Não há folha em branco
Prometi aos meus filhos que pintaríamos as paredes de seus quartos.
Bel sonhou com linhas orgânicas em cinco tons de amarelo, sua cor favorita. Levi queria tudo azul e preto; depois mudou a querência: “o quarto é meu e gostaria de cores de arco-íris e muitas estrelas, até nas paredes”.
Pois diante de mim estão as paredes. Paradas. Recém-paridas.
E também os sonhos e as querências de quem amo.
Se desejassem ir para o Japão amanhã, como aconteceu um dia desses, seria mais difícil. Mas pintar paredes é um desafio que talvez eu consiga encarar.
Por onde começamos?
Nem ideia. Mas já inventei ótimas desculpas para adiar o processo: “É importante descobrir a tinta certa, o pincel adequado, uma técnica viável, a melhor condição climática, um momento de inspiração, aquele alinhamento interplanetário…”
Não importa que a casa esteja no final da reforma, ainda sem todos os móveis. Esse suposto momento ideal pode ser replicado… Depois encontraremos o melhor jeito. “O melhor jeito”. Percebe?
Será que precisamos do “melhor” jeito?
Um jeito “seguro”, talvez? Porque se for seguro, pode ser que eu me sinta mais confortável para errar.
Se bem que… o que é o erro, quando criamos coisas novas? Não seriam as tentativas parte do aprendizado?
Aliás, desde quando há um jeito seguro de fazer arte?
E o que é a vida, se não fazer arte?
(Ih…. Tá bom, Platão, agora vem pra realidade, vai…)
(Oi, Soraya. Tudo bem, sumida? Lembra da Soraya? Aquela impostora que vive em mim… sabe? Soraya tem medo quando a gente começa a refletir sobre vivências e tenta tirar lições disso. Diz que não somos ninguém pra filosofar. Acontece que somos, Soraya. Somos humanos. Nossas dores são coletivas. Acredita em mim…).
Começar é um troço que dá medo, mesmo.
Começar por onde? Como? Do nada? De que jeito?
Inícios são assustadores. Qualquer imperfeição será gritante. Então eu, que não me permito errar, nem começo. Sair da inércia? Dar o primeiro passo? Xi… Pede outra coisa. Aqui onde já sou reconhecida está tão confortável… Por que deveria me expor?
A insegurança é a principal causa de paralisia, segundo o Instituto Alma Transgressora, que não realizou estudo algum mas comprova empiricamente 100% de suas estatísticas pessoais.
E se a gente trocar o medo do erro pela expectativa da descoberta?
Quando digo que não há folha em branco é porque há históricos, contextos e bagagens.
A folha em branco existiu uma única vez, para cada um de nós: no momento da concepção. Ali, na formação do zigoto que outrora fomos, estava o conjunto de todas as possibilidades. A primeira página. Desde então, não mais partimos do zero.
Somos autores oniscientes de nossas próprias aventuras, dramas e poesias.
No começo, tudo era dependência, claro. Mas fomos ganhando autonomia. Aprendemos que era possível fazer escolhas: rejeitar jiló, soneca da tarde, silenciamentos, relações abusivas.
Entendemos que até enfiar o pé na jaca era opção disponível - ainda que tal iguaria não estivesse no menu principal de alguns cardápios familiares.
O que tudo isso tem a ver com a alma?
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A alma guarda a essência do que somos. Um tipo de DNA da paz interior.
Por onde anda a sua? Você consegue escutá-la?
Meu processo de escrita é sempre uma tentativa de comunicação com minha alma. Sento diante do computador, abro o arquivo “Alma Transgressora” e, aos poucos, sinto fluir pelos dedos o transbordamento de algum tema que precisa ser elaborado. Na maioria das vezes, o que surge não tem nada a ver com o que havia pensado inicialmente.
Trago para a folha em branco não apenas quem sou, mas também quem fui e quem estou.
Para começar ciclos sendo gentis com nossa alma é preciso considerar o que já vivemos. Quem nos tornamos. O que desejamos repetir e o que pode ficar pelo caminho.
Somos um conjunto complexo de aprendizados que podem ser úteis, ainda que não agradáveis.
As camadas invisíveis da folha “em branco”
O risco de adiar algo por medo é que o tempo passa e dá lugar à frustração.
Se as querências do Levi em pouquíssimo tempo já mudaram de azul e preto para cores de arco-íris, talvez minha demora em ajudá-lo a concretizar essa promessa encontre no futuro uma criança que prefere tons mais frios.
Porque tem isso, as querências mudam. E tudo bem.
Mas a criança de 4 anos que se encantaria com paredes estreladas (por mais imperfeitas que estivessem) talvez endureça um pouquinho suas querências aos 5 anos, já que essa coisa de sonhar nem sempre dá certo… “Ah, deixa tudo branco… que bobagem, isso, de sonhar…” - ele pode aprender.
Não sei fazer estrelas perfeitas. Mas posso transformar as tortas em estrelas cadentes. Constelar histórias bonitas de conexão. Esse, sim, é um jeito seguro de fazer arte.
As paredes da casa recém-reformada só parecem novas porque já foram erguidas. Lixadas. Pintadas. De novo. E de novo. Quantas histórias terão testemunhado? Momentos de concentração. De dor. Choros. Orações. Dancinhas. Esperança de dias melhores.
Volto ao convite feito pelas crianças. Elas me convocam a “sujar” de sonhos as paredes. Brincar com a tinta do presente. Usar pincéis de disponibilidade. Trocar a técnica pela experimentação. Faça chuva ou faça sol - desde que seja agora.
Precisamos acreditar nas possibilidades criativas da alma. De inventar texturas. Curar sabores. Remendar querências.
Essas pinceladas contornarão futuros cheios de significado.
A única urgência é estar no agora.
É cansativo viver em guerra com o ego. Mas, cuidado: silenciar a alma pode ser mortal.
Conte com você.
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Ando sensível. Toda troca é bem-vinda.
Boa semana pra você, alma querida.
Para você que me lê também.