Metamorfoses
Cada um é o que se torna, cada um é aquilo no que se transforma! Essa dura sentença que representa o espírito da tragédia e da filosofia clássica, como em Heráclito ("o rio que nunca é igual, sem deixar de ser o mesmo") e Sócrates (a transformação advém da escolha de livrar-se da "ignorância" no ser e no tornar-se "digno"), é ainda apropriada como um espectro de "verdade" pela literatura (Ovídio, Kafka, Joyce), pela filosofia contemporânea (Sartre, Nietzsche, Bauman), pela psicologia e psicanálise (Freud, Jung, Lacan), e inúmeras tantas outras correntes de pensamento da história; além, é claro, da ciência: "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma" (Lavoisier).
O que dizer de autores brasileiros, como Guimaraes Rosa ("A Terceira Margem do Rio"), Clarice Lispector ("Paixão Segundo G.H."), e Machado de Assis ("O Alienista"), que tratam da angústia inevitável e inconsolável dessas mutações senão pela resignação frente ao fato, similar ao ouvir de si mesmo a revelação atroz: "só sei que nada sei". Isto é, o perceber-se conscientemente diante da impossibilidade de se concretizar o "desejo" (Lacan).
Essa é também a condição humana sintetizada por Milan Kundera em "A insustentável leveza do ser", onde a vida é condicionada por escolhas irrevogáveis e acontecimentos fortuitos: "Quanto mais pesado o fardo, mais próxima da terra está nossa vida, e mais ela é real e verdadeira."; e quanto "mais leve e distante da terra", "menos real e insignificante" ela se torna. "Então, o que escolher? O peso ou a leveza?"
Seguindo esse presságio, Hamlet (Shakespeare) traça seu plano de vingança. Werther (Goethe), inconsolável, opta pelo suicídio. Gregor Samsa (Kafka) vê a si mesmo transformado em um mostro desprezível, assassinado por seu pai. Anne Frank opta por mudar seu futuro, ainda que sem poder mudar o presente. E Baleia, em Vidas Secas (Graciliano Ramos), deixa-se morrer nas mãos de Fabiano, aquele a quem mais amava e servia.
Em qualquer curso, o ser permanece irremediavelmente o mesmo, exceto pela noção que passa a ter de si, sem manter-se jamais igual, simultaneamente vítima e algoz, tanto quanto os outros que o ferem ou frustram possibilidades ("O inferno são os outros", Sartre).
Pensar na existência humana, por esse modo, é associa-la às águas na torrente de um rio (Heráclito) fazendo apressadamente escolhas determinísticas a cada instante, e tendo que aceita-las sem saber do seu destino final, exceto que terminará irremediavelmente em algum oceano: "Cheguei onde cheguei porque tudo que planejei deu errado" (Rubem Alves).
É justamente essa topografia da odisseia humana "na terra", como em Homero, Dante e Proust, da nascente à foz, do começo ao fim de cada identidade do "Eu Profundo e de Outros Eus" (F. Pessoa) - mais essencialmente o meio inconsciente, como percurso que define e dá crédito ao rio, ao invés de ser apenas um fio de água a perder-se em poucos passos, adentrando à terra ou evaporando-se no ar -, que o ser a contragosto estabelece seus "mecanismos de defesa" (Freud), sem saber muito bem do quê ou porquê se defende.
Ora nos rendemos atordoadamente à realidade ("neurose"); ora resolvemos transgredi-la ("perversão"); ora criamos outra realidade ("psicose"); e, por vezes, permanecemos na fronteira, em estados limites ("narcisismo", "borderline"), como ensina a psicanálise, a partir de Freud. São, afinal, meios inconscientes (processos) pelo quais cada um de nós organiza, estrutura e estabelece a condição psíquica de se proteger daquilo que aflige, angustia e se impõe como desagradável, irresistível, temível, incontornável.
Como enxergar o "verdadeiro rio da existência" se vivemos dele apenas o instante imediato das corredeiras, ou do remanso, ou de seu diminuto nascedouro, ou de seu imenso estuário? São profundos os recalques (traumas); é intensa a recusa de se reconhecer um fato, um problema, um sintoma, uma dor; são recorrentes os distúrbios graves da percepção, do pensamento e do comportamento, intrincados em alucinações, delírios e inadequações; é instransponível a necessidade de sustentar e satisfazer a si mesmo, obliterando o outro, ainda que dele se necessite para saciar a si mesmo.
Com isso, em geral, não há remédio propriamente de cura para esta "angústia", senão de alívio transitório, como se dá, muita das vezes, na prática clínica da psiquiatria, da psicologia comportamental, da neurociência, e afins.
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Mas há, em paralelo, na psicanálise, um endereçamento do conflito por meio da "aceitação, contenção, superação e sublimação" dos fatores condicionantes do "mal-estar" e do "desequilíbrio psíquico". E isso se dá quando o sujeito, apoiado pelo psicanalista, passa a reconhecer-se na escuta; na análise do que fala e da atitude que repete; e na elaboração daquilo que pode ser representado pela linguagem (falada, escrita e, também, expressa na arte).
A análise, então, para uns passa a ser o lugar de superação e reflexão dos sintomas. Para outros, representa a chave do labirinto, abrindo e fechando portas do mundo imaginário, de modo que possa retomar e centrar-se no convívio seguro e, ao menos, satisfatório com outros seres. Em outros casos serve para o esclarecimento, contenção e reeducação de comportamentos, especialmente aqueles mais violentos, que buscam ferir a integridade física ou mental de si mesmo e do outro.
Desse modo, o que era "insustentável" e "insuportável" vai, pouco a pouco, tornando-se a condição natural da vida com seus fluxos de "certezas" (Permênides"), "incertezas" (Heráclito) e "imponderabilidades" ("Pandora", Hesíodo), onde se pode e deve banhar-se sem pretender conter, reter ou controlar aquilo que frequentemente se transforma, nem sempre na direção de satisfazer nossos desejos.
Tenho, com isso, na psicanálise atrelada à filosofia, à literatura e à arte - e por que não, à espiritualidade desperta -, um apreço especial pelo "olhar complementar e transcendente", incapaz de metamorfosear totalmente o indivíduo, mas de proporcionar-lhe um encontro consigo mesmo e seus múltiplos eus, fazendo com que "contente-se" de alguma forma com sua "falta permanente" e com o "desejo do desejo" (Lacan) por meio do "amar-se intransitivamente no outro" (Mario de Andrade). E, a partir disso, encontrar formas salutares de vivenciar e expressar com menos sofrimento sua experiência existencial, embora sem eliminar inteiramente a dor.
Mudamos, tudo muda, tudo passa: "Tudo deve mudar para que tudo fique como está" ("O Leopardo", G. di Lampedusa). Alguns dirão que borboletas sempre são elas mesmas, ainda que ovo, larva, crisálida ou imago, sendo essas apenas etapas obrigatórias e passageiras. Mas como fazer para que se tornem plenas? Todas conseguirão?
A cada um a sua própria metamorfose, mas há caminhos para reconhecer-se melhor em cada etapa. A psicanálise, pela metodologia da Esquética, é uma delas.
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Psicanalista | Metodologia Esquética
1 mArte de Matteo Pugliese, in: @artelite_com