessimista.
Também havia precisado abastecer tanques emocionais dos meus pequenos, que ficariam alguns dias sem mamãe por perto. Outro clássico. Culpa materna estrutural.
O tanque do carro, mesmo, só lembro de abastecer num posto que felizmente resolve existir no meio do nada, em terras cariocas, quando já havia rodado bons quilômetros tão somente com o cheiro da gasolina do ABC Paulista. Gastrite. Sigamos.
O trajeto? Desconhecido por mim, mas simples: saia de São Paulo, siga toda vida, desça a Serra de Ubatuba em zigue-zague, controle sua labirintite e pronto, chegou em Paraty.
Do nada, chuva repentina. Distraída com ótimos podcasts, pela estrada afora eu vou bem sozinha. Mantenho a aceleração. Só não conto com a paralisante companhia a seguir. Eita, porr@. Cadê a estrada?
Se no meio do caminho tinha uma pedra, no meio da Serra tinha uma neblina.
Com o para-brisas e o coração na velocidade 5 do créu, preciso desacelerar.
Tamanha neblina me tira o chão. Sinto um ímpeto de parar. Medo. Estou numa subida sem acostamento. A visibilidade é próxima de zero. Continuo. Devagar. Carros à frente. A estrada começa a ficar cheia. Ufa. Há outras pessoas na mesma situação. Alguns veículos com pane mecânica. De forma meio egoísta, isso me conforta. Não estou sozinha.
Burnout. Quando recebi da psiquiatra a confirmação do diagnóstico, a tempestade já me inundava há tempos. Transbordavam em mim relâmpagos, raios e trovões em forma de dores crônicas, dificuldade em me conectar comigo mesma, ansiedade individual e familiar.
Desacelerar não era convite, e sim convocação da alma.
O risco? Não continuar viva para contar esta história.
Sem ajuda, não conseguiria. Precisei que alguém me dissesse: “Se te conheço, você sequer está pensando nessa possibilidade. Você precisa se cuidar. Por favor, pare. E pare hoje, quinta-feira. São 17h, pare agora”.
Além de apoio profissional para atravessar a neblina, tive de encontrar em mim mesma um novo ritmo.
Encarar meu preconceito com medicamentos para dores invisíveis. Não desistir.
Acreditar que haveria um céu aberto novamente. Mesmo que demorasse - como odeio demoras, esperas e delongas...
A neblina não machuca; apenas ofusca a visão. A dor vem da impotência.
Obstáculos pedem revisão de estratégia.
Demorei a acreditar que aquela neblina não iria me engolir ou aniquilar, como parecia. Um processo difícil. Doloroso. Lento.
Desço os trechos sinuosos da Serra com muito cuidado. Algum tempo depois, a estrada volta a ficar tranquila. E eu também. Nem acredito!
Minha chegada a Paraty parece ser uma concretização do fim da neblina. Um jeito bonito de reconhecer: “sim, isso passa”. Raios de sol se encontram com uma garoa fina, resquício da tempestade passada. Contemplo sete cores no céu.
Mas, péra.
O sentido oposto da estrada parece agora mais congestionado. Estou me distanciando da neblina enquanto várias pessoas entram nela. Já sou minoria?! Gente, volta que é roubada.
Veja por onde anda
Equilibrar-se nas ruas de Paraty e não reparar nas pedras é o mesmo que dirigir na neblina do século XXI e não buscar uma necessária reparação. Histórica. Coletiva. Mas também individual e interna.
Sim, volto à temática das pedras porque quando chego a Paraty, certa de que agora vou gozar das delícias do pós-neblina, encontro trajetos que gritam dores ancestrais.
No meio do caminho continua tendo pedra pra caramba.
A bela cidade carrega uma influência europeia não apenas em sua arquitetura colonial, mas também na memória de violência contra o povo escravizado que pavimentou e construiu seu admirado centro histórico.
Fred Di Giacomo Rocha , Head da GQ Brasil e autor de diversos livros, dentre eles o recém-lançado “Gambé” (Cia das Letras, 2023), em uma das mesas de conversa da FLIP, disse que se algum homem vive neste século e não está em crise, está errado. Concordo. E estendo isso a todas as pessoas brancas, também.
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Mas, deixe-me voltar à dificuldade de andar em Paraty. Que desgraça escorregadia é essa que mais parece um chão limbento de cachoeira? Se chegar à cidade em dia de chuva, como aconteceu comigo, o risco de sofrer um acidente, uma torção, uma fratura exposta é enorme.
No escuro, então, se por acaso a localidade toda virar um breu por conta de um raio, e você precisar dos 5% de bateria que ainda lhe restam para chegar a algum lugar seguro, uff, nem te conto da emoção.
Visitar lugares novos exige um certo desbravar. Algum desconforto. Você fica perdido, não conhece aquele ambiente, não está acostumado com o clima, não manja dos atalhos. Com o tempo, vai se aclimatando.
Como sou dessas adeptas do improviso que procura soluções, achei num brechó um fantástico coturno de astronauta. Disse ao dono do brechó, brincando (só que não), que apenas assim me sentiria mais tranquila de andar por aquelas ruas perigosíssimas.
Com ele, naquela brincadeira (só que não), aprendi uma lição para a vida: andar nas pedras não é difícil como parece.
O segredo é olhar para a frente. Não tanto para o chão.
Sei que isso soa clichê. Mas, na prática, possibilita uma perspectiva mais ampla de onde se deve pisar. Enxergar as pedras grandes. Usá-las como suportes.
Não faz sentido pular de pedrinha em pedrinha, amedrontada. Como apreciar a paisagem?
Diante de um caminho novo e cheio de obstáculos, manter os olhos no horizonte e encontrar os grandes apoios é a melhor estratégia para desfrutar do trajeto.
Vale pra mim. Pra você. E para todas as necessárias reparações.
É cansativo viver em guerra com o ego. Mas, cuidado: silenciar a alma pode ser mortal.
Conte com você.
[Lançamento] De fora para dentro
Você, que me acompanha aqui, seguramente já entendeu o quanto ando mexida com temáticas que envolvem alma, burnout, mudanças e autoconhecimento. Tudo isso está descrito com bastante leveza, ironia e profundidade no “De fora para dentro”.
Como o fio condutor de cada capítulo, eu descrevo meu processo íntimo de transformação em potentes sessões de rolfing - essa ciência (ou deveríamos chamar de arte?) que tem como intuito a reintegração da pessoa no espaço-tempo e na gravidade. De forma sincrônica à educação de meus movimentos, vivenciei também um profundo realinhamento interno.
Por isso, junto com o lançamento do livro "De fora para dentro", fui convidada para bater um papo com a Simone Carlos Mendes, minha rolfista e amiga, lá na Associação Brasileira de Rolfing.
Adoraria contar com sua presença e seu abraço!
Tema: Burnout e Rolfing: uma jornada possível de transformação integral
Data: 13/12/23, quarta-feira
Local: Associação Brasileira de Rolfing (ABR)
Endereço: Av. Dr. Arnaldo, 1644, Sumaré - SP
Saiba mais:
cintiaribeirosantana (a post shared by @cintiaribeirosantana)
Diz que vem?
Por conta do espaço e da quantidade esplendorosa de álcool que preciso comprar para comemorarmos, peço a gentileza de confirmar sua presença aqui:
Boa semana, alma querida.
Para você que me lê também.